Plásticos biodegradáveis não fazem milagres
Leticia Freire, do Mercado Ético
O lixo é um dos maiores problemas ambientais da atualidade. Os moldes de consumo adotados por boa parte das sociedades modernas provocaram o aumento contínuo e exagerado na quantidade de lixo produzido no planeta. Em meio a esse cenário está um dos grandes vilões: o plástico.
Segundo a Associação Brasileira de Supermercados (ABRAS), são consumidas no Brasil cerca de 12 bilhões de sacolinhas por ano. Dessas, 80% viram lixo, levando mais de mil anos para se decompor. Mas não são apenas essas embalagens que tem destinação final o estrago da natureza. Segundo um relatório do Programa Ambiental da ONU (Unep, na sigla em inglês), os produtos plásticos, como garrafas, sacos, embalagens de comida, copos e talheres, formam a maior parte do lixo encontrado no oceano. Em algumas regiões, esse elemento corresponde a 80% do lixo marinho.
Do mito à realidade dos biodegradáveis
Na tentativa de minimizar a pegada, alguns fabricantes adicionam amido ou celulose à mistura de plástico para, assim, acelerar o processo de decomposição de certas embalagens. Mas será que essa biodegradação soluciona mesmo o problema?
A resposa é não! “O título biodegradável não garante nada para absolutamente nada”, avisa Silvia Rolim, engenheira química e assessora técnica da Plastivida Instituto Sócio-Ambiental dos Plásticos, uma organização de referência nacional no que diz respeito a assuntos ligados ao plático. “Evidentemente, é melhor optar pelos biodegradáveis, mas a presença de amido ou celulose não é uma garantia de decomposição em ambientes sem luz e oxigênio”, explica ela.
De acordo com a engenheira, o plástico biodegradável requer condições específicas para decompor-se adequadamente. Seu descarte de forma inadequada pode torná-lo tão nocivo para o meio ambiente quanto o plástico convencional. “Até mesmo uma casca de banana quando jogada fora em condições erradas necessita de um a três anos para se biodegradar. A natureza não faz mágica”, complementa Silvia.
Eles se biodegradaram, e agora?
Mas mesmo no caso dos plásticos biodegradáveis, resta saber no que o material se transforma depois da decomposição. Essa dúvida fez a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) declarar que não se pode afirmar que o uso de plásticos biodegradáveis é mais aconselhável, porque esse novo material pode ocasionar novas formas de contaminação ao solo.
Para Silvia Rolim, a solução integral depende da eficiência da nova política pública nacional de resíduos sólidos e de uma intensa participação das empresas nesse processo. “Qualquer política de resíduos sólidos, isso inclui a utilização ou não de plásticos biodegradáveis, depende de coleta adequada e destinação correta desses resíduos”, reforça a engenheira.
Texto publicado no Envolverde
Carta Verde
O lixo é um dos maiores problemas ambientais da atualidade. Os moldes de consumo adotados por boa parte das sociedades modernas provocaram o aumento contínuo e exagerado na quantidade de lixo produzido no planeta. Em meio a esse cenário está um dos grandes vilões: o plástico.
Segundo a Associação Brasileira de Supermercados (ABRAS), são consumidas no Brasil cerca de 12 bilhões de sacolinhas por ano. Dessas, 80% viram lixo, levando mais de mil anos para se decompor. Mas não são apenas essas embalagens que tem destinação final o estrago da natureza. Segundo um relatório do Programa Ambiental da ONU (Unep, na sigla em inglês), os produtos plásticos, como garrafas, sacos, embalagens de comida, copos e talheres, formam a maior parte do lixo encontrado no oceano. Em algumas regiões, esse elemento corresponde a 80% do lixo marinho.
Do mito à realidade dos biodegradáveis
Na tentativa de minimizar a pegada, alguns fabricantes adicionam amido ou celulose à mistura de plástico para, assim, acelerar o processo de decomposição de certas embalagens. Mas será que essa biodegradação soluciona mesmo o problema?
A resposa é não! “O título biodegradável não garante nada para absolutamente nada”, avisa Silvia Rolim, engenheira química e assessora técnica da Plastivida Instituto Sócio-Ambiental dos Plásticos, uma organização de referência nacional no que diz respeito a assuntos ligados ao plático. “Evidentemente, é melhor optar pelos biodegradáveis, mas a presença de amido ou celulose não é uma garantia de decomposição em ambientes sem luz e oxigênio”, explica ela.
De acordo com a engenheira, o plástico biodegradável requer condições específicas para decompor-se adequadamente. Seu descarte de forma inadequada pode torná-lo tão nocivo para o meio ambiente quanto o plástico convencional. “Até mesmo uma casca de banana quando jogada fora em condições erradas necessita de um a três anos para se biodegradar. A natureza não faz mágica”, complementa Silvia.
Eles se biodegradaram, e agora?
Mas mesmo no caso dos plásticos biodegradáveis, resta saber no que o material se transforma depois da decomposição. Essa dúvida fez a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) declarar que não se pode afirmar que o uso de plásticos biodegradáveis é mais aconselhável, porque esse novo material pode ocasionar novas formas de contaminação ao solo.
Para Silvia Rolim, a solução integral depende da eficiência da nova política pública nacional de resíduos sólidos e de uma intensa participação das empresas nesse processo. “Qualquer política de resíduos sólidos, isso inclui a utilização ou não de plásticos biodegradáveis, depende de coleta adequada e destinação correta desses resíduos”, reforça a engenheira.
Texto publicado no Envolverde
Carta Verde
Biotecnologia e desenvolvimento sustentável
Ana Clara Guerrini Schenberg
professora no NAP-Biotecnologia, Instituto de Ciências Biomédicas, USP. @ –acgschen@usp.br
Introdução
OS PRINCÍPIOS inicialmente definidos em 1987, no Relatório Brundtland da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Nações Unidas, 1987) e reafirmados durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio 92), no programa de ação da Agenda 21 (Nações Unidas, 1992) e, mais recentemente, nas Metas do Milênio, estabelecidas em 2000 (Nações Unidas, 2000), identificaram como prioritária para o futuro da humanidade a adoção de um novo paradigma de desenvolvimento, dito sustentável, de modo a garantir o progresso e ao mesmo tempo a preservação do meio ambiente. Para atingir as metas de desenvolvimento sustentável, é indispensável o manejo racional dos recursos naturais, o que exigirá o emprego de novas tecnologias. Entre as tecnologias que apresentam potencial para contribuir para o desenvolvimento sustentável, a biotecnologia tem muito a oferecer, especialmente nos campos da produção de alimentos, geração de energia, prevenção da poluição ambiental e biorremediação.
Neste artigo, descreveremos algumas das possíveis rotas biotecnológicas relevantes para o desenvolvimento sustentável, com exemplos de trabalhos realizados pelo nosso grupo de pesquisas.
Geração de energia: aumento da produtividade de etanol por meio do melhoramento genético da levedura
Atualmente, os combustíveis fósseis (carvão, petróleo, gás natural) suprem aproximadamente 80% das necessidades mundiais de energia primária. A projeção que se faz, porém, é de que a demanda mundial de energia aumente 49% até 2035, ao mesmo tempo que a produção de petróleo, embora seja um produto não renovável, ainda tenda a aumentar nos próximos 25-30 anos (Energy, 2010). Mesmo que o consumo futuro de combustíveis fósseis fique limitado às reservas comprovadas hoje, a queima desses combustíveis resultaria na liberação de mais do dobro do carbono que já foi emitido na atmosfera até hoje, agravando o efeito estufa. De fato, o uso de combustíveis fósseis é uma das principais causas de liberação de gases do efeito estufa, principais responsáveis pelas mudanças climáticas que estamos vivendo. Assim, a substituição da gasolina por biocombustíveis, como o etanol, apresenta-se como uma solução biotecnológica para evitar futuros problemas de carência de energia e de graves alterações ambientais (Um futuro..., 2010).
A produção de etanol por via fermentativa é, por definição, um processo biotecnológico, uma vez que o responsável pela transformação do açúcar em álcool é um ser vivo, a levedura Saccharomyces cerevisiae. Essa levedura vem sendo utilizada pelo homem, há pelo menos oito mil anos, para a produção de alimentos e bebidas, entre outros produtos de considerável importância econômica.
Até hoje, S. cerevisiae continua sendo o micro-organismo mais empregado para a produção industrial de etanol, pois apresenta alta seletividade na produção de álcool, elevada velocidade de crescimento e fermentação, elevado rendimento na conversão a etanol, elevada tolerância a glicose, a etanol, a pressão osmótica e a condições estressantes, baixo pH ótimo de fermentação e alta temperatura ótima de fermentação (Amorim & Leão, 2005).
Entre os diferentes fatores que influem sobre o desempenho da levedura no processo de produção de etanol, destaca-se a contaminação do meio de fermentação por bactérias, responsável por perdas importantes na produtividade das destilarias. Além de competir com a levedura pela sacarose e outros nutrientes do mosto, as bactérias introduzem produtos indesejáveis do seu metabolismo, que causam alterações prejudiciais ao processo de fermentação da levedura (Andrietta et al., 2007). As medidas atualmente utilizadas para o controle dessas contaminações consistem na acidificação do mosto e no emprego de antibióticos. Para a acidificação, adiciona-se ácido sulfúrico no preparo do mosto, o que reduz consideravelmente as contaminações bacterianas, porém o uso repetido da acidificação ocasiona uma diminuição da viabilidade da levedura.
Outra prática, bastante difundida nas usinas alcooleiras, consiste em adicionar antibióticos ao mosto, o que, entretanto, onera significativamente o processo, além de impactar negativamente o meio ambiente. A utilização contínua de antibióticos, contudo, acarreta a seleção de bactérias resistentes, com o consequente surgimento de nova população de contaminantes, fazendo que seja necessário empregar novos antibióticos ou até misturas de vários antibióticos (Amorim & Leão, 2005).
Visando encontrar uma solução alternativa para o combate às contaminações bacterianas do processo industrial de produção de etanol, foi iniciada há vários anos no nosso laboratório uma linha de pesquisa para desenvolver uma linhagem da levedura Saccharomyces que, conservando todas as suas ótimas qualidades fermentativas, fosse capaz, ao mesmo tempo, de produzir e excretar para o meio de fermentação uma substância bactericida.
Dentre as proteínas com ação bactericida, destaca-se a lisozima, para a qual não há relatos de desenvolvimento de mecanismo de resistência entre as espécies de bactérias isoladas do processo de fermentação. Assim, se a própria levedura pudesse excretar lisozima para o meio de fermentação, obter-se-ia uma nova maneira de combater a contaminação bacteriana no processo industrial, mais simples, menos onerosa e menos prejudicial ao meio ambiente.
A lisozima (EC 3.2.1.17) é uma enzima que catalisa especificamente a hidrólise da ligação β-(1,4)-glicosídica entre o ácido N-acetilmurâmico e a N-acetilglicosamina do peptidoglicano, principal constituinte da parede das células bacterianas. Trata-se de uma enzima amplamente distribuída entre os seres vivos (porém ausente na levedura), sendo extremamente eficiente na defesa contra infecções bacterianas (Kirby, 2001). Essa enzima é particularmente eficiente contra bactérias gram-positivas, que predominam nas destilarias do Brasil, representando 98,5% dos contaminantes (Gallo, 1989). Por sua vez, a lisozima D, produzida por Drosophila melanogaster (a mosca-da-fruta), apresenta características que permitem o seu pleno funcionamento durante o processo da fermentação, quais sejam, ótima atividade enzimática em ambiente ácido (o seu pH ótimo é 3,5), resistência a proteólise e termorresistência (Kylsten, 1992).
Tomando por base essas informações, foi construído no nosso laboratório um cassete de expressão-excreção do cDNA da lisozima D de D. melanogaster, sob o comando do promotor do gene da álcool-desidrogenase I de S. cerevisiae (Grael, 1998, 2010). A seguir, esse cassete de expressão-excreção foi integrado no cromossomo V de S. cerevisiae, o que conferiu total estabilidade da informação clonada na levedura, sem perda de produtividade. Essa metodologia possibilitou a transformação de linhagens de laboratório e também de linhagens utilizadas na indústria. As linhagens transformantes produzem lisozima ativa, que é excretada para o meio desde o início da fermentação, sendo capazes de hidrolisar parede de Micrococcus lysodeikticus e inibir o crescimento de Bacillus coagulans e de Lactobacillus fermentum, principais bactérias contaminantes da fermentação alcoólica (Gallo, 1989). Além disso, os transformantes apresentam 100% de estabilidade, o que é um aspecto altamente relevante para o processo industrial (Silveira, 2003; Silveira et al., 2003).
Uma vantagem adicional do sistema que desenvolvemos é de que a lisozima produzida durante o processo fermentativo pode ser purificada do sobrenadante, para utilização na preservação de alimentos e na composição de medicamentos (Proctor & Cunningham, 1988), o que agregaria valor ao processo de produção de etanol.
Essa linha de pesquisas originou dois pedidos de patente, uma das quais já outorgada (Grael, 2010).
Prevenção da poluição ambiental: produção de biopolímeros a partir de recursos renováveis
Para resolver a questão do lixo urbano e industrial, a substituição de plásticos de origem petroquímica por plásticos produzidos por micro-organismos seria altamente desejável, uma vez que os biopolímeros são materiais biocompatíveis e totalmente biodegradáveis. A estimativa é de que os rejeitos plásticos lançados em aterros aumentam em 404% o peso total do lixo, e o problema é agravado pelo fato de que os materiais plásticos atualmente produzidos são de difícil decomposição, permanecendo no meio ambiente por várias centenas de anos. Entretanto, o preço dos biopolímeros ainda não é capaz de competir com o dos plásticos convencionais, sendo necessário otimizar as linhagens microbianas, bem como os processos de recuperação e extração, mas, especialmente, reduzir os custos com a matéria-prima (Choi & Lee, 1999). É possível, entretanto, prever que a situação atual se modifique, à medida que o petróleo se torne escasso, tornando os produtos obtidos a partir de matérias-primas renováveis de menor custo que os produtos da indústria petroquímica.
Construção de novas bactérias para a produção de biopolímeros a partir de sacarose
Poli-hidroxialcanoatos (PHA) são polímeros produzidos por muitas bactérias como material de reserva, sob a forma de grânulos, quando há abundância de fonte de carbono. Os PHA apresentam propriedades termoplásticas comparáveis às dos plásticos de origem petroquímica, além de serem totalmente biodegradáveis (Madison & Huisman, 1999). Essa propriedade confere aos PHA grande relevância no que concerne à preservação ambiental, e, além disso, a utilização de PHA contribuiria para o desenvolvimento sustentável, considerando que são produzidos pelos micro-organismos a partir de recursos naturais renováveis. Entretanto, para que a utilização de PHA em substituição aos plásticos de origem petroquímica seja economicamente viável, é necessária uma matéria-prima abundante e de baixo custo, sobre a qual possam ser cultivadas as bactérias produtoras de PHA. No Brasil, a cana-de-açúcar preenche esses requisitos para ser empregada como matéria-prima. Entretanto, a bactéria Cupriavidus necator (anteriormente denominada Alcaligenes eutrophus, Ralstonia eutropha, Wautersia eutropha), uma excelente produtora de PHA (Reinecke & Steinbüchel, 2009), é incapaz de aproveitar a sacarose presente no caldo da cana. O trabalho realizado no nosso grupo de pesquisas consistiu no melhoramento genético de C. necator DSMZ 545, visando capacitá-la a crescer em sacarose como única fonte de carbono. Para atingir esse objetivo, foi adicionado ao genoma dessa linhagem um óperon de cinco genes proveniente do plasmídeo pUR400 de Salmonella typhimurium, que codifica todas as enzimas necessárias para a assimilação da sacarose (Fava, 1997; Vicente et al., 2009). Essa linhagem geneticamente modificada de C. necator foi a seguir mutagenizada para aumentar a sua eficiência em converter o precursor propionato em unidades de hidroxivalerato no copolímero poli-hidroxibutirato-poli-hidroxivalerato (Sartori, 1998; Vicente et al., 1998). De fato, esse copolímero é de grande importância tecnológica por apresentar maior flexibilidade do que o homopolímero, o que aumenta o seu espectro de aplicação na indústria de plásticos (Madison & Huisman, 1999). Esse trabalho deu origem a dois pedidos de patente junto ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi) (Vicente et al., 2009; Vicente, 1998), que já foram licenciados para utilização industrial.
Biorremediação de águas contaminadas por metais tóxicos
Chama-se de biorremediação a utilização de seres vivos para descontaminar ou reduzir o teor de poluentes no meio ambiente. Com efeito, diversas plantas e micro-organismos são capazes de acumular e transformar diferentes poluentes em substâncias com toxicidade reduzida (Atlas & Unterman, 1999). Considerando que as tecnologias convencionais de remediação ambiental são em geral inadequadas para reduzir a níveis aceitáveis as concentrações de metais pesados em efluentes contaminados, a biorremediação se apresenta como uma solução alternativa de grande interesse. Além disso, os métodos biotecnológicos para a detoxificação de efluentes são menos onerosos que as tecnologias convencionais. De fato, no caso de contaminação de águas de superfície por metais pesados, a imobilização in situ dos íons metálicos por ação microbiana, impedindo que eles sejam transferidos para o lençol freático, se apresenta como uma solução economicamente interessante (Gravilescu, 2004). Ultimamente, a ação dos micro-organismos sobre os metais tem sido objeto de numerosos estudos, em virtude do seu potencial de aplicação, tanto para a destoxificação quanto para a recuperação de metais nas atividades da indústria de mineração (biolixiviação).
Além de uma certa concentração, os metais pesados são extremamente tóxicos aos seres vivos, que, consequentemente, desenvolveram, ao longo da evolução, diferentes mecanismos biológicos de defesa. Entre esses mecanismos, alguns podem ser úteis para aproveitamento em processos de biorremediação. Existem micro-organismos que excretam substâncias que provocam a precipitação dos metais sob uma forma insolúvel (biomineralização); outros internalizam os íons metálicos por meio de processos de transporte ativo (bioacumulação); outros ainda adsorvem passivamente os íons metálicos sobre a superfície celular (biossorção) (Barkay & Schaefer, 2001). Esses diferentes processos são válidos para a descontaminação de águas poluídas por metais pesados, embora, nos dias de hoje, a biossorção constitua a abordagem mais largamente utilizada. A biossorção é particularmente eficaz para o tratamento de efluentes, sendo mais limitado o seu uso para a biorremediação de solos (ibidem). Por sua vez, os metais adsorvidos podem ser recuperados por tratamento ácido, com agentes quelantes, ou, ainda, por incineração dos micro-organismos. De fato, bactérias, fungos e leveduras, que constituem rejeitos de fermentações industriais, podem em princípio servir como um material barato para a biorremediação de águas contaminadas por metais.
Há também várias plantas que concentram os metais pesados em proporções importantes de seu peso seco, como Brassica juncea, que é capaz de concentrar mais de 40%. A fitorremediação constitui, portanto, uma alternativa interessante para a limpeza de águas contaminadas por metais e radionuclídeos, e essa estratégia foi empregada para descontaminar a água de Chernobyl, Rússia, após o acidente nuclear. Entretanto, as plantas hiperacumuladoras apresentam crescimento lento e o controle genético dos mecanismos de acumulação ainda não está suficientemente esclarecido (Lasat, 2002). Uma vez que os mecanismos de resistência vegetal aos metais pesados são diferentes daqueles das bactérias, é possível, por meio de técnicas de engenharia genética, empregar genes de plantas para construir novas linhagens bacterianas com capacidades superiores de biorremediação. Com efeito, a clonagem, na bactéria Escherichia coli, de um gene da planta Arabidopsis thaliana, envolvido na resistência aos metais, forneceu resultados muito promissores para melhorar a capacidade da bactéria em acumular cádmio, cobre e também arsênico (Sauge-Merle et al., 2003).
Para responderem à presença de altas concentrações de metais pesados que lhes são tóxicos, os organismos eucarióticos produzem peptídeos ricos em cisteína, como a glutationa (Singhal et al., 1997), as metalotioneínas (MT) (Stillman et al., 1992) e as fitoquelatinas (PC) (Rauser, 1995). Tais moléculas ligam-se aos íons metálicos e os sequestram sob uma forma biologicamente inativa.
As fitoquelatinas são peptídeos curtos, cuja estrutura geral corresponde a (γGlu-Cys)n Gly (n=2-11) (ibidem). As PC apresentam vantagens sobre as MT em razão de suas características estruturais, particularmente a repetição das unidades γ Glu-Cys. As PC são mais estáveis e têm maior capacidade de ligação aos metais do que as MT. Além disso, as PC podem incorporar altos níveis de sulfeto inorgânico, o que resulta num forte aumento da sua capacidade de ligação aos íons Cd2+ (Bae et al., 2000). Entretanto, a produção de PC por engenharia genética ainda não é possível por falta de conhecimento suficiente sobre as enzimas envolvidas na síntese e elongação de tais peptídeos. Foram sintetizados análogos de PC que apresentam, em vez da ligação γ, uma ligação a-peptídica entre Glu e Cys, de tal modo que esses análogos (EC) podem ser produzidos pela maquinaria ribossomal da célula. Além disso, EC de diferentes comprimentos de cadeia (mais longos do que aqueles encontrados nas plantas) podem ser produzidos, apresentando diferentes capacidades de ligação aos metais (Bae & Mehra, 1997).
Bae et al. (2000) clonaram em E. coli genes sintéticos que codificam EC. Esses autores construíram fusões entre EC de diferentes comprimentos e Lpp-OmpA, uma proteína de superfície de E. coli, tendo verificado que uma cadeia de apenas 20 unidades poliméricas de EC apresenta uma capacidade de ligação aos íons Cd2+ 40% maior que as metalotioneínas de mamíferos.
Uma outra abordagem interessante consiste em melhorar geneticamente certos micro-organismos que apresentam alta tolerância natural aos metais pesados. Tal é o caso da bactéria Cupriavidus metallidurans, que é capaz de crescer em presença de concentrações milimolares de metais tóxicos.
A C. metallidurans é encontrada em águas e solos com alto teor de metais pesados e apresenta múltiplas resistências (Zn, Cd, Co, Pb, Cu, Hg, Ni e Cr), graças à presença de dois megaplasmídeos, que contêm os genes envolvidos num mecanismo muito eficiente de efluxo de cátions (Von Rozycki & Nies, 2009). Esse mecanismo de resistência detoxifica o citoplasma da bactéria, mas não se presta para ser empregado em biorremediação. Entretanto, seria possível tirar proveito da alta resistência aos metais que essa bactéria apresenta e fornecer-lhe os genes necessários para a imobilização dos íons metálicos. De fato, foi descrito um aumento de três vezes da capacidade de ligação ao cádmio de R. metallidurans, por meio da clonagem do gene que codifica a metalotioneína I de camundongo, de modo a alvejar essa MT para a superfície da bactéria (Valls et al., 2000). Esses autores mostraram ainda que a inoculação dessa linhagem geneticamente modificada de R. metallidurans em solos contaminados por íons Cd2+ diminui significativamente os efeitos tóxicos do cádmio sobre o crescimento de plantas de tabaco (ibidem).
Considerando a ubiquidade dos micro-organismos capazes de imobilizar metais na natureza e que a sua frequência se encontra geralmente aumentada em solos e águas contaminados, a estimulação da microflora indígena dos locais contaminados é um enfoque que também pode dar bons resultados. Por sua vez, a utilização de micro-organismos com atividades metabólicas especiais, capazes de complementar a microflora indígena, também deve ser considerada. Em qualquer caso, as técnicas de engenharia genética podem ser empregadas para aumentar a eficiência dos micro-organismos para a biorremediação, embora medidas de biossegurança sejam necessárias para a liberação dos organismos recombinantes para processos de biorremediação in situ (Urgun-Demirtas et al., 2006).
No nosso laboratório, está em andamento um projeto cujo objetivo é a construção de diversos micro-organismos recombinantes (bactérias e leveduras), que apresentem capacidade aumentada de acumular metais pesados. Para atingir esse objetivo, optou-se pela estratégia de adicionar ao genoma das diferentes linhagens o gene que codifica uma fitoquelatina sintética, utilizando cassetes de expressão-secreção específicos. Visando à máxima proteção ambiental, será também incorporado a essas linhagens geneticamente melhoradas um gene fortemente regulado, cuja expressão promoverá a sua morte, após terem desempenhado as funções de biorremediação. Em contrapartida, estão sendo construídas linhagens para serem utilizadas como biossensores de diversos íons metálicos.
Um dos subprojetos, já concluído, teve por objetivo capacitar a bactéria Cupriavidus metallidurans CH34 a adsorver íons metálicos na sua superfície. A C. metallidurans CH34 (previamente denominada Alcaligenes eutrophus, Ralstonia eutropha, Ralstonia metallidurans e Wautersia metallidurans) é o organismo mais resistente a íons de metais pesados conhecido até hoje. Trata-se de uma β-proteobactéria, gram-negativa, não patogênica, capaz de crescer em elevadas concentrações de, pelo menos, treze diferentes íons de metais pesados (Von Rozycki & Nies, 2009). Essa linhagem foi isolada em sedimentos de tanques de decantação de zinco em Liège, Bélgica (Mergeay et al., 1978), e possui alta resistência a Ag+2, Bi+3, Cd+2, Co+2, CrO4-2, Cu+2, Hg+2, Mn+2, Ni+2, Pb+2, SeO4-3, Tl+1 e Zn+2, conferida por pelo menos 150 genes de resistência, presentes em seus quatro replicons: o cromossomo (3,9 Mb), um megaplasmídeo (2,6 Mb), além de dois plasmídeos, pMOL30 (234 Kb) e pMOL28 (171Kb) (Von Rozycki & Nies, 2009).
O principal mecanismo de resistência de C. metallidurans CH34 consiste, entretanto, num sistema de efluxo dos cátions, que detoxifica eficientemente o citoplasma da bactéria, porém não o ambiente, e, portanto, essa bactéria não é adequada para biorremediação. Para que essa bactéria pudesse desenvolver plenamente o seu potencial biotecnológico, seria necessário submetê-la a manipulações genéticas que lhe conferissem a capacidade de imobilizar os íons de metais pesados na sua superfície celular, facultando à linhagem a capacidade de servir como agente biorremediador, além de colonizar ambientes contendo metais.
Por meio da utilização de um promotor forte induzido por metais desenvolvido no nosso laboratório (Ribeiro-dos-Santos et al., 2010), construímos uma nova linhagem de C. metallidurans CH34, capaz de remover sete diferentes íons metálicos (Pb+2, Zn+2, Cu+2, Cd+2, Ni+2, Mn+2, Co+2) do meio em que é colocada, em níveis significativamente superiores aos apresentados pela linhagem selvagem, como se pode observar pelos resultados apresentados na Tabela 1.
Para alcançar esse objetivo, foram acrescentadas ao genoma da linhagem original as sequências gênico – necessárias para que a bactéria expressasse, ancorada na sua superfície, uma proteína sintética com alta capacidade de se ligar a metais (fitoquelatina EC20). A nova bactéria funciona como um verdadeiro ímã para metais, ficando totalmente recoberta pelos íons metálicos, além de se manter perfeitamente saudável durante o processo. Assim, ao mesmo tempo que pode ser utilizada para a descontaminação de qualquer efluente contendo metais (biorremediação), essa bactéria pode servir para concentrar e recuperar os metais perdidos durante o processo de extração de minérios (biolixiviação). As vantagens desse tipo de tratamento são os baixos custos e a alta eficiência em comparação aos métodos físico-químicos atualmente empregados. A nova bactéria é particularmente interessante para a indústria de mineração, já que é capaz de aumentar a produtividade de extração de minérios, bem como de reduzir os impactos ambientais dessas atividades e esse projeto foi financiado pela Cia. Vale, com o intuito de utilizar a bactéria em biorreator, para o tratamento de efluentes de mineração. Esse trabalho originou dois depósitos de patente (Schenberg et al., 2008; Biondo et al., 2008).
Rua da Reitoria,109 - Cidade Universitária
05508-900 São Paulo SP - Brasil
Tel: (55 11) 3091-1675/3091-1676
Fax: (55 11) 3091-4306
estudosavancados@usp.br
A época dos organismos geneticamente fabricados
A época dos organismos geneticamente fabricados
A biologia sintética não se limita à observação: agora ela passa pela engenharia e já é um grande mercado onde se pode adquirir diferentes peças para “montar” novos víruis, bactérias e leveduras. Mas os riscos da disseminação acidental ou deliberada de organismos artificiais suscitam preocupações
por Dorothée Benoit-Borwaeys
Rumo à industrialização da vida? O anúncio, de 21 de maio, do pesquisador Craig Venter, sobre a fabricação de uma bactéria com genoma artificial pode sugerir que estamos próximos disso. A biologia sintética já é um grande mercado, onde existem muitas “peças” para construir vírus, bactérias ou leveduras. Chegou, então, a onda dos organismos geneticamente fabricados.
“Nós precisamos de vocês! O poder de suas ferramentas implica responsabilidade.” Com essas palavras o agente do FBI (Federal Bureau of Investigation), Ed You, desafiou os estudantes, vindos do mundo todo, para a competição de biologia sintética iGEM (Competição Internacional de Máquinas Construídas Geneticamente), realizada em Boston, nas instalações do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Em outubro de 2009, o FBI, parceiro do evento, pretendia transmitir uma mensagem aos jovens adeptos: “sem eles, não será possível vigiar o bioterrorismo!” Piers Millett, do bureau de armas biológicas das Nações Unidas (Genebra), sugeriu a criação de um código de conduta “para melhor segurança, que permita um trabalho mais divertido”, posto que a exploração lúdica continua a ser o motor desse encontro anual.
O princípio da competição é simples, cada uma das 112 equipes participantes (1.700 alunos), da sexta edição do iGEM, apresentou sua “criação bacteriana artesanal”. Cada uma delas cortou, enxertou e juntou genes para produzir um medicamento, emitir odores, um sinal luminoso intermitente ou detectar arsênico. Nessa grande cozinha da vida artificial, durante os dois dias de apresentações ininterruptas, as receitas foram discutidas, contestadas ou alteradas.
A única regra desse grande “jogo” é contribuir com o caldeirão comum, cada um publica seus resultados com livre acesso (código aberto) na coleção de “biobricks”1, pedaços de DNA que comandam funções-chave (ver glossário). “Hoje existem cerca de cinco mil”, sorriu Randy Rettberg, engenheiro de inteligência artificial, um dos fundadores do jamboree, abrindo o freezer onde são mantidos esses “pedaços de genes sintéticos” gerados pela BioBricks Foundation. “O objetivo é ter um jogo de Lego genético”, disse Tom Knight, que, também, passou da informática (software) para a programação da vida artificial (wetware). Com os biobricks, o MIT estabeleceu um modelo padrão de intercâmbio, que permite comandar “peças individuais compatíveis” vivas, como é feito no computador com o código fonte ou na eletrônica com os circuitos impressos. No entanto, a comunidade científica não se favorece do MIT. “Essa competição iGEM é divertida para adolescentes, diz Victor de Lorenzo, coordenador do programa de biotecnologias sintéticas do Centro de biotecnologia de Madrid. “Nenhum trabalho é publicável, porque as provas de viabilidade são geralmente insuficientes, como pesquisadores, usamos nossas sequências genéticas, produzidas em nossos laboratórios”.
Esse é um marco na história da genética. Em 1953, Francis Crick e James Watson publicaram, na revista Nature, a descrição da estrutura em dupla hélice do DNA, o portador da informação hereditária2. Meio século depois, a humanidade acumulou uma quantidade impressionante de informações sobre a composição molecular da vida.
A biologia sintética não se limita à observação, agora ela passa pela engenharia. Ela coloca em prática o lema do grande físico Richard Feynman: “Só conhecemos o que fabricamos”. Praticada por mais de dez mil laboratórios em todo o mundo, a disciplina tem sido possível porque agora se sabe sintetizar rapidamente – e 20 vezes mais barato que em 2000, 35 centavos de euro por par de bases – sequências codificantes de DNA e porque o poder de computação pode dissecar e conceber sistemas vivos.
A biologia sintética não é um simples desenvolvimento da biologia molecular, é a disciplina dos organismos geneticamente modificados (OGM). A ambição desses engenheiros é de programar sistemas biológicos com base nos princípios do design, módulos-padrão e otimização. Todos os pesquisadores falam de “chassis”, em referência ao suporte no qual são enxertadas funções. Eles planejam a construção de genomas inéditos. Alguns defendem, para evitar a contaminação da biologia natural, uma expressão que não é mais incongruente, fazer “divergir radicalmente essas criações biológicas dos organismos conhecidos”3. Por exemplo, usando um alfabeto diferente do ATGC. Além da manipulação dos genes e dos OGM, trata também da construção de genomas a partir do zero e da produção de organismos geneticamente fabricados (OGF). O horizonte é a “industrialização da biologia”, diz Richard Kitney, diretor de sistemas de biologia medicinais do Imperial College de Londres.
Novos mercados
O setor gera um frenesi de investimento, pois está inserido em novos mercados altamente especulativos: a energia, com a produção de bicombustíveis e a bolsa de emissões de CO2, determinada pelo Protocolo de Quioto; a farmacêutica, com organismos transformados em fábricas de medicamentos; a química, em geral, com a síntese de moléculas complexas ou tecidos biológicos, a detecção de substâncias (organismos “sentinelas”) ou a descontaminação ambiental. Essas áreas de aplicação são também as categorias de avaliação do iGEM, provando que a ciência e o mercado, para a bioengenharia, são cada vez mais inseparáveis.
Craig Venter foi um dos pioneiros do sequenciamento do genoma humano em 19904. Em 20 de maio último, anunciou, na revista Science, a criação da “primeira bactéria sintética5”. O pesquisador foi capaz de fabricar, por meio de montagens de sequências copiadas sobre as da bactéria Mycoplasma mycoides (agente da pleuropneumonia de bovinos), um cromossomo “artificial” que foi, por sua vez, reinjetado em outra bactéria (Mycoplasma capricolum, que infeta caprinos), despojada de seu genoma. A célula assim criada funcionou, se reproduziu e formou colônias.
A revista Nature Biotechnology ilustra a expansão da área publicando as definições díspares de 20 especialistas nesse domínio6. Três abordagens concorrentes focalizam a engenharia com escalas diferentes. A primeira se baseia nos componentes genéticos, a segunda em todo o genoma, e a última nas paredes da célula7.
Na primeira categoria estão as etapas de montagem bottom-up promovidas no iGEM. A cultura de engenharia de seu líder, Drew Endy, valoriza a ideia de tijolos de Lego molecular. Transformando micro-organismos em sistemas controláveis, pesquisadores como Tim Gardner, Jim Collins ou Stanislas Leibler (Caltech), demonstraram, em 2000, que poderíamos fazer o design de módulos-padrão capazes de programar comportamentos.
A segunda abordagem é um processo de miniaturização top-down. Trata-se de criar o “genoma mínimo vital”, uma espécie de “chassis de base”, sobre o qual se pode enxertar qualquer módulo funcional. Uma das equipes de Craig Venter conseguiu reduzir o genoma da bactéria E. Coli em 15%, eliminando as partes não codificantes e não vitais. Prêmio Nobel em 1978, Hamilton Smith, anunciou, em janeiro de 2008, a síntese do cromossomo completo (reduzido a 386 em vez de 517 genes) da bactéria Mycoplasma genitalium. Entretanto, a prova do seu funcionamento, uma vez reinserido na bactéria, privada do seu material genético, falta ser feita.
A terceira proposta retoma os trabalhos sobre a origem da vida. Ela se centra na capacidade de automontagem de moléculas que encontramos na parede celular. Pesquisadores como Jack W. Szostak, da Harvard Medical School (Boston), tentam fabricar protocélulas, isto é, espaços biológicos fechados. Autor do primeiro cromossomo artificial de levedura, Szostak colocou em evidência a capacidade espontânea de ácidos graxos bipolares (nos quais uma terminação procura as moléculas de água – hidrofílica – e a outra as rejeita – hidrofóbica) para se agrupar e formar uma esfera em reação à água8. Szostak concorda, “há muitas oportunidades para fazer emergir as propriedades de autoorganização, a replicação que temos obtido não é totalmente autônoma, mas nunca estivemos tão perto de transformar as moléculas em organismos vivos”.
Essas tentativas evocam as investigações sobre a morfogênese (nascimento das formas) realizadas há um século pelo médico Stephane Leduc9, imitando formas, cores, texturas e movimentos de organismos vivos em “jardins químicos”. Em seu livro “A Biologia Sintética” (1912), Leduc desenvolveu uma ambiciosa teoria físico-química da vida para apoiar suas convicções materialistas e antivitalistas10. O geneticista polonês Waclaw Szybalski não se enganou, em 1978, quando previu o advento da biologia sintética. “Até agora, trabalhamos na fase descritiva da biologia molecular. Mas o verdadeiro desafio será a busca de uma biologia de síntese, vamos criar os elementos novos de controle e adicionar esses novos módulos aos genomas existentes, construindo novos genomas. Esse será um campo de expansão ilimitado para fabricar circuitos mais bem controlados e organismos sintético.11”.
Compreendemos o entusiasmo de Drew Endy, que considerou que “programar com DNA é mais legal, mais atraente e poderoso do que com silício.” Ele diz, porém que “A biologia sintética é a plataforma mais emocionante já produzida pela ciência, mas as questões que levanta são também as mais difíceis. Assustadoras como o inferno12”.
Os riscos da disseminação acidental ou deliberada de organismos artificiais suscitam preocupações. Quando esses produtos saírem do laboratório, no caso de projetos dedicados à limpeza da poluição, será uma condição para o sucesso evitar que eles se misturem com outros organismos. Para esse fim, alguns biólogos preconizam confiná-los, empregando transportadores de informação genética diferentes dos que existem hoje e incompatíveis com esses, como os ácidos xenonucleicos. No entanto, mesmo se conseguirmos evitar qualquer cruzamento biológico, esses organismos sintéticos poderiam entrar em competição com a natureza para o acesso a nutrição. Para isso, temos que desenvolver um “confinamento trófico” (ou nutricional), o organismo servindo de chassis seria concebido para ser capaz de sobreviver apenas na presença de substâncias raras ou desconhecidas na natureza, como o flúor ou a sílica. Isso permitiria interromper sua proliferação.
Outras preocupações estão relacionadas com o fantástico viveiro de novas formas de armamento biológico. Um jornalista relata que, em 2006, foi capaz de encomendar, de uma empresa privada, uma parte do DNA do vírus da varíola13. A comunidade dos “hackers” da biologia que compram as sequências de DNA pela Internet também reflete os riscos do livre fluxo de genes modificados.
Enquanto que os genomas do vírus perigosos foram recriados por Eckard Wimmer (poliomielite, na Universidade Estadual de Nova York) e Jeffrey Taubenberger (gripe espanhola, no Instituto Americano das forças armadas), constatamos que poucas salvaguardas estão previstas. Exemplar, a empresa americana Blue Heron Biotechnology se recusa a honrar pedidos perigosos. Ela utiliza um software de digitalização sistemática para detectar as sequências de agentes classificados como “bioterrorismo” e rejeita o pedido. Mas apenas um terço das empresas mostra esse tipo vigilância.
Vigilância
“Deveríamos nos preocupar com a falta de realismo dos cientistas em relação aos usos militares”, argumenta Alexander Kelle, pesquisador do Centro para Investigação sobre desarmamento de Bradford, que conduziu uma pesquisa no quadro do projeto SynBioSafe14. Um grupo composto por pesquisadores, representantes de órgãos do governo dos EUA e da indústria propôs um plano para controlar a elaboração de sequências de DNA15. Alguns estão pedindo uma lei que exige vigilância de todos os fabricantes de genomas sintéticos16.
Embora a atual regulamentação sobre os OGM seja aplicável aos organismos sintéticos, ela não prevê os casos de organismos destinados à disseminação, que devem ser avaliados de maneira especifica17. No âmbito internacional, existem discussões animadas sobre a definição de “OGM”, indicando uma forte vontade de alguns grupos de excluir os “organismos artificiais” dessa denominação. Com a consequência de evitar as restrições regulamentares.
A pesquisa de métodos biológicos para produzir energia a partir de matérias-primas agrícolas poderia desviar cada vez mais produtos agrícolas para alternativas energéticas ou químicas, em detrimento da alimentação humana. No Congresso mundial Synbio 4.0, realizado em Hong Kong, em outubro de 2008, o grupo canadense ETC (Erosão, Tecnologia e Concentração), encarregado de uma sessão sobre as implicações sociais da biologia sintética, publicou um dossiê inquietante sobre os riscos da captação de recursos alimentares18, mostrando como as indústrias do açúcar, petróleo e produtos químicos estão se reagrupando, para a grande felicidade dos fabricantes de vida artificial.
1 http://bbf.openwetware.org/
2 Com a contribuição da cristalógrafa Rosalind Franklin, que obteve o primeiro bloco de ácido desoxirribonucléico.
3 Philip Marlière, Universidade de todos os conhecimentos, 7 julho de 2008.
4 Leia John Sulston, “O genoma humano resgatado da especulação”, Le Monde Diplomatique, dezembro de 2002.
5 Veja Herve Le Crosnier, “A caixa de pandora da biologia sintética” e “os pregadores da genética extrema”, Pulgas sábias, Blogs do Diplô, respectivamente, 21 de maio e 17 de junho de 2010.
6 Nature Biotechnology, New York, dezembro de 2009.
7 Maureen O’Malley, Alexander Powell, Jonathan F. Davies, Jane Calvert, “Fazendo-conhecimento, distinções em biologia sintética”, Bioessays, Cambridge, 2007.
8 Vídeo apresentado com o artigo de Alexis Madrigal, “Biólogos a ponto de criar nova forma de vida” Wired.com, 8 de setembro de 2008.
9 Veja a exposição “Recriando a Vida? Jardins químicos e células osmóticas”, Espci.fr, setembro de 2007.
10 O vitalismo é uma tradição filosófica para a qual a vida não é redutível a leis físico-químicas.
11 Waclaw Szybalski, “Prêmio Nobel e enzimas de restrição”, Gene, vol. 4, Nº. 3, 1978.
12 Michael Specter, “A vida própria”, The New Yorker, setembro de 2009.
13 James Randerson, “Lax, leis, vírus DNA e o potencial para o terror”, The Guardian, Londres, 14 de junho de 2006.
14 A. Kelle, “Biologia Sintética e consciência da Biossegurança na Europa”, Synbiosafe / Bradford Ciência e Tecnologia, Relatório Nº 9. www.brad.ac.uk
15 “Síntese de DNA e Segurança Biológica”, Nature Biotechnology, Junho de 2007.
16 Raimundo A. Zilinskas e Jonathan B. Tucker, “A promessa e os perigos da biologia sintética”, The New Atlantis, Washington, 2006.
17 Michael Rodemeyer, “Vida Nova, Garrafas Velhas”, Woodrow Wilson International Center for Scholars, 25 de março de 2009.
18 “A última palha na comodificação da natureza? Engenharia Genética Extrema e a Economia do Açúcar Pós-Petróleo”, ETC Group, http://etcblog.org
Le Monde Diplomatique Brasil
As fábricas vivas de medicamentos
EVANILDO DA SILVEIRA
Arte PB |
Em 2008, chegou às prateleiras das farmácias da Europa o primeiro medicamento produzido graças à utilização de animais transgênicos. Trata-se do ATryn, nome comercial da nova droga, indicada para tratar o tromboembolismo (ou trombose), doença provocada pela formação de coágulos no interior dos vasos sanguíneos. O antitrombótico é fabricado pela empresa americana Genzyme Transgenics Corporation (GTC) e distribuído pela dinamarquesa LEO Pharma para toda a Europa e o Canadá. É o resultado pioneiro de uma nova tecnologia – no caso, uma biotecnologia –, a transgenia, que começa a se consolidar no mundo todo, inclusive no Brasil. Pelo menos dez grupos de pesquisa no país estão criando cabras, vacas, galinhas, camundongos e até peixes transgênicos para a produção de medicamentos, o desenvolvimento de doenças humanas em animais para pesquisas ou o melhoramento genético de espécies de interesse econômico.
Transgenia nada mais é do que a inserção no genoma de um organismo, por meio de técnicas de engenharia genética, de um ou mais genes de outro indivíduo, que pode ser da mesma ou de espécie diferente da do receptor. Com essa tecnologia é possível, por exemplo, introduzir genes de porcos em seres humanos ou de vírus ou bactérias em plantas. Aquele que recebe o gene adquire características que antes não tinha. O uso dessa tecnologia começou em 1982, quando pesquisadores americanos das universidades de Washington, Pensilvânia e Califórnia produziram um camundongo (Mus musculus) que tinha o gene do hormônio de crescimento de um rato (Rattus rattus), que é uma espécie diferente. Como resultado o camundongo cresceu mais que o normal.
Hoje, já existem várias drogas de origem transgênica no mercado. Nenhuma delas, porém, é produzida por meio de animais – com exceção do ATryn – e sim de microrganismos. O exemplo mais antigo é o da insulina sintetizada por bactérias, que começou a ser comercializada em 1982. Apesar desses sucessos, atualmente a técnica ainda está mais desenvolvida na agricultura, na qual é empregada para criar alimentos resistentes a herbicidas, pragas e clima adverso, bem como torná-los mais nutritivos. Aos poucos, entretanto, começa também a ser usada no reino animal.
O ATryn, por exemplo, foi desenvolvido a partir de uma substância extraída do leite de cabras transgênicas. Para isso, foi introduzido no genoma desses animais um gene humano, construído artificialmente, responsável pela produção da antitrombina humana III (AIII), proteína que é o princípio ativo do novo medicamento. Por meio de uma técnica conhecida como DNA recombinante, os cientistas da empresa americana colocaram o gene no embrião das cabras nos primeiros momentos de sua formação. Posteriormente, a AIII é “fabricada” nas células mamárias do animal adulto. Cada cabra fornece, durante o período de amamentação, 3 litros de leite por dia, o que equivale à produção de cerca de 3 quilos de antitrombina humana III, já purificada, por ano.
Biorreatores
Espécies transgênicas como as cabras da GTC são conhecidas como biorreatores, verdadeiras fábricas de substâncias que podem virar medicamentos. Segundo o químico João Bosco Pesquero, diretor do Centro de Desenvolvimento de Modelos Experimentais para Medicina e Biologia (Cedeme) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), são normalmente animais domésticos de médio e grande porte, utilizados para a sintetização de proteínas humanas de ampla importância biológica e comercial, como enzimas, hormônios e fatores de crescimento. “Em geral a proteína de interesse é expressa no leite do animal, o que faz sua produção mais barata e eficiente”, explica. “Em 1997, o primeiro bovino transgênico, a vaca Rosie, desenvolvida nos Estados Unidos, dava leite enriquecido com a proteína humana lactoalbumina, que o tornava mais nutritivo que o produto natural. Há também pesquisas em curso voltadas para a produção de leite com proteínas necessárias ao tratamento de doenças como fenilcetonúria, enfisema hereditário e fibrose cística.”
A transgenia não serve, no entanto, apenas para a produção de medicamentos. Essa tecnologia tem várias outras aplicações. Ainda na área da medicina, ela pode ser empregada para a geração de animais capazes de desenvolver doenças humanas. “Essa é uma aplicação extremamente importante, pois para criar novas drogas necessitamos testá-las primeiro in vitro em células, depois em animais e finalmente em humanos”, explica Pesquero. “Para tanto, podemos fazer modelos animais transgênicos específicos para esses testes. Por exemplo, se sabemos que tal gene está relacionado ao aparecimento de determinada moléstia, podemos apagar o gene em questão ou aumentar o número de cópias, estudar o efeito na doença e testar as novas drogas para combatê-la.”
Esse tipo de pesquisa traz ainda como consequência positiva o uso racional de animais de laboratório em todo o mundo. “O surgimento de modelos transgênicos provocou uma redução do número de cobaias de forma geral, além de tornar possível a substituição de espécies mais próximas do homem, como primatas, por animais menores geneticamente modificados para ter as características específicas que se desejam estudar”, diz Pesquero. “No futuro, essa tendência de redução na quantidade de animais empregados deverá se acentuar em razão da maior especificidade dos modelos transgênicos desenvolvidos.”
O melhoramento genético de espécies de interesse econômico é outra das aplicações da transgenia. “Utilizando o bovino como exemplo, com o emprego das técnicas de manipulação gênica torna-se possível gerar animais com taxa de crescimento muito superior e de forma muito mais rápida que mediante o uso do melhoramento genético clássico”, explica Paulo Varoni Cavalcanti, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (USP). “Isso pode ser alcançado com a introdução de múltiplas cópias do gene do hormônio de crescimento no genoma de embriões bovinos. Esses animais teriam uma alta concentração desse hormônio durante o período de seu desenvolvimento, causando desenvolvimento corporal muito superior ao de qualquer outro indivíduo.”
Camundongos nocautes
Pesquero e Cavalcanti sabem do que falam. Ambos trabalham na produção de animais transgênicos. O primeiro começou as pesquisas durante seu estágio de pós-doutorado na Alemanha, entre 1992 e 1996. Desde então, não parou mais. Ele já publicou, até hoje, cerca de 140 trabalhos científicos, muitos deles utilizando os modelos animais gerados na Alemanha ou no Brasil. Entre os resultados mais importantes estão os obtidos com camundongos nocautes (indivíduos dos quais se apagou ou deletou um gene) para o receptor B1 das cininas, substâncias associadas a processos inflamatórios e hipertensivos e à obesidade. O trabalho pode levar a melhor entendimento dessas doenças e a possíveis novos tratamentos.
Pesquero retirou o gene do receptor B1 do genoma dos primeiros animais transgênicos que desenvolveu. “Com isso, eles se tornaram resistentes à obesidade induzida por dieta”, conta o pesquisador. “Podemos alimentá-los com dieta rica em gordura que não engordam.” Essa pesquisa teve início em 2000, e os resultados mais importantes foram publicados em 2008, em uma revista internacional. Depois desse trabalho pioneiro, Pesquero e seu grupo na Unifesp criaram o camundongo Vítor, nascido no dia 24 de dezembro de 2001. O roedor foi produzido com a duplicação do receptor B2 das mesmas cininas.
Hoje a equipe de Pesquero desenvolve camundongos para pesquisadores da própria Unifesp e de outras instituições, como o Instituto do Coração, da USP, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e a Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, de Brasília, unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Até hoje, já foram gerados mais de 20 desses animais para cientistas de vários laboratórios do Brasil. Uma das vantagens dos transgênicos produzidos pelo grupo da Unifesp é seu preço. Pesquero não revela o valor cobrado pelos animais, mas diz que é muito inferior ao que é pago a laboratórios do exterior.
Um dos trabalhos mais promissores feitos sob encomenda pela equipe da Unifesp foi a criação para a Embrapa de uma fêmea de camundongo transgênico que produz no leite o fator IX humano, uma proteína responsável pela coagulação do sangue ausente nos hemofílicos. Em 2005, a ideia era produzir a proteína no camundongo e, se tudo corresse bem, usar a mesma tecnologia para gerar vacas clonadas transgênicas, que expressassem o gene humano para esse fator no leite.
Agora, é isso o que vêm tentando fazer a pesquisadora Sharon Lisauskas Ferraz de Campos e colegas da Embrapa. “Estamos desenvolvendo linhagens de células-tronco bovinas a fim de manipulá-las geneticamente e gerar vacas transgênicas que tenham em seu leite a molécula do fator IX”, conta ela. “Dessa forma, como as vacas produzem em torno de 25 quilos de leite por dia, poderemos recolher todo esse produto especial para que a indústria farmacêutica o purifique. Com isso, no futuro o Brasil poderá se tornar autossuficiente em fator IX humano, deixando de importar e, assim, economizando recursos.”
No caso de Cavalcanti, da USP, as pesquisas são com peixes, mais especificamente com o jundiá (Rhamdia quelen), uma espécie de bagre. “Comecei em 2004, quando realizei minha primeira iniciação científica no Centro de Biotecnologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel)”, conta. “O objetivo era introduzir no jundiá genes marcadores [genes de fácil identificação] para criar um modelo biológico geneticamente modificado. Ou seja, estávamos desenvolvendo nossos protocolos científicos para a geração de peixes transgênicos.” Seu orientador na época, Heden Luiz Marques Moreira, da UFPel, explica que o objetivo em si não era a produção de uma proteína específica, mas a obtenção de um método rápido e eficiente de gerar novos animais geneticamente modificados.
Segundo Moreira, isso significa que eles queriam que após criar uma linha transgênica fosse possível alterar as proteínas de interesse utilizando a mesma linhagem. “A ideia era que, se uma primeira proteína fosse produzida de forma estável e em níveis aceitáveis, uma segunda também poderia ser integrada no mesmo sítio do genoma em substituição à primeira”, explica. “Dessa forma, ao final do processo seria possível ter duas linhas transgênicas, uma derivada da outra. Não é questão de produzir uma única linhagem expressando duas proteínas diferentes (algo que chamam de duplo transgênico), mas de aproveitar um sistema e alterar a proteína produzida.”
Marcador fluorescente
Hoje os objetivos do trabalho foram ampliados, e Moreira está tentando desenvolver jundiás capazes de produzir a albumina sérica humana (HSA, na sigla em inglês), uma proteína que ocorre no plasma do sangue e é amplamente utilizada como estabilizante em produtos biológicos e farmacêuticos, tais como vacinas, e em revestimentos de dispositivos médicos. Além disso, ela é usada para tratamento de hipoalbuminemia (queda de albumina no sangue) e de choque traumático. Como peixes não produzem leite, os pesquisadores optaram por fazer o jundiá expressar a proteína no sêmen.
Cavalcanti participou ainda de uma outra pesquisa, dessa vez para a geração de galinhas transgênicas, sob a coordenação dos professores João Carlos Deschamps e Denise Bongalhardo, ambos da Ufpel. Primeiro, eles diluíram no esperma do galo o gene responsável pela produção de proteína verde fluorescente (GFP, na sigla em inglês), que serve como marcador nesse caso, ou seja, para saber se a transgenia deu certo. Depois o galo inseminou uma fêmea, da qual nasceu um pinto morto, mas que expressou a GFP. Ou seja, ele era transgênico, o que serviu para demonstrar que a técnica funciona. O próximo passo do grupo gaúcho é expressar uma proteína de coagulação sanguínea humana, como o fator IX, em ovos de galinhas.
Na outra ponta do país, mais precisamente em Fortaleza, na Universidade Estadual do Ceará (Uece), uma equipe liderada pelo professor Vicente José Freitas está desenvolvendo caprinos transgênicos, que receberam um gene que os tornou capazes de produzir no leite o fator estimulante de colônia de granulócitos humanos (hG-CSF, na sigla em inglês). “Trata-se de uma proteína encontrada em nosso organismo, responsável pela formação das células de defesa”, explica Freitas. “Por isso, ela é essencial para o bom funcionamento do sistema imunológico do ser humano.” O medicamento que for criado a partir do leite dessas cabras poderá ser usado em casos de imunodeficiência, como Aids, na recuperação de pessoas com câncer que fazem uso de quimioterapia ou das que tiveram infarto do miocárdio ou isquemia cerebral.
As pesquisas da equipe cearense começaram em 1999, quando Freitas foi procurado pelo pesquisador Oleg Serov, na época professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que já tinha criado camundongos transgênicos que sintetizavam o hG-CSF. “Como esses roedores são um bom modelo experimental, mas não têm leite em quantidade suficiente para beneficiamento e produção de medicamento, Serov nos propôs utilizarmos a cabra como modelo animal capaz de incorporar o gene e produzir leite o bastante para a realização de testes (in vitro e in vivo) e posterior desenvolvimento da droga”, conta Freitas.
Vantagens dos caprinos
O trabalho levou tempo. O primeiro caprino transgênico, um macho, só nasceu em 2006, mas morreu 19 dias depois, devido a uma nefrite (infecção nos rins) – ou seja, a morte não foi causada pelo fato de ele ser geneticamente modificado. Em 2008 nasceram mais três transgênicos, dois machos, um dos quais morto, e uma fêmea. “Assim, temos hoje um casal vivo, Camilla e Tinho, e ambos possuem o gene do hG-CSF”, diz Freitas. “A fêmea já teve a lactação induzida e verificamos que ela secreta o hG-CSF em seu leite.” Segundo o pesquisador, as cabras levam vantagem sobre outros animais no papel de biorreatores destinados a produzir grande parte das proteínas de uso médico. “Elas não raro parem três filhotes em cinco meses de gestação, enquanto um bovino tem apenas um filhote numa gestação de nove meses, e raros são os gêmeos”, explica.
O pesquisador Luciano Andrade Moreira, do Centro de Pesquisas René Rachou, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Belo Horizonte, resolveu adotar estratégia diferente para o uso de transgênicos. Em vez de produzir medicamentos, ele trabalha diretamente com espécies que causam doenças e as altera geneticamente para que se tornem inofensivas. O primeiro alvo foi o mosquito Aedes fluviatilis, que transmite o parasita Plasmodium gallinaceum, causador da malária em aves. “Nesse trabalho inserimos no genoma do mosquito um gene responsável pela produção de uma proteína no veneno de abelhas (a fosfolipase A2)”, conta Andrade Moreira. “Mostramos que os insetos que tinham esse gene bloqueavam o parasita da malária aviária. Essa proteína deve formar uma barreira no intestino do mosquito que não deixa o plasmódio penetrar na parede intestinal e, após formar um cisto, atingir sua glândula salivar e ser transferido para outra ave no momento da picada.”
Segundo Pesquero, pesquisas como essas e a produção de animais transgênicos são muito importantes para o Brasil. “Se não fizermos isso, em breve teremos de importá-los”, alerta. Ele lembra ainda que as mutações genéticas em animais feitas ao longo das últimas três décadas provocaram uma grande revolução no campo da biologia, permitindo a análise de vários aspectos da função dos genes em animais vivos. “Além disso, as pesquisas biomédicas baseadas nas alterações genéticas em modelos animais oferecem esperança para a cura das principais doenças que afligem a humanidade”, diz. “Portanto, o uso apropriado dos modelos de animais transgênicos propicia as ferramentas necessárias para o desenvolvimento da ciência, com grande potencial para gerar benefícios altamente significativos nos campos médico, biotecnológico e comercial.”
Revista Problemas Brasileiros
Nenhum comentário:
Postar um comentário