quarta-feira, 17 de julho de 2013

CRISE ECONOMICA MUNDIAL

Crise reduz preço e eleva oferta de ilhas gregas à venda
Em uma das empresas, a oferta dobrou para 20 ilhas no semestre.
Outra diz que preços caíram até 20% nos últimos meses.

Simone Cunha 

A crise grega está aquecendo o mercado de venda e aluguel de ilhas gregas, segundo empresas que trabalham com esse tipo de propriedade. É possível encontrar preços mais baixos, proprietários mais abertos a negociar, mais propriedades à venda e, se for o caso, ilhas para alugar como forma de reduzir as despesas dos donos.


Nos últimos seis meses, o número de ilhas gregas publicamente à venda na Private Islands dobrou de 10 para 20. A empresa canadense, que trabalha com propriedade de todos os continentes, diz que também houve aumento de propriedades ofertadas só para um público específico, as do “marketing discreto”, como diz o diretor de operações da empresa, Andrew Welsh.

Uma das mais baratas ilhas è venda, a St. Athanasios está sendo ofertada por 1,5 milhão de euros (cerca de R$ 3,7 milhões). (Foto: Divulgação/Greek Property Exchange)

“Por conta da recente atenção da imprensa à crise econômica grega, tivemos um incremento no número de ilhas à venda na Grécia nos últimos seis meses”, diz Welsh. As vendas não têm aumentado na mesma proporção, no entanto, devido à burocracia para a compra.
Os preços das ilhas da Greek Property Exchange, inaugurada em 2010 por gregos que moram fora da Grécia, caíram entre 10% e 20% desde os tumultos de maio em Atenas. Segundo o presidente da empresa Georgios Stroumboulis, os episódios geraram publicidade negativa e afastaram visitantes. Com a queda, é possível comprar uma ilha no golfo de Corinto por € 1,5 milhão (cerca de R$ 3,7 milhões).


Anunciado em 14 milhões de euros (cerca de R$ 35 milhões), o preço
ilha de Kato Antikeri é negociável (Foto: Divulgação/Private Islands)


A empresa francesa Demeures de Grece (Casas de Grécia) também diz que os donos estão mais flexíveis, o que tem diminuído o preço das terras. “A crise afeta principalmente os preços; a oferta, já não tanto”, diz Nicolas Mugni, o sócio da empresa francesa.
Ainda assim, a empresa divulga os preços mais caros entre as três consultadas. Uma ilha sem permissão para construir está cerca de € 5 milhões (cerca de R$ 12 milhões); já uma com toda a documentação necessária varia entre € 8 milhões e € 15 milhões (aproximadamente R$ 19 milhões a R$ 37 milhões).
Na Private Island, mesmo sem os preços terem caído sensivelmente é possível encontrar ilhas gregas mais baratas, por cerca de US$ 1 milhão (aproximadamente R$ 2 milhões). Mas a mais cara custa € 150 milhões (cerca de R$ 370 milhões).
Descontos, no entanto, também podem ser conseguidos diz Mungi, na Demeures de Grece. Segundo ele, brasileiros que conhecem o mercado de ilhas gregas fazem ofertas com desconto de 30%, 40% e geralmente fecham o negócio. Os que não conhecem tentam barganhar até 80% de desconto e acabam não comprando, diz.
Aluguel
Uma alternativa à venda é o aluguel de ilhas nas férias para ajudar a custear as despesas dos proprietários. A Greek Property Exchange tem um portfólio de ilhas à venda, mas também tem trabalhado com aluguel de férias, segundo Stroumboulis.

Mesmo fazendo parte do negócio, ele diz que a venda de ilhas deve ser utilizada como um "último recurso", mas recomenda aluguéis de longo prazo. "A primeira coisa é desenvolver a economia e atrair investimento interno estrangeiro para criar a infraestrutura necessária, o ponto é para ganhar dinheiro", diz.
Os empresários das três empresas que vendem ilhas gregas dizem, no entanto, que é difícil vende-las. Segundo a Greek Property Exchange, um dos entraves é que a infraestrutura de muitas delas não está configurada para a venda. A francesa Demeures de Grece diz que o mercado de ilhas privadas no país é muito complicado porque é preciso mais de 15 aprovações e licenças de vários ministérios para se construir em uma ilha privada.
A Greek Property Exchange diz que recebe visitantes de mais de 120 países e nos últimos seis a 12 meses tem tido um aumento de tráfego de brasileiros. A Private Islands fechou perceria com uma imobiliária brasileira para se aproximar dos brasileiros, mas o negócio está focado no sentido contrário: atrair estrangeiros a comprar propriedades no Brasil.
Portal G1

Crise faz com que brasileiros desistam do ‘sonho espanhol'



Babeth Bettencourt
Enviada especial da BBC Brasil a Madri e Barcelona
A crise econômica e o alto índice de desemprego - que em abril chegou a 17,36% - estão fazendo com que mais imigrantes brasileiros decidam deixar a Espanha e voltar para casa.
A Organização Internacional para a Migração (OIM) - que ajuda imigrantes que queiram voltar para casa, pagando sua passagem - afirma que, em 2007, analisou pedidos de 2.073 pessoas na Espanha.
De 2008 até abril deste ano, este número tinha subido para 6.722. Outros 500 casos - que poderiam representar cerca de 1.500 pessoas - aguardavam na fila para ser analisados.
"O número de imigrantes querendo ajuda para voltar para casa aumentou muito", conta Clarissa Araújo do Carmo, funcionária da OIM em Madri. "Antes recebíamos cerca de cinco pedidos diários, mas desde meados do ano passado este número subiu para 20, até 30 pedidos."
Os brasileiros, juntamente com os argentinos, são o segundo maior grupo a procurar a OIM. Os bolivianos são os primeiros da fila.
No ano passado, a organização ajudou 143 brasileiros a voltar para casa e neste ano, até março, 45 já haviam retornado e outros 155 casos (o que poderia representar o triplo em número de pessoas) aguardam para ser analisados, mas a espera pode demorar meses.
Crescimento
Desde o ano 2000, o crescimento econômico e a ampla oferta de empregos - principalmente nos setores de construção, hotelaria e serviços domésticos, que os espanhóis não queriam ocupar - vinham atraindo imigrantes de vários países para a Espanha.
Mas refletindo a crise mundial, o país entrou em dificuldades em meados do ano passado e hoje seu índice de desemprego é duas vezes maior do que o dos outros países da União Européia.
O cônsul brasileiro em Madri, Gelson Fonseca, afirma que ainda é cedo para medir os efeitos das dificuldades econômicas sobre os imigrantes brasileiros na Espanha.
"Poderemos ter um número preciso sobre a saída de brasileiros da Espanha daqui a um ano. A Espanha tem estatísticas muito precisas sobre a comunidade estrangeira no país, por conta do Padrão Municipal (uma espécie de censo municipal publicado a cada dois anos)", diz Fonseca.
"O padrão é renovado a cada dois anos, então, precisamos esperar pelo menos mais um ano para medir este número."
De acordo com dados do Padrão Muncipal, havia 11.085 brasileiros registrados na Espanha no ano 2.000. Em 2.008, este número chegava a 116.548. Segundo dados do Ministério do Trabalho, no entanto, apenas cerca de 20% têm seguridade social.
Entre os brasileiros na Espanha, os homens, em sua maioria, trabalham no setor de construção, um dos mais afetados pela crise. As mulheres estariam empregadas, em geral, no setor de serviços doméstico ou de hotelaria.
"A taxa de desemprego entre os imigrantes na Espanha é maior do que a taxa de desemprego entre os espanhóis. O que se diz é que a taxa de desemprego para estrangeiros, geralmente, está entre 6% e 7% acima da taxa dos espanhóis", afirma o cônsul.


Cachón: 'Migrações para a Espanha se produziram por questões de trabalho'
Segundo o sociólogo Lorenzo Cachón, presidente do Fórum para a Integração dos Imigrantes, a crise e o desemprego também aumentaram a tensão entre os imigrantes e os espanhóis.
"A crise está sendo especialmente grave na Espanha, afetando todos os trabalhadores. Com isso, muitos imigrantes perderam o emprego", afirma Cachón.
Se antes os imigrantes ocupavam as vagas rejeitadas pelos espanhóis, agora eles disputam diretamente esses empregos.
"As migrações para a Espanha se produziram, basicamente, por questões de trabalho. As pessoas vieram não por que tinham problemas em seus países de origem, mas porque na Espanha havia oportunidades de empregos", diz o sociólogo.
"Na Espanha, desde o ano 2000, houve muitas oportunidades de emprego. Em 2007, elas começam a diminuir. 2008 foi um ano ruim e a previsão é de que 2009 seja muito negativo", afirma ele.
"O que está acontecendo é que menos gente está vindo para a Espanha porque sabem que hoje não vão encontrar emprego. Aumentou o retorno de imigrantes, principalmente de países latino-americanos."


BBC BRASIL

Três anos de crise global


Três anos de crise global
Marcio Pochmann
Os excessos de desregulamentação nas economias motivados pelo modo como a globalização se generalizou na passagem para o século XXI levaram à crise internacional de 2008. E a enxurrada crescente de capital especulativo, cada vez mais desconectada do sistema produtivo, não contaminou somente o centro dinâmico do capitalismo mundial.

O sofrimento humano gerado pela contenção do dinamismo econômico desde então tem se expressado não apenas pela destruição de postos de trabalho que faz aumentar o desemprego e por consequência a pobreza e a desigualdade social. Pior, provoca crescente perda da esperança de que seja possível construir um mundo melhor, capaz de manter aceso o horizonte de maiores oportunidades para grande parcela da juventude.

O foco difusor dos distúrbios que se pronunciam também nesta segunda manifestação da crise global, iniciada há quase três anos, segue intocável. O mercado financeiro, que se tornou o segmento mais globalizado e detentor das mais altas taxas de lucratividade, permanece o menos comprometido com a sustentação do desenvolvimento. Por conta disso, registra-se atualmente que, diferentemente da primeira onda de manifestação da crise global em 2008, quando houve a convergência de intervenções governamentais antidepressivas, as medidas adotadas são de caráter pró-cíclicas, evidenciadas pelo corte no gasto público e elevação da carga fiscal voltada à reorganização das abaladas finanças públicas.


O resultado direto disso deverá ser o aprofundamento da desaceleração da economia mundial, muito provavelmente a recessão. Nesse sentido, o prazo da melhora possível das finanças públicas será ampliado, especialmente nos países desenvolvidos que já convivem com o agravamento dos problemas sociais (desemprego em alta e aumento da desigualdade de renda e pobreza).

Neste contexto de restrição interna, resta ao setor externo o papel principal de animação dessas economias, por meio dos estímulos à exportação derivada da desvalorização cambial e desoneração fiscal. Assim, o acirramento da competição global deverá ser o resultado final. Se a produção do conjunto da economia mundial se desacelera ou decresce, o quadro de maior competitividade externa repercute direta ou indiretamente no comportamento do mercado interno de indistintos países. Com importados mais baratos competindo com bens e serviços gerados internamente, a inflação tende a desabar, bem como pode ser alterada profundamente a composição da produção, sobretudo nos países não desenvolvidos.

A reversão dessa marcha mundial é imprescindível. Enfrentar os dilemas da falta de solidariedade global é tarefa inadiável, especialmente no que diz respeito ao restabelecimento da cooperação necessária à redefinição do padrão de desenvolvimento sustentado e sustentável ambientalmente.
Para isso, a retomada de ações voltadas à regulação do mercado financeiro e implementação da taxação sobre transações financeiras por alguns governos de países como França e Alemanha apresenta-se contemporânea às exigências de superação da crise global três anos depois de seu início. Não pode mais continuar sendo a vítima disso tudo (setor produtivo e trabalhadores) a principal desaguadora de todo o ônus da crise global gerada por posturas descomprometidas com o desenvolvimento global como encontrado no mercado financeiro atualmente.

Ao mesmo tempo em que se registra o avanço de uma segunda onda de manifestação da crise global, percebe-se a oportunidade para o Brasil experimentar novas e mais ousadas medidas de defesa da produção e do emprego nacional, conforme verificado em alguns países (China, Inglaterra, França, Índia e Noruega). Três modalidades de políticas governamentais poderiam ser consideradas. Inicialmente, aquelas atinentes ao reforço da articulação e coordenação de ações defensivas da produção e do emprego em âmbito regional. Para o Brasil, a possibilidade de combinar políticas econômicas e sociais de valorização do mercado interno concomitante com decisões equivalentes nos países sul-americanos, especialmente do Mercosul.

A segunda modalidade de políticas governamentais envolveria a utilização alternativa de recursos alocados pelo fundo soberano para o fortalecimento do setor produtivo. No Brasil, cuja estrutura produtiva encontra-se fortemente internacionalizada, a possibilidade da aquisição de ativos de empresas estratégicas, especialmente aquelas com valor de suas ações desvalorizadas.

Por fim, a modalidade de políticas governamentais associada à progressividade do sistema tributário. Para o Brasil, que possui uma tributação extremamente regressiva, ou seja, assentada nos segmentos de menor poder aquisitivo, a possibilidade de corrigir distorções na tributação direta como o Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR), Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU), Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) e o Imposto de Renda (IR). Ao mesmo tempo, a oportunidade de introduzir definitivamente o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), cujo resultado geral, além da elevação da contribuição ao fundo público ou compensação para desonerações fiscais aos segmentos de menor renda, fortaleceria o grau de coesão social.

Essas distintas modalidades de políticas públicas a serem consideradas não devem excluir outras iniciativas. A crise global é uma grande doença que precisa ser enfrentada com coragem e determinação, sem abandonar o sentido geral de constituição de um país soberano e cada vez mais menos injusto.
Revista Fórum

O fim do pleno emprego nas maquiladoras


O fim do pleno emprego nas maquiladoras

Implantadas no México na década de 1960 e potencializadas pelo tratado de livre comércio com os Estados Unidos nos anos 1990, as fábricas de montagem de peças praticamente não são fiscalizadas e exploram a mão de obra local com abusos flagrantes e chantagens cotidianas

por Anne Vigna

Crise? Qual crise? Ah, existe uma nova crise? Bem, em Tijuana nós jamais saímos dela!”, afirma Jaime Cotta, sempre sorridente. Apesar de todas as desgraças que passam por seu escritório, ele se esforça para manter o senso de humor. Em Tijuana, sem dúvida é ele quem melhor conhece as condições de vida nas maquiladoras, fábricas de montagem implantadas no México a partir da década de 1960 ao longo de 3 mil quilômetros de fronteira com os Estados Unidos. O que as levou ao México? Mão de obra barata, impostos praticamente inexistentes, autoridades que pouco fiscalizam e a vizinhança da primeira economia do mundo1. “Graças às maquiladoras, somos uma economia de pleno emprego”, repetiram, sucessivamente, os últimos governadores do estado da Baixa Califórnia.

Cotta começou a trabalhar como operário, e depois se tornou pesquisador e advogado. Seu Centro de Informações para Trabalhadoras e Trabalhadores (Cittac)2 é o único que auxilia as vítimas dessas fábricas há cerca de 20 anos. De funcionários demitidos àqueles que sofreram acidentes de trabalho, ou temporários sem direitos nem contratos, os abusos são flagrantes. Os trabalhadores que passam por seu escritório recebem aconselhamento e, em alguns casos, são orientados a abrir um processo judicial. Trata-se, portanto, do lugar ideal para sentir o “clima quente” dessa cidade de 1,4 milhão de habitantes.

Hoje, três operárias foram atendidas. Uma delas foi suspensa por dois dias por causa de uma peça mal feita entre as 700 que produz em dez horas de trabalho diário. “Eles querem me demitir, me perseguem o tempo inteiro e inventam mentiras”, afirma com os olhos baixos. No papel que mostra a Cotta, está escrito que ela “intencionalmente causou prejuízos à empresa”. A operária acrescenta que nessa maquiladora as “paradas técnicas” acontecem semanalmente e que, com um dia de trabalho remunerado a menos, o salário fica ainda mais insignificante – 755 pesos mexicanos por semana, cerca de R$ 98.

As chamadas paradas técnicas figuram entre as últimas “sacadas” dos proprietários dessas fábricas. O presidente mexicano, Felipe Calderón, promove-as em nome da luta contra as demissões em massa. O governo federal paga um terço dos salários, a maquiladora outro terço, e o assalariado... perde o último terço com esses dias, compulsoriamente não trabalhados! Em troca, as fábricas se comprometem a demitir um número de empregados proporcional – e não superior – à baixa da produção. Mas, como explica a presidente da Associação da Indústria Maquiladora e de Exportação de Tijuana3, Magnolia Pineda, “poucas empresas aceitaram entrar nesse programa pois consideram impossível não ter liberdade para demitir. Trata-se de uma restrição inaceitável”. Essas empresas, no entanto, recorrem mesmo assim às “paradas técnicas”, mas sem pagar sua parte no salário, ou seja, de forma completamente ilegal. E mais, “os assalariados compreenderam muito bem a situação; não houve nenhuma greve”, acrescentou a presidente dessa organização patronal.

De fato a agitação social não abalou essas fábricas, de produção terceirizada, que reexportam seus produtos para os Estados Unidos imediatamente após a montagem. De acordo com um estudo realizado em Tijuana4, apenas 18% dessas empresas têm alguma organização sindical, pejorativamente apelidadas de “fantasmas” pelos funcionários. Pineda constata que, em 50 anos de maquiladoras, jamais houve conflito. Contudo, não é exatamente a “compreensão” dos trabalhadores, mas sim o medo das represálias que faz com que a paz social continue reinando na cidade fronteiriça. Basta se dirigir aos parques industriais ao amanhecer para compreender isso.

Há vários meses, filas de trabalhadores se formam todas as madrugadas em frente às empresas – alguns chegam a dormir no local para ter mais chances. Às cinco da manhã, mesmo sem nenhum funcionário de recrutamento presente, estão todos aterrorizados: “Não fale comigo, não se aproxime de mim. Não posso te dizer nada”, murmura um deles para a reportagem. Outro afirma: “Você não tem o direito de estar aqui, é proibido. Sim, é verdade, é a rua, mas estamos em frente à fábrica e a rua também é ‘deles’”. Às sete horas, apesar de ninguém ter sido empregado e de já estarem todos a 500 metros da usina se aquecendo com um café ruim, eles ainda têm medo. Apenas uma mulher aceita contar que busca um trabalho há meses e que “não há nada”. Mas ela não quer dizer seu nome nem sua idade ou origem.

As maquiladoras sempre tomaram medidas para ocultar as informações. É preciso voltar ao escritório do Cittac para aprender um pouco mais sobre esse mundo tão secreto. Aqui, aqueles que um dia abriram a porta e aprenderam seus direitos não têm mais receio de falar.

Há anos o mesmo discurso é repetido: trabalhar nas maquiladoras é um inferno. E a nova crise só agrava esse cenário. No mercado há mais de 20 anos, Rogelio já passou por várias empresas da região: “Venho do Michoacán e quando cheguei aqui comecei a trabalhar para a japonesa Tabuki, onde montava alto-falantes; depois, na Tabushi, também japonesa, fazia cabos para a Canon; por último fui para a americana Sohnen, a pior de todas, onde consertava máquinas elétricas”. Na Sohnen, Rogelio fez cursos noturnos, que frequentava após dez horas diárias de trabalho, para se tornar técnico. Foi promovido e tinha um salário quase decente (1.700 pesos por semana, R$ 224), mas o ritmo era exaustivo. “Tínhamos 20 minutos para consertar uma máquina. Se não conseguíssemos, era preciso terminar à noite. Sem receber hora extra, é claro.”

Segundo seu supervisor, Rogelio não era rápido o suficiente. A verdade, porém, é que ele começou a organizar um sindicato com outros operários: eles haviam se reunido várias vezes em um parque e distribuíam panfletos na saída da fábrica. Os supervisores perguntaram aos outros trabalhadores se Rogelio era quem os incitava e, considerado pela diretoria como “o chefe”, uma bela manhã ele foi demitido e recusou o cheque irrisório de indenização que lhe ofereceram depois de anos na empresa. Graças a uma batalha judicial travada pelo Cittac, Rogelio recebeu uma quantia maior.

A Sharp o contratou e o manteve durante algumas semanas, antes de tomar conhecimento de seu “passado terrível” e demiti-lo. Desde então, a indústria eletrônica de toda a península da Baixa Califórnia fechou as portas para Rogelio. Em 2007, ele conseguiu trabalho na Unisolar Ovonics, uma maquiladora americana de painéis solares. “O trabalho não é fácil. Há 16 fornos e nenhum exaustor, o calor é sufocante. A zona de cortes é a mais perigosa. Durante todo o dia você respira a poeira da fibra de vidro, que também cola na pele e cobre o corpo inteiro”, conta. As queixas dos trabalhadores não surtem efeito: “Toda vez nos repetem que temos sorte de ter trabalho em tempos de crise”.

Ameaças constantes de demissão

As ameaças de demissão tornaram-se mais sérias ao longo do ano. Junto com Manuel, um imigrante hondurenho, Rogelio levantou informações sobre a empresa para redigir um panfleto que eles distribuíram discretamente aos operários. Descobriram assim que o novo presidente da Unisolar Ovonics, Mark Morelli, foi recentemente parabenizado pelos bons resultados do grupo (“alta de 16% nos lucros”, precisa Manuel), antes de anunciar perspectivas radiantes para os painéis solares – graças à “consciência ambiental”! “Se acreditarmos no presidente, eles já têm encomendas garantidas até 2012. Então, por que nos ameaçar constantemente de demissão?”, indigna-se Rogelio. “A crise econômica existe de fato,” acrescenta Cotta, “mas ela é também um pretexto para manter os funcionários desmobilizados e deixar de lado qualquer possibilidade de aumento salarial”.

Para as organizações patronais, “em tempos difíceis” esse tipo de reivindicação seria “inoportuna”. Mas isso não é o mais importante, pois, de acordo com Claudio Arriola, presidente em Tijuana da Câmara Nacional da Indústria Eletrônica e das Telecomunicações (Canieti), mesmo que ainda restem alguns meses turbulentos, o crescimento econômico se aproxima. O presidente Calderón havia feito exatamente o mesmo discurso na véspera, afirmando que “os sinais de retomada se multiplicam”.

Se o otimismo domina a imprensa internacional, a realidade local parece colocá-lo à prova. A indústria eletrônica, setor que mais emprega na cidade, não está em alta. Há dez anos, os proprietários falavam de Tijuana como o “sul do Vale do Silício californiano”, a “capital mundial da televisão” e a “cidade do pleno emprego”. Os entusiastas das maquiladoras não se cansavam de elogiar um modelo que havia atraído milhões de dólares em investimentos estrangeiros, exaltando o fato de que sete em cada dez televisores vendidos nos Estados Unidos eram fabricados em Tijuana.

De 1994, ano de assinatura do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (NAFTA), a 2001, houve de fato uma expansão prodigiosa. O setor apreciava muito as pequenas mãos ágeis dos operários e as autoridades não fiscalizavam a utilização de produtos poluentes, principalmente o chumbo.

Às portas da Califórnia, as maquiladoras contratavam migrantes para produzir os aparelhos eletrônicos cujo consumo aparentemente jamais cairia. “De 1994 a 2000, tivemos uma economia de pleno emprego em Tijuana, com apenas 1% de desocupados”, explica Cuauhtémoc Calderón, pesquisador em economia do Colégio da Fronteira Norte de Tijuana. “Em toda a zona fronteiriça, as maquiladoras tornaram-se uma faixa de contenção da imigração. Mas esse modelo de empresa é totalmente isolado do resto da economia e não produz efeitos estruturais em outros setores: os materiais são importados, montados e exportados. As maquiladoras não puderam absorver a migração massiva a que assistimos e a desregulamentação brutal de nossa economia provocou o deslocamento de 500 mil mexicanos por ano, um fenômeno que um país normalmente vive apenas em tempos de guerra”, diz ele.

As primeiras falhas do modelo apareceram com o novo milênio: a recessão de 2001 nos Estados Unidos provocou a demissão de 200 mil trabalhadores nas maquiladoras da fronteira. Em 2002, o setor eletrônico demitiu 31% de sua mão de obra, sendo 27% em Tijuana. Isso porque, como explica Leticia Hernandez, especialista nas questões de investimentos, “Tijuana é totalmente dependente dos Estados Unidos. Até 2008, 78% do investimento direto estrangeiro destinado à zona de fronteira era americano”. E conclui: “Portanto, é evidente que a crise lá provocou um desemprego inédito aqui”.

No segundo semestre de 2009, a taxa de desemprego oficial em Tijuana (7%) está maior do que a média nacional (5%) e a economia informal ainda ocupa, como no resto do país, a metade da população ativa. O despertar é amargo: “Não houve transferência de tecnologia e, em quatro décadas, a criação de postos de engenheiros e técnicos foi decepcionante”, analisa a socióloga Cirila Quintero, especialista em maquiladoras, do Colégio Superior da Fronteira Norte de Matamoros. Em Tijuana, 13% dessas empresas não dispõem de nenhum engenheiro e 65% empregam de um a dez. Da mesma forma, 73% das maquiladoras em eletrônica não possuem centros de pesquisa e desenvolvimento, e metade dessas empresas monta apenas uma variedade de produto. “As maquiladoras sozinhas não criam desenvolvimento, mas apenas um crescimento desequilibrado que tem como principal consequência empregos precários e mal remunerados”, lamenta a pesquisadora.

Essa economia de exportação, totalmente dependente do grande vizinho do norte, já estava se desacelerando antes da crise. A entrada da China na Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001 havia modificado o cenário. “Há dez anos observamos abusos cada vez mais escandalosos, além das demissões não indenizadas,” constata Cotta. “As fábricas se negam a pagar qualquer coisa e até mesmo a oferecer proteção contra os produtos perigosos. Mas como não há mais trabalho, as pessoas não dizem nada.”

Sem escolha

Atualmente fala-se muito da Power Sonic, uma maquiladora que fabrica baterias para aparelhos eletrônicos. “Antes, ninguém queria trabalhar lá porque é preciso manipular chumbo o dia inteiro,” explica Rogelio. “Hoje, há fila na porta da fábrica todas as manhãs”. Aos 36 anos, com dois filhos e um financiamento para sua casa, Netzahualcóyotl afirma que não teve escolha quando perdeu seu emprego na Sohnen. Ele quer crer na qualidade do equipamento de segurança que utiliza: “Os chefes dizem que apenas quem não os utiliza corretamente fica doente”. Ele ainda não foi atingido – segundo os critérios da empresa, que realiza testes sanguíneos mensais. “Eles não nos dão os resultados, mas se a taxa de chumbo no sangue está muito alta, nos mudam de posto. É assim que sabemos quando estamos doentes.”

Componente essencial de todo equipamento eletrônico, o chumbo é onipresente, seja nos temores ou nos rios. Durante seis anos, o bairro de Chilpancingo, localizado abaixo dos parques industriais, lutou contra os resíduos de chumbo abandonados na natureza. Graças à ajuda de uma organização não-governamental (ONG) americana, a Environmental Health Coalition, em 2008 foram enviadas 3 mil toneladas de terra aos Estados Unidos para despoluição e 8 mil toneladas foram vedadas sob uma capa de concreto.

Quem arcou com os custos foram os governos dos dois países, e não as empresas. “Eles comemoravam diante da imprensa enquanto nós, durante anos, gritávamos à toa quando nasciam crianças sem cérebro ou que morriam precocemente. Infelizmente, isso não mudou nada, ainda não há um controle sério sobre os resíduos abandonados pelas empresas, nem sobre a saúde dos trabalhadores”, lembra Yesina Palomares, uma das colaboradoras da organização em Chilpancingo. Carmen, que trabalhava na Panasonic, é testemunha: “Eu selava chumbo nas placas eletrônicas e sentia nitidamente que respirava fumaça a cada operação”. Em seis meses, apareceram manchas em seu rosto, cansaço generalizado e dores nos rins. “O médico da Panasonic garantia que não era nada, e depois um clínico geral fez exames e me disse: ‘ou você para, ou terá uma leucemia em breve’”, conta.

Carmen obedeceu porque, na época, era possível mudar facilmente de maquiladora. Hoje é diferente. “Somos menos criteriosos”, afirma. No seu bairro, o número de desempregados vem aumentando desde o fechamento da Sony. Alguns de seus vizinhos decidiram voltar aos estados de origem. “Eu vim de Chiapas quando tinha 13 anos. Em três décadas aqui, nunca tinha visto ninguém voltar ao sul”, diz ela.

A crise é sentida em Tijuana em especial por aqueles que têm mais de 50 anos. Desde sempre, as maquiladoras contratam trabalhadores jovens. “As pessoas que atingiram essa idade realmente sofrem,” explica Netzahualcóyotl. “Trabalham como loucos para não ouvir ‘você não tem ritmo’. Têm a melhor produtividade da empresa, mas custam caro demais. Por mais que trabalhem duro, não adianta: serão demitidos.”

Foi o que aconteceu com Delfina, aos 54 anos: “Me lembro que no final eu fazia o trabalho de três pessoas, tinha dor de cabeça, meu nariz sangrava e meu supervisor estava o tempo todo atrás de mim, dizendo para eu me apressar. Depois decidiram nos fazer trabalhar de pé, porque sentados éramos menos eficazes. Não podíamos falar, ir ao banheiro, nem mascar chicletes”.

Delfina foi demitida sem explicações em novembro de 2008. Não recebeu qualquer indenização, nem mesmo sua última semana de trabalho foi paga. Prestou queixa e aguarda que o Conselho de Conciliação, o equivalente a um tribunal de pequenas causas trabalhistas, dê o veredicto. Atualmente ela sobrevive com apenas 200 pesos por semana (R$ 26), enviados por uma de suas filhas, que tem uma mercearia. E divide a quantia por três pessoas. “Fazemos duas refeições por dia”, afirma. Depois de 25 anos na maquiladora, Delfina não tem aposentadoria nem economias. Criou sozinha seus sete filhos e, como muitas mães solteiras, trabalhou à noite durante anos, enfrentando todo o tipo de percalços.

Na Mattel, fábrica de brinquedos, Delfina teve de lutar por seus direitos. “Quando a empresa em que eu trabalhava foi comprada pela Mattel, eles quiseram me demitir sem pagar meus direitos. Como eu recusei, eles me sequestraram.” Ela passou uma noite inteira trancada em um escritório com um guarda e foi obrigada a aceitar um cheque de 2 mil pesos (R$ 263) para poder sair na manhã seguinte. “Meus filhos estavam esperando, entende?” Com a ajuda do Cittac, ela denunciou na televisão e no rádio o ocorrido, mas ainda assim a Mattel não fez absolutamente nada. Além disso, a Justiça considerou que não houve qualquer “reclusão forçada”, pois não foi feito um pedido de resgate.

Hoje Delfina sabe que não encontrará trabalho em uma maquiladora. “É impossível na minha idade, pois nem os jovens eles contratam mais”, diz ela, mostrando seu enteado, desempregado aos 20 anos. “Há quem tente vender bugigangas, mas somos todos pobres aqui, não podemos comprar grandes coisas.” Seu bairro se parece com muitos outros de Tijuana: no início a ocupação da área era ilegal, depois foi regularizada. No entanto, as autoridades nunca asfaltaram as ruas e a comunidade teve que se organizar para obter água e eletricidade. Quando a casa de seu filho pegou fogo, os bombeiros não vieram e a família perdeu tudo. “Isso não é normal,” indigna-se, “mas a quem reclamar? A maquiladora em que ele trabalha não ajudou com nada, apenas seus colegas contribuíram. A solidariedade é a única coisa que ainda funciona aqui”.

Anne Vigna é jornalista.
1 Ler notadamente Janette Habel, “Entre le Mexique et les Etats-Unis, plus qu’une frontière” e Anne Vigna, “Sem tortillas nem empregos”, Le Monde Diplomatique, respectivamente dezembro de 1999 e março de 2008.
2 Mais informações em: www.cittac.org
3 Mais informações em: www.aim.org.mx
4 Jorge Carrillo e Redi Gomis, La Maquiladora en datos, resultados de una encuesta, Colegio de la Frontera Norte, Tijuana, 2004.

Le Monde Diplomatique Brasil

Detroit, retrato do pós-crise

Detroit, retrato do pós-crise

Em razão da sua especialização funcional, Detroit revelou-se muito vulnerável às variações dos ciclos econômicos e às mutações do sistema capitalista. Agora, a cidade do automóvel, à beira da falência, é também a das charretes e das cadeiras de rodas elétricas, que são vistas circulando pelos acostamentos das avenidas
por Allan Popelard, Paul Vannier
Está sentindo? Você está sentindo esse cheiro?”. Dave, um rapaz de cerca de 30 anos, mora na Seven Miles Road, uma avenida situada no coração dos bairros pobres de Detroit, os quais ocupam uma faixa de dez quilômetros de largura entre o downtown (centro), reconhecível pelos seus arranha-céus, e os suburbs, os bairros abastados mais distantes, que se espalham pela periferia da cidade. Na frente de sua casa, do outro lado da rua, há cinco amontoados de cinzas. Trata-se dos restos de cinco casas que dois meses antes ainda estavam ocupadas. “Mais uma queimou na noite passada. Toda semana, pelo menos uma casa é consumida pela fumaça no bairro. As pessoas fazem isso para receber o prêmio do seguro e, em seguida, vão se instalar na periferia. Ninguém mais quer morar aqui”, diz Dave.

No gueto de Detroit, a cidade vai sendo devorada pelas chamas e desaparece aos poucos. Dela subsistem apenas fragmentos. Em determinados “blocos1”, não sobraram mais do que duas ou três residências habitadas. Com isso, Detroit passou a se parecer com uma cidade submersa: as carcaças carbonizadas, os estacionamentos abandonados e as usinas desativadas a transformaram num vasto terreno baldio. Na paisagem deserta, as ervas daninhas e as árvores vão ganhando terreno, destruindo as cercas das casas devastadas. Tudo o que é urbano vai se decompondo. A paisagem torna-se selvagem quando nela se misturam o canto do galo e os sussurros incessantes dos gafanhotos. Em Detroit, os ruídos da natureza ressoam por toda a cidade, quase rural.

Se 35% do território do município está desabitado2 é porque no espaço de meio século − o que vem a ser um fato único na história urbana mundial − a Shrinking City (a cidade que está encolhendo) perdeu mais da metade de sua população, ou seja, mais de um milhão de pessoas3. Excetuando-se a movimentação nas redondezas da universidade ou nos horários de saída das escolas, apenas alguns poucos pedestres vagueiam pelas calçadas da Woodward, da Michigan ou da Gratiot, as principais avenidas de Detroit. Com a crise dos subprimes, o seu despovoamento agravou-se mais ainda.

De fato, a maior cidade do Michigan é uma das mais atingidas pela venda desses empréstimos de taxas variáveis que os liberais instituíram como um modelo de integração na sociedade de consumo capitalista. A falência de milhares de devedores, incapazes de enfrentar os aumentos das mensalidades, acelerou o ritmo das expropriações. Segundo a prefeitura, 67 mil habitações teriam sido penhoradas entre 2005 e 2008. Em Detroit, as destruições causadas pela mais recente crise do sistema capitalista parecem ser tantas que seus habitantes foram atingidos em cheio por todos os efeitos de um processo no qual o desmoronamento da esfera financeira arrastou de roldão uma parte da esfera produtiva. Com efeito, o naufrágio do sistema bancário, ao tornar quase impossível o acesso ao crédito, que é o motor do consumo, desfechou golpes muito duros nas Big Three – as “Três Grandes”, General Motors, Ford e Chrysler, têm sua sede social em Detroit ou nas redondezas –, o que provocou a queda das vendas de carros nos Estados Unidos. Excessivamente endividadas, subcapitalizadas e vítimas da concorrência impiedosa das montadoras japonesas, a GM, a Chrysler e a Ford devem sua sobrevivência apenas ao plano de salvamento do governo federal, o que não impediu, no entanto, o desemprego parcial e as demissões.

Entre janeiro de 2008 e julho de 2009, a taxa de desemprego em Detroit quase dobrou, passando de 14,8% para 28,9%. Segundo Kurt Metzger, diretor de uma firma de estudos demográficos local, a taxa de desemprego real ultrapassaria até mesmo 40%4. “A situação está pior do que antes”, conta Dave. “É preciso sobreviver. Eu consigo me virar, fazendo bicos aqui e ali, mas a minha mulher não está encontrando trabalho. A GM e a Chrysler estão à beira da falência, enquanto a Ford mal consegue manter-se. Não há mais usinas por aqui.” Os arranha-céus abandonados do centro da cidade, que mais se parecem com hastes sem bandeiras, agora despontam como os símbolos da decadência.

Em razão da sua especialização funcional, Detroit revelou-se muito vulnerável às variações dos ciclos econômicos e às mutações do sistema capitalista5. O fordismo – cuja matriz, a usina Crystal Palace, foi construída em 1908 por Albert Kahn – havia transformado a cidade das Big Three no centro mundial do capitalismo industrial. Durante a primeira metade do século XX, a procura de mão-de-obra por parte de usinas dedicadas à produção de massa e os salários relativamente elevados oferecidos aos operários do setor automobilístico atraíram um grande número de trabalhadores: negros que fugiam do terror dos estados racistas do Sul, além de estrangeiros vindos da Grécia e da Polônia, entre outros.

Massificação de consumo

Desde 1945, Detroit nunca parou de perder homens e atividades. Essa ruptura na história da cidade marca a transição rumo a um estágio pós-fordista do capitalismo americano. Ao novo modelo que surgiu corresponderam novos espaços de acumulação das riquezas: o aparelho de produção industrial dos Estados Unidos deu início a um movimento de desconcentração do Nordeste e do Meio-Oeste industrial rumo ao Sul, onde o custo do trabalho, em razão da fraqueza dos sindicatos, era menor. Na escala da aglomeração, a democratização do automóvel e as transformações do sistema produtivo provocaram um espalhamento das atividades. Um modelo urbano policêntrico, organizado em torno de polos de empregos e com serviços situados na periferia, desenvolveu-se progressivamente. Atraídas pelas novas perspectivas de trabalho nos subúrbios e pelo sonho americano de adquirir a propriedade de uma casa, as classes média e alta brancas foram se instalar nos suburbs.

Contudo, esse êxodo das classes médias brancas rumo aos subúrbios também foi motivado pelo medo e o racismo. Enquanto as primeiras partidas ocorreram no decorrer dos anos 1950, quando do início da desindustrialização, a maior parte da população branca tomou por pretexto a revolta dos negros de 1967 – quando 43 pessoas morreram, o exército federal enviou tanques para deter a insurreição – para migrar. Foi então que apareceram representações apocalípticas que atribuíram a Detroit o apelido de Murder City (cidade do crime) ou de Devil City (cidade do diabo), as quais exerceram o papel de profecias que não raro acabariam se realizando6.

Apartheid americano

O medo e o racismo também se tornaram fatores da segregação econômica do espaço. A força das imaginações e o poder performativo das palavras explicam em parte por que Detroit é a única grande cidade dos Estados Unidos que não conhece nem o aburguesamento do seu centro, nem a “expansão multicultural”. Ela é uma das metrópoles americanas mais pobres – um terço dos habitantes vive abaixo do limite da pobreza – e onde existe a maior segregação – cerca de nove habitantes em cada dez são negros. Esse “apartheid americano” não se observa entre um bairro e outro, como na maior parte das cidades dos Estados Unidos, mas sim entre a cidade-centro de um lado e os suburbs do outro.

Na Eight Miles Road, uma ampla avenida que sinaliza o limite setentrional da cidade de Detroit, o terrapleno traça uma fronteira entre dois mundos. De um lado, a boa sociedade dos suburbs, com suas elegantes residências rurais e seus gramados impecáveis; do outro, o aglomerado de favelas com sua população vítima do desemprego e dos efeitos de um sistema de saúde privado excludente.

A cidade do automóvel, à beira da falência7, é também a das charretes e das cadeiras de roda elétricas que são vistas circulando pelos acostamentos das avenidas. Os indicadores de saúde da população equivalem aos de um país em desenvolvimento. A taxa de mortalidade infantil é de 18 por mil, ou seja, três vezes maior do que a do restante dos Estados Unidos e equivalente à do Sri Lanka.

“Quem fica sem trabalho perde o seu seguro de saúde”, ressalta Dave. “Então, quando ficam desempregados, muitos deixam de ir ao médico. Na esquina dessa rua, você pode obter uma consulta e ser tratado. Isso custa 20 dólares, mas com a condição de que uma pessoa de sua família esteja trabalhando e que ela aceite ser a sua fiadora. Não espere nada além de uma simples consulta de rotina; além disso, você será o último paciente da sala de espera a ser atendido.” Portanto, a explosão da taxa de desemprego deixa prever uma deterioração ainda maior da saúde pública.

E como imaginar que a tendência possa ser revertida quando, muito além do caráter conjuntural da crise, é a própria estrutura da cidade, a sua forma em anel, que representa um problema? Enquanto 86% dos empregos estão situados na periferia, um quarto dos habitantes não possui veículo algum (o número oficial seria de 33%, mas Kurt Metzger aponta que um grande número de motoristas dirige sem seguro, o que os exclui das estatísticas). Numa cidade organizada por e para o automóvel, recortada por autoestradas, quadriculada por amplas avenidas, os deslocamentos, sem um veículo, se transformam em desafios. A questão social também é uma questão de mobilidade. Para aqueles que não podem contar com a solidariedade da família ou dos vizinhos, nem com o uso comunitário de veículos, resta o recurso prático do pobre: os ônibus equipados com porta-bicicletas. Portanto, a organização do espaço contribui para reproduzir as desigualdades sociais, confinando uma parte do proletariado urbano no interior de um território encravado.

Essa organização também explica a exclusão dos pobres de Detroit em matéria de acesso aos tratamentos médicos. De fato, muitos médicos generalistas optaram por aumentar sua renda instalando-se nas periferias abastadas, longe dos pobres, insolventes. Vale lembrar que a cidade está na vanguarda da pesquisa científica e que ela possui alguns dos polos de saúde mais reputados do território americano. Mas quem pode se beneficiar desses hospitais de alto nível, a não ser os ricos habitantes dos suburbs?

Portanto, a reforma do sistema de seguro-saúde, que foi uma promessa de campanha do presidente Barack Obama, revela ser uma questão de vida ou morte para uma grande parte da população da cidade. Louise é uma antiga funcionária da municipalidade. Nós a encontramos no East Side, um desses bairros afro-americanos devastados. “Tenho 74 anos. Portanto, vocês têm ideia do quanto estou preocupada com os debates a respeito do sistema de seguro-saúde. Votei em Obama porque eu pensava que ele seria capaz de solucionar o problema. O senhor deve imaginar o quanto estou precisando ser atendida. Com a Medicare [o sistema público que cobre as pessoas de mais de 65 anos], posso contar com uma cobertura de 80% das despesas, mas os 20% que sobram representam custos muito acima do que eu posso pagar. Tenho apenas o suficiente para pagar meus medicamentos. Eu trabalhei durante 29 anos. Paguei impostos e considero essa situação injusta”, diz.
Nesse baluarte democrata, 97% dos eleitores votaram em Obama. Sua vitória fez surgir uma onda de esperança. Um ano depois, Luther Keith, presidente da Arise, uma associação que oferece tratamentos gratuitos e auxílio escolar para os habitantes dos bairros pobres, se recorda com emoção daquele dia tão peculiar para os negros de Detroit: “Havia festas por toda parte. Aquilo foi extraordinário. Nós tínhamos o sentimento de que algo formidável havia acontecido com alguém da família”.

Mas, nesse local histórico do afrocentrismo e da luta em prol dos direitos cívicos, é mesmo o programa econômico e social do candidato democrata que melhor explica a escolha dos eleitores, e não sua origem comunitária. “Nós não votamos em Obama por ele ser negro, mas sim por conta do seu projeto, e principalmente da sua vontade de reformar nosso sistema de seguro-saúde”, insistem todos os nossos interlocutores.

Por enquanto, os cidadãos da cidade permanecem sinceramente benevolentes para com o novo presidente, ainda que se mostrem preocupados com os inúmeros obstáculos que ele vem encontrando no caminho. “Certas coisas requerem tempo para acontecer. Se você considerar tudo o que fez Obama ao longo dos últimos meses, já é mais do que qualquer outro presidente fez antes dele”, garante Luther Keith, que acrescenta: “Mas não há dúvida de que o trabalho ainda não foi concluído. Então, para todos aqueles que perderam seu emprego, é muito difícil dizer que está tudo bem”. Todos os habitantes de Detroit vêm acompanhando atentamente as negociações do presidente com os lobbies, os republicanos e a oposição entre os próprios democratas. Para um bom número dos seus eleitores, a esperança transformou-se aos poucos em paciência. Mas Luther Keith avisa: “Se ele fracassar, a decepção será imensa”.

De fato, o governo federal tornou-se o último recurso, pois a prefeitura não dispõe de nenhuma margem de manobra. O desmoronamento de sua base fiscal, em consequência da fuga das classes médias e dos capitais, colocou a cidade numa situação de quase falência. O Conselho Municipal Democrata parece impotente diante da necessidade de frear o ciclo da pauperização. Em relação à região metropolitana, sua integração continua sendo um desafio insolúvel. Os residentes dos subúrbios se recusam a compartilhar a riqueza dos seus territórios. Enquanto isso, os habitantes negros da cidade avaliam que a luta para conquistar sua soberania política foi árdua demais para aceitarem dissolvê-la numa autoridade metropolitana que não estaria nem um pouco interessada em solucionar seus problemas.

A fraqueza dos sindicatos
Apesar do desastre que se alastrou, não há greves nas usinas nem manifestações nas ruas. Destruídos pela “economia de cassino”, os pobres lotam os salões de jogos de azar, cuja construção, livre de impostos, constituiu a principal política de desenvolvimento de Detroit no final dos anos 1990. A cidade parece distante de sua tradição radical, daquela que é contada nos livros, das grandes greves dos trabalhadores de 1937 e 1945 até a eleição do primeiro prefeito negro, Coleman Young, em 19738, passando pelas redes abolicionistas, a luta pelos direitos cívicos, o surgimento do Black Power ou as revoltas afro-americanas de 1833, 1918, 1943 e 1967.


Até mesmo o United Auto Workers, o todo-poderoso sindicato americano do automóvel, renunciou ao combate, a ponto de se comprometer perante os patrões da General Motors e da Chrysler a não organizar greves em tempo de crise. Ninguém aqui parece querer se revoltar contra um sistema do qual Detroit desponta como a concretização urbana mais avançada. “O capitalismo é a América. Ele construiu nossa cidade. É como o ar que você respira. Não dá para trocar por outra coisa”, explica Keith.

Os empreendedores da Techtown – “Vilarejo Tecnológico”, um conglomerado de empresas de orçamento colossal –, assim como os representantes políticos, apostam na economia ecologicamente correta. A construção, no local onde a cidade foi fundada, do Renaissance Center, encomendado por Henry Ford II, apenas quatro anos depois das revoltas de 1967, constitui o reflexo mais evidente dessa tendência. Confortavelmente instalados às mesas do restaurante situado no 73º andar desse arranha-céu, que abriga desde 1995 a sede da GM, os homens de negócios almoçam. Diante do panorama da falência se estende uma paisagem de relíquias onde os sinais da violência se sedimentaram. Como expressar o desmoronamento e a catástrofe lenta?

“Para muitos americanos, Detroit equivale a Ground Zero9”, afirma Keith. Não se trata de um Ground Zero que surgiria num instante de fulguração, tampouco de uma avalanche enlouquecedora de eventos, e sim de um zero alcançado pacientemente, numa contagem regressiva que parece nunca acabar. Detroit é o produto obstinado de um sistema que, em primeiro lugar e sempre, obriga todos a se perguntarem como acomodar sua vontade à prova de ter que continuar. Estaríamos diante da cegueira dos dominados ou do cinismo dos dominantes? Keith conclui, sorrindo: “O otimismo é a nossa única solução”.

Allan Popelard é geógrafo na Universidade Paris-VIII.

Paul Vannier é escritor.

1 Quarteirões de casas, de cerca de trinta habitações, característicos da cidade norte-americana.
2 Detroit Free Press, 7 de setembro de 2009.

3 Enquanto comportava 1,8 milhões de habitantes em 1950, atualmente ela teria entre 912.062 e 777.493, dependendo dos censos. Aliás, a diferença importante entre as duas estimativas, no que vem a ser um caso único nos Estados Unidos, andou alimentando vivas polêmicas. Com efeito, do censo dependem o peso político da cidade e o montante das subvenções que ela pode pleitear.
4 Apenas as pessoas à procura de empregos devidamente inscritas nos registros da Agência para o Emprego são levadas em conta no cálculo da taxa de desemprego.
5 Segundo André Kaspi em seu livro intitulado Les Américains (Seuil, Paris, 1999), a crise de 1929 teve como consequência, entre outras, a redução de 71% dos funcionários da Ford.
6 Ler Jean-François Staszak, “Détruire Détroit. La crise urbaine comme produit culturel”, Annales de géographie, Paris, n° 607, maio-junho de 1999.
7 A dívida da cidade em 2009 era de US$ 300 milhões, e o déficit, de US$ 80 milhões. Detroit Free Press, 11 de setembro de 2009.
8 Primeiro prefeito negro de Detroit (1973-1993), membro do Partido Democrata, ele afirma a identidade negra da sua cidade rebatizando ruas e erigindo monumentos que celebram as glórias das grandes figuras do movimento afro-americano, como Harriet Tubman.
9 A expressão Ground Zero indica o local preciso onde ocorreu uma explosão. Desde 11 de setembro de 2001, ela evoca o local do World Trade Center, em Nova York.

Le Monde Diplomatique Brasil

O que causou a crise econômica mundial?

Inadimplência nos Estados Unidos foi responsável pela recessão
No Brasil, crise gerou corte de vagas e manifestações por parte dos
trabalhadores no 1o de maio. Foto: Fotografia/ABr
A causa da crise que vivemos foi o desequilíbrio na maior economia do mundo, os Estados Unidos. E os ataques de 11 de setembro têm a ver com isso. "Depois da ofensiva terrorista, o governo americano se envolveu em duas grandes guerras, no Iraque e Afeganistão, e começou a gastar mais do que deveria", diz Simão Davi Silber, professor do departamento de economia da Universidade de São Paulo (USP). Para piorar a situação, ao mesmo tempo em que o país investia dinheiro na guerra, a economia interna já não ia muito bem – uma das razões é que os Estados Unidos estavam importando mais do que exportando. Em vez de conter os gastos, os americanos receberam ajuda de países como China e Inglaterra. Com o dinheiro injetado pelo exterior, os bancos passaram a oferecer mais crédito, inclusive a clientes considerados de risco. Aproveitando-se da grande oferta a baixas taxas de juros, os consumidores compraram muito, principalmente imóveis, que começaram a valorizar. "A expansão do crédito financiou a bolha imobiliária, já que a grande procura elevou o preço dos imóveis", diz Silber. Porém, depois disso, chegou uma hora em que a taxa de juros começou a subir, diminuindo a procura pelos imóveis e derrubando os preços. Com isso, começou a inadimplência – afinal, as pessoas já não viam sentido em continuar pagando hipotecas exorbitantes quando as propriedades estavam valendo cada vez menos.

Nesse momento, faltou dinheiro aos bancos, que em um primeiro momento foram ajudados pelo governo americano. Só que, ao mesmo tempo, surgiram críticas a essa política de socorro aos banqueiros. Frente à pressão política, a Casa Branca decidiu que não ia mais interferir, deixando o banco Lehman Brothers quebrar. O fechamento do quarto maior banco de crédito dos Estados Unidos causou pânico e travou o crédito. Chegou a crise, que prejudica também o nosso país. "Sem crédito internacional, também diminui o crédito no Brasil, caem as exportações e o preço das nossas mercadorias aumenta o risco e a taxa de juros", explica Silber. O economista também afirma que as recessões são recorrentes, mas essa é maior do que de costume. "Uma crise dessa intensidade não é comum, a mais parecida com ela foi a de 1929", afirma Silber.
Revista Nova Escola

A China encara a crise

O combate seus efeitos ao estilo de Pequim: um pacote de 586 bilhões de dólares, estímulo ao consumo e obras monumentais. O resto do mundo torce para que funcione
Zhang Wei/AFP Em Pequim, 30 000 pessoas buscam trabalho numa feira de recolocação: o desafio de gerar empregos
Luciene Antunes, Fabiane Stefano e Tiago Maranhão
"Negócio da China" é uma expressão gasta que caracterizava bem o curtume Vitapelli. A empresa foi criada em 2000 e, num período de sete anos, seu faturamento saiu de zero para 180 milhões de dólares. As taxas de crescimento nunca ficavam abaixo dos dois dígitos anuais. A produção e o número de funcionários multiplicavam ano após anos conforme a demanda crescia. A Vitapelli era uma dessas empresas surgidas no seio da globalização e que se davam bem só graças a ela. Quase metade de seus couros, produzidos em Presidente Prudente, no interior paulista, viajava 19 000 quilômetros até chegar à cosmopolita Xangai, o centro financeiro da nova China. Lá, eles viravam a principal matéria-prima da Natuzzi China Limited, subsidiária da fabricante italiana de móveis Natuzzi.

A Vitapelli foi um sucesso enquanto o ciclo de crescimento que alimentou a globalização funcionou. Nos últimos meses, os telefonemas da Natuzzi China aos vendedores de Presidente Prudente rarearam. A produção de móveis foi reduzida à medida que os consumidores americanos - o grande mercado da empresa - deixaram de comprar novos sofás para a sala de estar e passaram a se preocupar com o emprego e as contas a pagar. A Natuzzi teve de reduzir o número de funcionários em Xangai. Como numa onda, a Vitapelli demitiu 60% de seus quadros nos últimos meses. A história se repete em Portão, cidade de 30 000 habitantes no Rio Grande do Sul. A produtora de couros AP Müller diminuiu 80% de sua produção nos últimos meses. Seu principal cliente é a Sunex, fabricante de cintos e bolsas instalada na região do Cantão. "Só voltaremos a comprar mais do Brasil quando a situação melhorar", diz James Wu, presidente da Sunex. "Nosso destino sempre esteve muito ligado aos chineses e, agora, nossa recuperação depende deles", diz Cezar Müller, dono da AP Müller.


Eis um quadro que vai muito além de um mero problema setorial. Nos últimos anos, a existência e o crescimento de várias empresas, no Brasil e no mundo, foram vinculados à China. Com sua abundância de commodities, o Brasil foi um dos grandes beneficiados pelo crescimento chinês. Em 2008, o país foi nosso segundo maior parceiro comercial, ficando atrás apenas dos Estados Unidos. No final da década de 80, a China importava do Brasil por ano o mesmo volume de mercadorias que o Paquistão nos dias de hoje. No ano passado, comprou 16,4 bilhões de dólares em produtos nacionais, sobretudo minério de ferro e soja. O minério - sobretudo o da Vale - sustentou as formidáveis obras de infraestrutura; a soja, a inclusão de milhões de chineses miseráveis no mercado consumidor. Em troca, a China despejou no Brasil uma relação de produtos que iam de máquinas pesadas a quinquilharias eletrônicas. Em duas décadas, as importações de mercadorias chinesas cresceram 12 000%. "A China é hoje quase uma economia complementar à brasileira", afirma Cláudio Haddad, presidente da escola de negócios Ibmec São Paulo.

Os economistas de Pequim gostam de comparar a China a um elefante numa bicicleta. Ele só se equilibra se conseguir pedalar rapidamente. Caso contrário, pode cair. "E aí a Terra treme", conclui o jornalista britânico James Kynge em seu livro A China Sacode o Mundo. O mundo teve dois grandes motores de crescimento nos últimos anos. O principal deles, os Estados Unidos, parou. Resta a China. E é por isso que, hoje, os olhares do mundo se dividem entre o que Barack Obama faz na Casa Branca e o que os sucessores de Deng Xiaoping decidem no Palácio do Povo. Nem mesmo os mandarins do Partido Comunista Chinês, hábeis fabricantes de estatísticas, desmentem que o elefante diminuiu o ritmo das pedaladas. Neste ano, segundo estimativas do governo, a China crescerá 8%. O Fundo Monetário Internacional projeta 6,7%. Trata-se de uma enormidade diante dos índices deprimentes de países europeus, do Japão ou dos Estados Unidos. Mas não deixa de ser um número preocupante para um país que precisa incluir 24 milhões de pessoas por ano no mercado de trabalho. Uma queda de três ou quatro pontos percentuais no PIB chinês significa cenas como a da feira de recolocação de desempregados, recentemente ocorrida em Pequim e que recebeu 30 000 pessoas em apenas dois dias. Significa produção menor e redução de compras de matérias-primas, afetando diretamente economias como a brasileira.

No final do primeiro semestre de 2008, a indústria brasileira de celulose comemorou um aumento de 90% nas vendas em relação ao mesmo período de 2007. Os fabricantes de embalagens chineses foram fundamentais para esse resultado. Em agosto, a festa transformou-se em apreensão. Clientes ocidentais reduziram as compras na China. A demanda por embalagens caiu imediatamente - assim como a de celulose brasileira. O ano fechou com um crescimento de 60% nas vendas do produto. Mas com o número veio a dúvida: se os chineses, responsáveis por 17% das exportações brasileiras de celulose, não se recuperarem, como será 2009?

Uma diminuição brusca no crescimento do PIB chinês significa também que eles se tornarão mais agressivos diante do mercado global - um argumento a mais para os defensores do protecionismo. Em janeiro, as exportações totais chinesas caíram 17,5%, o pior resultado na última década. A reação dos fabricantes foi tentar desovar seus estoques de produtos longe dos mercados mais afetados pela crise. O Brasil é um dos alvos preferenciais. No setor de calçados, o volume de importações cresceu 35% apenas em janeiro. "A maior parte dessa enxurrada anormal de produtos do exterior veio da China", afirma Milton Cardoso, presidente da Vulcabras/Azaleia, um dos maiores fabricantes nacionais do setor. Com 80% das vendas concentradas no mercado brasileiro, a Vulcabras/Azaleia sentiu o golpe. No fim do ano, devido aos estoques em alta provocados pela falta de compradores, a empresa concedeu férias coletivas de 20 dias a seus 31 000 funcionários. Nas primeiras semanas de fevereiro, foi obrigada a repetir a dose com um grupo de 2 300 empregados. "Se o cenário não mudar, teremos de adotar medidas mais radicais", diz Cardoso. Outros fabricantes já recorreram a esse remédio amargo. No último trimestre de 2008, o setor calçadista demitiu 40 000 pessoas.

A turbulência que vem ocorrendo na China mostra como a crise atual tem sido devastadora sobre os prognósticos apressados e demasiadamente otimistas. Quando o vendaval financeiro começou a corroer as estruturas das economias dos Estados Unidos e de boa parte da Europa, alguns analistas chegaram a sustentar que a China não só poderia escapar dos problemas como seria capaz de substituir as tradicionais forças capitalistas ocidentais na função de locomotiva encarregada de puxar o crescimento mundial. A tese do "descolamento" continha o erro básico de subestimar o grau de dependência da China em relação aos mercados internacionais. Desde o início de seu processo de abertura, há 30 anos, a economia moderna da China foi concebida dentro do modelo da globalização. A conquista de mercados internacionais por seus produtos é um dos pilares de sustentação do modelo de crescimento do país. O fato de as exportações responderem atualmente por mais de um terço do PIB chinês representa a prova eloquente da missão cumprida à risca.

Agora, quando os seus principais parceiros comerciais já baixaram na UTI financeira, não há como o governo de Pequim construir uma grande muralha para evitar o contágio. A dúvida é quão profundo ele será e em que medida o Estado chinês será eficiente para combater seus efeitos. "Existe uma onda de pessimismo ao redor do desempenho da China, mas ainda é muito cedo para avaliar a extensão da crise no país", afirmou a EXAME o economista Tarun Khanna, professor da Universidade Harvard e autor do livro Bilhões de Empreendedores, que retrata a ascensão de China e Índia no cenário internacional.

A onda de pessimismo a que Khanna se refere está baseada em números bem menos impressionantes do que os apresentados no passado recente. O ritmo de crescimento da produção industrial era três vezes maior em março de 2008 em comparação a dezembro do mesmo ano. A inflação alta, fruto dos tempos em que o crescimento vigoroso da economia pressionava os preços, deixou de ser um problema. A ameaça agora é a deflação. A taxa de desemprego deve chegar, segundo o governo de Pequim, a 4,6% até o final deste ano, o nível mais alto da década (veja quadro na pág. 23). Baixa em comparação à maioria dos países desenvolvidos, essa taxa já vem provocando pequenas ondas de protesto, vistas com preocupação num governo que tenta esquecer o episódio da Praça da Paz Celestial, em 1989. Províncias como Guangdong e Zhejiang, que ocupavam legiões de trabalhadores na produção de todo tipo de mercadoria destinada à exportação, sofrem mais. Calcula-se em mais de 100 000 o número de fábricas, de diversos setores, que fecharam as portas no ano passado. Por causa disso, cerca de 20 milhões de trabalhadores migrantes perderam o emprego e tiveram de retornar à sua cidade de origem, na zona rural do país. "Nos centros mais modernos e desenvolvidos, porém, esse tipo de problema ainda não ocorreu", afirma Marcos Caramuru, cônsul-geral do Brasil em Xangai.

A principal fonte da turbulência que aflige a China é externa. Os Estados Unidos e a Europa estão em ponto morto, assim como seus principais vizinhos da Ásia, um mercado estratégico para os chineses. No último trimestre de 2008, Japão, Singapura, Coreia do Sul e Taiwan começaram a acumular claros sinais de recessão. Os recém-divulgados dados sobre o desempenho japonês no último trimestre de 2008 revelaram uma retração de 3,3% do PIB, a pior desde a crise do petróleo, ocorrida há mais de 30 anos. "A queda na demanda mundial já era esperada, mas ninguém previa baixas dessa magnitude", diz a economista Linda Yuen-Ching Lim, professora especialista em mercados asiáticos da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos.

Em razão da importância da economia chinesa para as engrenagens do mundo globalizado - o país é responsável hoje por 8% do comércio internacional -, os passos dos mandarins de Pequim são objeto hoje de quase tanta atenção quanto as primeiras decisões de Barack Obama no comando dos Estados Unidos. E a reação chinesa chegou com a mesma velocidade com que novas ferrovias e prédios são erguidos no país. No final do ano passado, o primeiro-ministro chinês, Wen Jiabao, anunciou um pacote de estímulo econômico de 586 bilhões de dólares. Os recursos, que deverão ser empregados ao longo dos próximos dois anos, vão principalmente para projetos de infraestrutura e incentivos ao consumo (veja quadro na pág. 25). Recursos estão sendo alocados em áreas sensíveis, como meio ambiente, pesquisa e desenvolvimento tecnológico e saneamento básico. Com isso, o governo tenta, ao mesmo tempo, combater a inércia econômica e calar os críticos de plantão. A prioridade é o emprego, fundamental para que o mercado interno possa substituir parte das vendas para o exterior. Emprego e renda estão na base de sustentação do que o Partido Comunista Chinês chama de projeto de uma sociedade harmoniosa, uma combinação da prosperidade do capitalismo com a disciplina e o controle socialistas. Dias após o anúncio do plano, apareceram as primeiras fotos de operários chineses em ação na construção de uma ferrovia de 17,6 bilhões de dólares que cruzará o deserto no noroeste do país. Nos próximos dois anos, se tudo der certo, serão construídas mais de 70 grandes obras. Entre as mais impressionantes - pelo porte e pela velocidade de execução dos projetos - estão uma malha ferroviária de carga na província de Shanxim e uma linha de trem para passageiros ligando Pequim a Guangzhou. Custo dos dois projetos: 46 bilhões de dólares. Foi mais ou menos o que os Estados Unidos aportaram no Citi. "O governo está repetindo a estratégia de recuperação que colocou em prática durante a crise asiática dos anos 90", disse a EXAME Jianmao Wang, professor de economia na escola de negócios China Europe International Business School (Ceibs). "A vantagem é que hoje a China é mais rica, com cerca de 2 trilhões de dólares em reservas estrangeiras."

O número mágico a ser perseguido na economia da China em 2009 é 8%. Ele vem sendo repetido feito um mantra pelas autoridades do governo de Pequim desde os primeiros sinais da chegada da crise ao país. "Faremos o que for necessário para garantir um crescimento de 8% neste ano", afirmou Wen Jiabao, numa entrevista recente ao jornal inglês Financial Times. Esse índice de evolução do PIB - contestado por muitos analistas - é considerado o número mínimo para garantir paz social. "A população, que se acostumou com um longo período de quase 30 anos de crescimento robusto, pode se ressentir se ocorrer uma retração", diz Marvin Zonis, professor da escola de negócios da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos.

Embora exista alguma polêmica por parte dos analistas internacionais em torno da dosagem de algumas medidas recentes e nos detalhes das estratégias adotadas, há quase um consenso a respeito do acerto dos chineses nas políticas macroeconômicas ao atacar desde já os problemas sem poupar esforços. E, pelo menos por enquanto, os chineses não se depararam com bancos falidos, ativos tóxicos e numerosos setores agonizantes. "A criação de empresas e os investimentos em áreas como saúde, agricultura, biotecnologia e microfinanças, que são setores mais imunes à demanda externa, não pararam na China. Pelo contrário, continuam crescendo", afirma Tarun Khanna, da Universidade Harvard.

Parece inquestionável que a China caminhe para ser um país com uma classe média. A recessão mundial deve retardar esse processo, mas não para sempre. O que Pequim tenta fazer hoje - com repercussões em todo o mundo - é garantir que esse adiamento seja o mais curto possível. Hoje, a classe média chinesa é composta de cerca de 150 milhões de pessoas. Segundo um estudo do McKinsey Global Institute, esse número deve quadruplicar até 2025. Quase sempre que são estimulados a ir às compras, os chineses respondem de forma impressionante. Exemplo disso ocorreu em janeiro, quando o governo reduziu pela metade os impostos sobre a compra de carros com motores abaixo de 1.6 litro. Ao fim de um mês, as vendas já haviam subido 4,4%, chegando a 610 600 carros. Com isso, pela primeira vez na história, a China superou as vendas nos Estados Unidos, que foram de 522 000 unidades em janeiro. A pior crise do setor automotivo americano, cuja atividade chegou ao menor nível dos últimos 26 anos, contribuiu para o resultado. Mas não deixa de ser emblemático o fato de os chineses desbancarem os consumidores do país que criou os drive-in, os muscle cars, as freeways e todos os outros elementos da cultura de adoração aos motores.

A reação dos chineses à redução de impostos para carros explica o otimismo em torno dos efeitos possíveis do pacote de 586 bilhões de dólares, dentro e fora da China. O país assombrou o mundo em 2008 ao organizar os Jogos Olímpicos mais caros da história - um investimento de 40 bilhões de dólares. O pacote de estímulo ora em vigor é mais de 14 vezes maior. Ao lado das obras de infraestrutura, um dos pilares do programa de emergência é justamente o incentivo ao consumo interno. Entre outras ações adotadas, o governo vai gastar 4,4 bilhões de dólares numa política de subsídios de 13% na compra de produtos como celulares, eletrodomésticos e computadores.

Para conduzir todas essas ações, a China tem abundância de mão-de-obra - mas falta matéria-prima. E aí surgem oportunidades para países como o Brasil. Para construir suas ferrovias, rodovias e pontes, será necessário muito minério de ferro. E, hoje, dificilmente os chineses podem deixar de comprar da Vale. "Sem essas obras, a demanda mundial por minério de ferro fatalmente cairia em 2009, prejudicando os grandes exportadores", afirma o economista mexicano Carlos De Alba, vice-presidente do Morgan Stanley Research. Diante do novo cenário, as previsões indicam agora que os chineses devem comprar ao longo deste ano 100 milhões de toneladas brasileiras de minério de ferro, quase o mesmo volume de 2008. É uma boa notícia para um setor que havia desistido de repetir a fase de exuberância ocorrida entre 2000 e 2008, mesmo sabendo que as negociações endureceram e que os preços devem cair de 9% a 30%.

A Vale, é a empresa brasileira mais diretamente afetada pela decisão do governo chinês. Mas os efeitos do pacote podem se irradiar por quase toda a economia. Dos milhares de empregos nas minas que poderão ser mantidos, garantindo consumo no mercado interno, ao poder de atração da bolsa de valores brasileira. A cadeia se repete nos setores de alimentos e produtos agrícolas. Com 1,3 bilhão de pessoas para alimentar e um número insuficiente de terras disponíveis, a China tem de recorrer constantemente ao mercado internacional. Mais uma vez, o Brasil é um vendedor óbvio. Um quarto dos grãos consumidos no mercado chinês sai daqui. E, provavelmente, vai continuar saindo. Em janeiro, o preço da soja voltou a subir após a constatação de que a China começara a repor seus estoques. São sinais de que, felizmente para o resto do mundo, o elefante continua a pedalar.

Revista Exame - 02.2009

Desglobalização


por Márcia Pinheiro
A recessão mundial ressuscita práticas protecionistas, como o Buy American, e fortalece comportamentos xenófobos

A crise mundial catalisou discursos e iniciativas que, há poucos anos, teriam sido tachados de retrógrados. O protecionismo comercial e financeiro, para a preservação de empregos em Estados Nacionais, voltou à pauta, com o inevitável fortalecimento de comportamentos xenófobos. Vozes a favor do protecionismo econômico são um forte subproduto dos tempos bicudos. Por pouco a heterodoxia não venceu o neoliberalismo nos Estados Unidos. No pacote que pode atingir 1 trilhão de dólares, aprovado pela Câmara dos Representantes na quarta-feira 28 de janeiro, há um artigo denominado Buy American (Compre produtos americanos), que causou rebuliço nos parceiros comerciais.

Na versão original, a medida previa que o aço e o minério de ferro usados nos projetos de infraestrutura fossem comprados apenas de empresas americanas. Mas houve uma reviravolta. Na quarta-feira 4, o Senado atenuou o artigo, ao aprovar uma emenda que deixa fora do protecionismo a União Européia e o Canadá, os que mais criticaram a iniciativa.

De acordo com The Wall Street Journal, os europeus tiveram a seu favor o lobby de grandes empresas, como Caterpillar e General Electric, que temiam retaliações quando fechassem contratos no Velho Continente. Antes de o Senado dar o seu veredicto, a Casa Branca havia anunciado que revisaria a cláusula de proteção. O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim, pedira a Obama coragem para usar a prerrogativa do veto. Em Davos, o ministro do Comércio da Índia, Kamal Nath, afirmara que o protecionismo “seria uma resposta de puro pânico”, um malefício tanto para os países desenvolvidos como para os em desenvolvimento.

Obama ficou temporariamente em maus lençóis. A iniciativa da Câmara teve claro apelo popular e a ideia não é nova. Desde 1999, o site buyamerican.com exorta os consumidores a adquirir apenas produtos americanos. E lista uma série de empresas “que mantêm a América trabalhando”. Além disso, foi uma bandeira da campanha presidencial do democrata e naturalmente contou com o apoio do Instituto Americano do Ferro e do Aço. Pesquisa realizada pela organização junto a mil cidadãos detectou que 86% apoiavam a iniciativa da Câmara, ou quase nove entre dez americanos.

Todo mundo entrou na discussão. Paul Krugman, economista ganhador do Nobel de 2008 e blogueiro de The New York Times, tem feito malabarismos para justificar a legitimidade de uma intervenção tão forte do Estado em assuntos da esfera privada, na contramão de um período em que o livre comércio foi a palavra de ordem.

“O argumento contra o protecionismo é que ele distorce o mercado: cada país produz bens com desvantagem comparativa e consome poucos produtos importados. Em condições normais, este é o resultado da história. Mas não estamos em condições normais. Estamos em meio a um colapso e todos os governos têm dificuldades de dar uma resposta eficaz”, diz um recente post em seu blog.

Como ninguém sabe o fundo do poço da recessão e do protecionismo, o Fundo Monetário Internacional (FMI) segue rebaixando as estimativas sobre o comércio mundial. De acordo com o World Economic Outlook, divulgado na quinta-feira 29 de janeiro, as trocas comerciais cairão 2,8% neste ano, uma revisão para baixo de 4,8 pontos porcentuais das estimativas de dezembro de 2008. As importações recuarão 3,1% nas economias desenvolvidas e 2,2% nos países emergentes.

Diversas organizações americanas encontraram eco para proteger o trabalhador local. No Congresso, o republicano Chuck Grassley sugeriu que o plano de demissão da Microsoft se concentrasse em trabalhadores estrangeiros. A Coalizão para o Futuro do Trabalhador Americano, uma espécie de nicho de grupos anti-imigração, está em plena campanha na tevê com um link direto entre o desemprego e a mão-de-obra estrangeira.

Corta para a Europa. Trabalhadores de vinte regiões na Grã-Bretanha promoveram uma série de manifestações com o slogan “Os trabalhadores britânicos primeiro”. Foi uma reação à contratação de algumas centenas de italianos e portugueses pela empresa Irem, para a construção de refinarias. A luta por empregos é apenas um dos itens da fatura da recessão, assim como o protecionismo comercial.

Xenofobia? Seumas Milne, articulista e editor do Guardian, discorda. Em texto publicado na sexta-feira 30 de janeiro, ele opina que “a disputa por empregos em uma recessão e a posição contrária dos trabalhadores à desregulamentação do mercado de trabalho são fruto do modelo neoliberal defendido por Gordon Brown há mais de uma década”.

Os protestos encurralaram o primeiro-ministro. Ele havia discursado em alto e bom som, em 2007: “Empregos britânicos para os britânicos”. Os tempos eram outros e o premier nem imaginava que suas palavras seriam usadas contra ele. No Fórum Econômico Mundial, Brown fez um alerta vigoroso sobre o que chamou de protecionismo financeiro, o terceiro elemento do tripé do desespero, ao lado do comercial e do mercado de trabalho. Ele até cunhou um neologismo para explicar a situação mundial: estaríamos assistindo a um processo de “desglobalização”.

O primeiro-ministro referiu-se principalmente aos países em desenvolvimento, que estariam se defrontando com bancos reticentes em manter as linhas de crédito. Mas a Grã-Bretanha também se vê sufocada e a grande questão, segundo o WSJ, é se o estatizado Royal Bank of Scotland e grandes instituições privadas, como o HSBC, terão fôlego para suprir a demanda por empréstimos. Em coro com seus colegas europeus, a chanceler alemã, Angela Merkel, manifestou-se contra a cláusula Buy American. “Devemos evitar o protecionismo. É a resposta errada” à crise econômica mundial, disse em entrevista coletiva na terça-feira 27 de janeiro.

O Institute of International Finance (IIF), associação dos maiores bancos mundiais, prevê o declínio do investimento estrangeiro em países emergentes, de 466 bilhões de dólares em 2008 para 165 bilhões neste ano. Em relação ao boom de 2007, quando as inversões somaram 929 bilhões de dólares, a retração será de 82%. Situação dramática vão vivenciar os emergentes europeus. Rússia e Ucrânia, grandes dependentes de capital externo, serão os países mais afetados, de acordo com o instituto.

Toda essa discussão deve embaralhar ainda mais a Rodada de Doha, da Organização Mundial do Comércio (OMC). O diretor-geral, Pascal Lamy, alertou, na segunda-feira 2, contra medidas protecionistas. Citou Mahatma Gandhi, que disse “olho por olho torna o mundo cego”. Lamy exortou os empresários a apoiar Doha, “que pode ser parte da solução para a crise econômica”.

Em remissão histórica, Lamy lembrou o Smoot and Hawley Act, de 1930, que elevou drasticamente as tarifas de importação dos Estados Unidos sobre mais de 20 mil produtos. “Seguiu-se então a Grande Depressão”. Ele teme que formas mais sofisticadas de taxar as importações levem o mundo ao mesmo caminho.

Não foram apenas os europeus e asiáticos que levantaram as vozes contra o Buy American. O jornal Times também carregou nas tintas e comparou a cláusula ao protecionismo dos anos 30, alcunhado de beggar-thy-neighbour (políticas nacionais que beneficiam o país em detrimento dos vizinhos). O argumento da colunista Rosemary Righter é bastante discutível.

Segundo ela, a globalização foi a principal responsável pela prosperidade do mundo atual. “Em um nível simplificado, as camisetas baratinhas de Bangladesh fazem sobrar mais dinheiro para comprarmos outros bens.” Difícil digerir uma visão tão parcial. Nem tanto à política arrasa-quarteirão dos parceiros comerciais, nem tanto à completa liberdade dos mercados.

Revista Carta Escola

Geopolítica e Crise


Geopolítica e Crise
O Professor da USP André Roberto Martin fala sobre o jogo de poder entre BRIC e G7 em tempos de crise - e depois dela
por Marcelo Marcondes

A crise na economia mundial, que começou a se deflagrar em setembro do último ano nos Estados Unidos rapidamente se alastrou para a Europa e para a Ásia. Até o final de 2008, alguns dos países chamados de BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) haviam sofrido menos do que suas contrapartes do G7. Porém, se em alguns lugares a crise tardou a chegar, ela não falhou.

É verdade que o Brasil é dos países que está mais preparado para enfrentar a crise: reservas de US$ 200 bi permaneceram intocadas mesmo após meses de crise; ausência de bolhas de crédito e imobiliárias (estopim da crise nos EUA); bancos ‘saudáveis’ e regulados; projeções do FMI e do Banco Central otimistas para 2009 (os mesmos órgãos apontam estagnação para o resto do mundo); estabilidade econômica e exportações diversificadas. Tudo isso compete para criar um quadro ainda não tão alarmante da crise para o Brasil. Contudo, não é arriscado falar que 2009 será marcado pela crise financeira. E isto trará, cedo ou tarde, consequências para a geopolítica mundial.


Geórgia/Ossétia do Sul
A ofensiva russa na Geórgia, apoiando a independência da Ossétia do Sul, trouxe a morte de cerca de 385 soldados, feriu aproximadamente 3 mil e desapareceu com 50.


A crise pelo mundo
No início de 2009, houve uma queda de 73% do preço do petróleo de seu pico, levando grandes produtores como os países do Oriente Médio e a Rússia a perdas significativas.

A crise e as bolhas de crédito nos EUA trouxeram prejuízo para o modelo econômico das economias emergentes da Ásia. Cerca de 50% do PIB desses países é exportado para o Oeste, que se endividava para alimentar o crescimento asiático. Além disso, surgem cada vez mais fortes os ecos do nacionalismo econômico (protecionismo em alta, principalmente por parte dos países europeus, dos EUA, com o buy american, e até de países mais próximos, como a Argentina).

O enfraquecimento da economia americana, a multipolarização mais acentuada, tanto econômica, quanto cultural e política. Se isto já vinha ocorrendo, como prenunciou Paul Kennedy na década de 1980, a atual crise só vem agravar este quadro. Para conversar sobre o assunto, a Conhecimento Prático Geografia foi atrás de André Roberto Martin, professor doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo, na qual também é livre-docente especializado em regionalização e geopolítica.

Conhecimento Prático GeografiaA crise financeira mundial proporcionou uma queda de 73% do preço do petróleo de seu pico, levando a Rússia a perder um terço de suas reservas acumuladas ao longo de nove anos em apenas três meses e valor de mercado das empresas russas de capital aberto a cair 70%. A Rússia também passa por um momento de conflito geopolítico importante na região da Geórgia/ Ossétia do Sul e, além disso, houve paralisação do provimento de gás russo para muitos países europeus. Como estes fatos estão interligados, professor? Como a crise pode e/ou como ela afeta a geopolítica? Utilizemos aqui o contexto russo.

André Roberto Martin A Rússia foi a primeira vítima da aproximação entre EUA e China iniciada por Henry Kissinger ainda em 1968 com a “diplomacia do ping-pong”. Seu cacife são os hidrocarbonetos e, principalmente, o gás natural. É com ele que ela espera substituir a dependência europeia do petróleo “árabe-americano”, muito instável exatamente pelo “caos” no Oriente Médio. De modo que não creio que os preços do petróleo fiquem tão baixos por tanto tempo, e acredito que o gás natural tem mais futuro. Assim, a Rússia precisa manter-se firme e esperar passar a borrasca. Acho a dupla Medvedev/Putin preparada e eles têm um às na manga, por onde planejam sair da crise: a industria bélica.

CP GEO Seguindo com os BRICS; a China está sofrendo paulatina e constantemente com a crise, uma vez que ela depende, em grande parte, do poder de compra dos EUA. Além disso, volta e meia ressurgem conflitos na região do Tibete. No contexto de um mundo cada vez mais multipolar, em que a China era a gigante e vermelha bola da vez, como fica este cenário? A crise afetará a China ou ela sairá fortalecida desta, tanto econômica quanto politicamente?
ARM: A China, apesar de muito interligada aos EUA, é também muito autônoma, no sentido de que seu mercado interno depende pouco dos EUA. As nossas commodities, como o ferro e a soja, são muito mais vitais para a China hoje do que os imensos carros produzidos em Detroit. Assim, a coisa em comum que deve ser destacada e que une o BRIC é seu grande mercado interno, coisa que os EUA também possuem. E é a diminuição do peso relativo desse mercado em termos mundiais, a verdadeira essência da crise. É a crise na confiança da liderança americana, de que o crescimento do mercado interno americano é o motor da economia mundial. E isso foi fundamentalmente a China que corroeu, ainda que em parceria estratégica com os EUA com vistas a enfraquecer a Rússia. Portanto, acredito que, no cenário mundial atual, a China ainda é a grande vitoriosa, pois avançou muito em relação a seus dois oponentes, Estados Unidos e Rússia.

CP GEO Segundo dados do FMI, a Índia é o segundo país que mais crescerá dentre os BRICs em 2009 (com 5,1%, atrás da China com 6,7% e à frente do Brasil com 1,5%). Porém, ela também continua sendo afetada por disputas políticas em seu território. A incessante luta ideológica entre muçulmanos e hindus, que, em dezembro de 2008, alvejou uma das mais importantes cidades do país, Mumbai, matando 173 pessoas e atribuído a Lashkar-e-Taiba (militante muçulmano do movimento de independência da Caxemira). Este tipo de conflito pode pesar num contexto de crise?
ARM: Embora a Índia conviva com mais conflitos em seu território e tenha uma relação conturbada com seus vizinhos, o uso da energia nuclear naquele país já é em larga escala, coisa que no Brasil ainda é muito incipiente. Este uso é estratégico, pois permite mais poder de decisão em questões geopolíticas. E nesse ponto a Índia vem vencendo com muito mais energia, além de registrar taxas maiores de crescimento do PIB.



Paul KennedyPaul Michael Kennedy é um historiador britânico cujo principal foco de estudo são as relações internacionais e a atuação da política externa britânica. Seu mais famoso livro é “Ascensão e Queda das Grandes Potências”, essencial na biblioteca de qualquer um que se proponha a estudar a geopolítica e as relações internacionais. Publicado pela primeira vez em 1987, o livro já foi traduzido para 23 línguas e expõe a tese, como o próprio título sugere, de um novo mundo, multipolarizado. Já em meados da década de 1980 Kennedy vaticinava o que estamos vivenciando de maneira mais clara nos dias de hoje. A única diferença é que, à época da primeira edição, ainda não se falava do poderio chinês, e muito burburinho havia acerca da ascensão econômica nipônica. Atualmente, Kennedy é professor de história britânica na prestigiosa universidade de Yale, nos Estados Unidos.

“Quando digo que o Brasil tem o papel histórico de ‘desfazer’ coisas que a Inglaterra fez, referi-me às fronteiras: Cabe ao Brasil, me parece, o papel de ‘unir para libertar’ precisamente esse hemisfério, vítima do colonialismo. América Latina, Ásia, África e Oceania ainda apresentam resquícios daquele período e, não possuindo inimigos, vejo o Brasil em ótimas condições para ‘costurar’ um bloco diplomático muito amplo, como é a minha idéia do ‘meridionalismo’.”
André Roberto Martin

CP GEO Tendo em vista todas essas questões, qual a possibilidade de um mundo multipolar no qual o Brasil, menos afetado pela crise e longe de conflitos políticos marcantes, ganhe um maior destaque dentre os BRICs, e, consequentemente, no panorama mundial? A cadeira no Conselho de Segurança ainda é algo almejável? Seria positivo para o país do ponto de vista geopolítico? Como a crise pode nos ajudar neste sentido?
ARM: O setembro negro de 2008 é só continuação do setembro negro de 2001 e outros setembros-negros, porque é a necessidade do petróleo árabe o que faz os EUA cometerem essas loucuras (a saber: após o 11/9, a ofensiva no Iraque e Afeganistão e, mais recentemente, as bolhas de crédito). O ex-presidente George W. Bush certa vez declarou: “Nós temos um sério problema: a América é viciada em petróleo”. Com o fim da dependência da exportação do petróleo (autossuficiência nossa em petróleo já conquistada e que tende a aumentar após a exploração do pré-sal), o Brasil devia pensar em investir na indústria bélica. Este é o ponto vulnerável do Brasil que, no entanto, não tem vetos nesse terreno. A meu ver, o Brasil já poderia ter aplicado capitais excedentes na tecnologia nuclear. Talvez a grande culpada ainda seja a mentalidade colonial que ainda impera entre nossos governantes.

CP GEO Falando sobre o colonialismo, comente, por favor, a frase, de sua autoria: “o Brasil nasceu para ser a Anti- Inglaterra”. Como que a crise pode criar oportunidades para que o país rume a este objetivo?
ARM:Quando digo que o Brasil tem o papel histórico de “desfazer” coisas que a Inglaterra fez, referi-me às fronteiras. A “pérfida Albion” (apelido dado na era do imperialismo à Inglaterra) tudo fazia no intuito de “dividir para dominar” o planeta e em particular o Hemisfério Sul. Cabe ao Brasil, me parece, o papel de “unir para libertar” precisamente esse hemisfério, vítima do colonialismo. América Latina, Ásia, África e Oceania ainda apresentam resquícios daquele período e, não possuindo inimigos, vejo o Brasil em ótimas condições para “costurar” um bloco diplomático muito amplo, como é a minha idéia do “meridionalismo”. Quanto à crise, ela traz a coincidência de um problema financeiro, com outro energético, mais um ambiental, e, finalmente, outro relativo à segurança e à liderança dos EUA. Tudo isso está em jogo ao mesmo tempo, uma vez que o dólar e o petróleo estão em franca decadência. Ocorrerá o mesmo com as universidades anglo-americanas e a língua inglesa? Acho que sim, na medida em que o monopólio anglo-saxônico da pesquisa, do dinheiro e da língua se quebrem — e é isto que a crise anuncia.

Revista Geografia

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