quarta-feira, 17 de julho de 2013

CIDADES

Notícias Geografia Hoje


3 mil cidades jogam lixo em lugar errado

Giovana Girardi - O Estado de S.Paulo

Faltando pouco mais de um ano para o fim do prazo dado pela Política Nacional de Resíduos Sólidos para o fim dos lixões no Brasil, 3 mil cidades (54% do total), incluindo as capitais Belém e Brasília, ainda enviam resíduos para destinos inadequados. São quase 24 milhões de toneladas despejadas em condições impróprias por ano, o equivalente a 168 estádios do Maracanã lotados de lixo.



Os dados são do ano passado e fazem parte do Panorama dos Resíduos Sólidos produzido anualmente pela Associação Brasileira de Empresas de Limpeza e Resíduos Especiais (Abrelpe).

A 10.ª edição do relatório, que será divulgada hoje, mostra que o cenário apresentou alguma melhora ao longo da década, mas muito lentamente, o que indica que vai ser impossível cumprir a legislação na data prevista. Em agosto de 2014, municípios em condições irregulares podem ser enquadrados na Lei de Crimes Ambientais.

Em 2003, primeiro ano do levantamento, do total de resíduos coletados no País, 59,51% iam para lixões ou aterros sem tratamento de chorume e controle de gases e apenas 40,49% seguiam para aterros sanitários. Em 2012, a proporção se inverteu: 58% tiveram destino adequado e 42%, inadequado.

O problema é que o quadro tem se mantido constante desde 2011. "Pela proximidade do prazo estabelecido pela lei (em 2010), esperávamos ver um avanço, mas a situação se estagnou. Por outro lado, há uma tendência de aumento, ano a ano, do volume de resíduos produzidos pelos brasileiros", afirma Carlos Silva Filho, diretor executivo da Abrelpe.

Geração de resíduos. A produção per capita subiu de 381,6 kg por ano em 2011 para 383 kg por ano no ano passado. Ao longo dos dez anos de levantamento, a geração de resíduos do País cresceu 21%. "Não por coincidência, o PIB per capita também variou 20,8% nesse período. Enquanto a população só cresceu 9,65%. Mais riqueza traz mais consumo de embalagem e também mais desperdício de alimento."

Como vem ocorrendo nos últimos anos, o Estado de São Paulo liderou a geração de resíduos. No ano passado, cada habitante produziu 1,393 kg/dia, contra 1,228 kg/dia no País.
Jornal O Estado de S. Paulo

A periferia e sua Primavera de Praga




A periferia e sua Primavera de Praga
As periferias do Brasil são hoje marcadamente diferentes do que eram há dez anos e, em muitos sentidos, para melhor.Por Pedro Alexandre Sanches

“O brasileiro não confia muito no Brasil, não confia na melhora, não confia no vizinho. Não há sentimento de união”, afirmava Mano Brown na Fórum número 1, dez anos atrás. “Qual das violências? A do revólver? Há vários lados a analisar. Um, é o do desemprego. A tendência é só piorar”, perguntava e respondia, noutro trecho, o líder dos Racionais MC’s e de todo o rap brasileiro.

Não é possível dizer que Brown estava errado em seus conceitos, até porque, sabendo disto ou não, ele era um dos homens que trabalhavam, em 2001 e desde muito tempo antes, para modificar a realidade que suas palavras expunham e denunciavam. Ainda que o desemprego tenha diminuído de lá para cá, tampouco é possível dizer que vivamos num mar de rosas no Brasil de 2011. Mas que as previsões do rapper estavam erradas até certo ponto, ah, elas estavam.

As periferias do Brasil são hoje marcadamente diferentes do que eram naquele tempo e, em muitos sentidos, para melhor. E há inúmeros depoimentos a corroborar essa evidência. “Vou fazer um filme agora, O Jeito Favela de Ser Feliz. É sobre como a favela é feliz no seu cotidiano”, conta Preto Zezé, um ex-lavador de carros, que hoje é presidente nacional da Cufa, a Central Única das Favelas. Cearense de Fortaleza, ele mora na cidade natal, e isso por si só é um sinal de mudança: a Cufa não acredita que seu presidente precise residir numa das capitais antes fatídicas do Brasil, Rio de Janeiro ou São Paulo.

Zezé desenvolve sua tese: “A felicidade aumentou muito na favela, Ave Maria! Eu estava conversando com um amigão do Psol aqui de Fortaleza, que foi candidato a prefeito. Ele dizia: ‘As pessoas estão mais tristes, deprimidas’. Eu falei: ‘Só se for no seu condomínio, cara!’.” Zezé, que também é rapper e prepara estreias como cineasta e escritor, é uma das várias personalidades egressas das periferias que apontam a importância crucial do hip-hop – logo, do trabalho de Mano Brown e correlatos – como marco de partida para essa mudança de sintonia.

Outro é o poeta Sérgio Vaz, que há dez anos ajuda a modificar o estado de espírito de comunidades como a Chácara Santana, na zona sul paulistana, com os saraus da Cooperifa, que também há exatos dez anos fazem circular poesia produzida para e pelos cidadãos periféricos de São Paulo. “No começo, eu escrevia poesia de protesto. Com a abertura política, os caras falaram que esse negócio de escrever poesia falando do governo estava fora de moda. Falei: ‘Porra, me fodi, porque só sei escrever sobre isso’”, ele lembra. “E aí veio o hip-hop. Pô, então, as coisas não melhoraram tanto quanto o jornal e a novela dizem. Eu, que pensava em escrever como Chico Buarque, pensei: ‘Pô, minha turma não é o Chico Buarque. Eu estava vendo a banda passar quando o fim de semana no Parque Santo Antônio me pegou à toa na vida’.”

A referência aqui é ao rap “Fim de semana no parque”, lançado em 1993 pelos Racionais. “A gente nunca imaginou que o nosso bairro ia estar numa música”, Sérgio evoca, rindo. “A gente está acostumado a ouvir falar de Ipanema, Leblon, ‘dia de luz, festa de sol, e o barquinho a deslizar no macio azul do mar’, que é a realidade da classe média. De repente, você ouve alguém falando do seu bairro. O RZO fala de Pirituba, vem o Sabotage e fala do Brooklin. Peraí, a gente mora aqui. E aí começou todo mundo a falar dos seus bairros, e começou a dar um ar de pertencimento. Quem tem que sentir vergonha da favela é o governo, não é?”

Se em setores do chamado “centro” o hip-hop era e é visto com reservas e desdém, Sérgio dá a exata dimensão de como as letras e batidas do rap caíam nos ouvidos das comunidades, que passaram a produzi-las: “Muitos caras foram ouvir falar de Zumbi dos Palmares, Martin Luther King, Malcolm X ou Steve Biko pela primeira vez através de uma música de rap, não na escola. A partir daí, a bússola se inverteu um pouco, um lugar que tinha tudo pra dar errado começa a dar certo... Hoje, há moleques frequentando a universidade, fazendo cursos de cinema, fotografia, noites do sarau da Cooperifa com 300 pessoas pra ouvir e falar poesia. E tudo isso aconteceu por causa do desprezo da classe dominante, que nem sabe o que a gente está fazendo.”

O rap é vetor notável desse fenômeno, mas não é o único. Na década que passou, esse modelo de orgulho e autonomia proliferou por diversas periferias do Brasil. A paraense Gaby Amarantos, cantora e compositora de tecnobrega, fala em alto e bom som de sua origem indígena, paraense e, mais especificamente, de filha de Jurunas, bairro pobre de Belém. Em diversos estados do Nordeste, pedreiros, motoristas, empregadas domésticas e zeladores de edifícios de classes média ou alta abandonam seus empregos para cantar e/ou trabalhar na movimentada indústria do novo forró. No Rio, funkeiras inventam um feminismo de características próprias e originais, e a Cidade de Deus vira sede disseminadora de literatura, funk carioca, cinema, hip-hop e ativismo social – pelo rap e pela militância na Cufa, MV Bill vira herói de sua comunidade, invertendo paradigmas negativos seculares.

“Quando eu morava na Piraporinha, nos anos 1970, a gente tinha que mentir que morava no Socorro ou em Santo Amaro pra conseguir emprego. Na TV, era época do Gil Gomes, esses caras que a cada semana pegavam um bairro pra satanizar, e esse bairro ficava judiado”, lembra Sérgio. “Hoje tem Datena, eles continuam lá, só que o alcance que têm é muito menor. Hoje, a juventude não para pra assistir Datena. O vício da TV é uma coisa dos mais velhos. A geração nova, da internet, sabe que tem coisa muito mais interessante acontecendo no YouTube.”

O orgulho do artista-cidadão

Outro caso exemplar é o de Heliópolis, na zona sul paulistana, hoje mais citada na mídia por conta de sua orquestra sinfônica que por relatos de violência nas páginas policiais. Numa noite em que o bairro é visitado pelo repórter, há oito festas ocorrendo simultaneamente, todas elas gratuitas, incluindo festas de funk e forró ao ar livre, show do sambista Almir Guineto e a Balada Black, assim definida por seu organizador e DJ, Reginaldo Gonçalves: “Cerca de 800 jovens participam e seguem à risca algumas regras, como não consumir qualquer tipo de bebida alcoólica ou drogas. A balada é produzida e fiscalizada pelos próprios jovens, que, além de mostrar que têm como se divertir de cara limpa, promovem a valorização da comunidade e o respeito às diversas tribos, através dos diferentes estilos musicais que tocamos.”

Patrocinado mais ou menos invisivelmente pela cervejaria Ambev, o projeto desincentivador do consumo de álcool antes dos 18 anos se chama Jovens Alconscientes. É uma iniciativa da Unas, Associação de Moradores de Heliópolis, da qual Reginaldo é diretor. Ele também dirige a Rádio Comunitária Heliópolis, experiência bem-sucedida (e, de início, bastante perseguida pelos poderes oficiais) de mídia alternativa e cidadã, uma das muitas que têm ajudado habitantes das periferias a prescindir de informações tendenciosas oferecidas pela “grande” mídia – os locutores, moradores da comunidade, são estudantes universitários. O sistema todo foi alçado à condição de Ponto de Cultura, na gestão anterior do Ministério da Cultura.
As cotas nas universidades, por sinal, são outro elemento notável de transformação – mais uma vez, sob fortes resistências da sociedade dita de “centro”. “O cara da periferia faz uma faculdade inferior, e mesmo assim o outro cara está com raiva dele”, ironiza Sérgio. “É aquele que come três refeições e está incomodado com quem come uma. Agora os caras estão comendo! Se soubessem que o cara que come uma refeição não tem tanta vontade de morder o que come três... ‘Reacionário’ é mesmo a palavra, eu não consigo entender o ódio que o cara tem de alguém que faz uma coisa diferente da dele.”

Reginaldo avalia, de dentro, as mudanças em sua comunidade: “Vejo que Heliópolis avançou muito nesses dez anos. Na minha infância e adolescência, não tínhamos praticamente nenhuma opção de lazer ou cursos de formação ou de profissionalização. As nossas referências infelizmente vinham das ruas. Não tínhamos referências positivas. Os jovens de hoje têm muitas opções, o acesso à informação é fácil e temos vários exemplos de pessoas que moram em nossa comunidade e hoje são referências positivas para nossa juventude.”
A profusão de lan-houses, democratizando até certo ponto o cyber-espaço nas comunidades é citada indiretamente na ponderação de Reginaldo: “Hoje temos mais acesso à informação, por meio da internet e de outras mídias. Mas infelizmente, por outro lado, em alguns pontos ainda não tivemos muitos avanços, como a questão da educação de qualidade.”

Sérgio também faz o balanço entre o que melhorou e o que não: “Algumas coisas mudaram, algumas continuam as mesmas. Às vezes, muda-se alguma coisa pra não se mudar coisa alguma. A educação ainda é falha, não por culpa dos professores, mas porque a escola está a mil e os alunos estão a milhão. O sistema de saúde ainda é muito falho, a segurança é muito falha. O que mudou pras pessoas é a condição financeira, que melhorou um pouco, é inegável.”
Mais uma vez, o poeta da Cooperifa traça um paralelo entre épocas distintas: “Nos anos 1980, pra ir até o Bexiga assistir um cineclube ou dar um rolê, a gente atravessava a cidade. Pra voltar, tinha que esperar o primeiro ônibus passar às 5, 6 horas da manhã. Hoje, um jovem aqui da nossa quebrada não precisa ir pra lugar algum pra ir ao cinema. Nós temos Cinema na Laje, Cine Becos, Cine Escadão, Cine Viela, Cine Palmarino. Se ele quiser ouvir e falar poesia, tem 50 saraus espalhados por aí. Tem grupos de teatro se apresentando em espaços como praças, escolas. Estamos vivendo a nossa Primavera de Praga, a nossa bossa nova, a nossa tropicália. E o que está sendo bacana é que é a nossa primeira vez, e a primeira vez cê tá ligado como funciona, né?”

Como funciona, Sérgio? “É muito mais forte. A gente nunca teve uma literatura que nos representasse, uma música que nos representasse além do samba. No máximo o cara ia pro centro e voltava famoso pra quebrada. Hoje, não, o cara quer ser reconhecido na quebrada dele, é um artista-cidadão.” Chame-se bossa negra (como chamava Elza Soares, 50 anos atrás), pretropicália, Cooperifa ou o que for o fenômeno, ele bate às nossas portas em 2011 – e a cegueira da “grande” mídia em percebê-lo é mais um sinal a legitimar a primavera.
De volta ao começo, talvez as formulações de Mano Brown dez anos atrás fossem algo descrentes num futuro para os seus. Dez anos depois, o artista-cidadão Mano Brown continua em sua quebrada, mantém-se dentro de seus princípios. E assiste ao seu redor às transformações que suas palavras, mesmo eventualmente pessimistas, ajudaram bravamente a construir.
Revista Fórum

Estatuto da Cidade - A lei da cidade

Estatuto que criou política urbana tem dez anos, mas conquistas não atendem expectativas
PEDRO BIONDI
Transporte coletivo: "Visto como algo para os pobres"
Foto: Pedro Biondi


Há dez anos entrava em vigor a lei federal 10.257, mais conhecida como Estatuto da Cidade, que regulamentou o capítulo de desenvolvimento urbano da Constituição Federal e instituiu uma tábua de mandamentos cujo norte era a ideia de cidades sustentáveis. Na busca desse cenário ideal, o uso da propriedade urbana é limitado pelo bem coletivo, pela segurança e pelo bem-estar dos cidadãos e pelo equilíbrio ambiental. Nas cidades sustentáveis, diz o estatuto, é assegurado “o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”.

Ainda segundo o texto dessa lei, a política urbana tem por objetivo “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana” e deve ser implementada por meio de gestão democrática, com participação da sociedade. Seus instrumentos permitem adensar, flexibilizar, reorientar ou “congelar” áreas para estimular a atividade econômica, promover a qualidade de vida, baratear a moradia e preservar o patrimônio natural ou histórico. E propiciam ao governo municipal a recuperação de parte dos lucros gerados por melhorias de infraestrutura que valorizem imóveis ou regiões.

De lá para cá esses princípios e práticas entraram em implementação, acompanhados de passos importantes em trilhas legais, institucionais e políticas. Apesar disso, as áreas urbanas – onde se concentram 84,4% dos 191 milhões de brasileiros, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – continuam gerando ou expressando carências profundas, relacionadas à falta de moradia, a nós de trânsito e à produção de montanhas diárias de lixo – problemas que, em muitos casos, vêm sendo descritos por imagens como “caos” e “colapso”. Seria a norma frágil, avançada demais ou fácil de contornar?

Na prática

Segundo o economista Jeroen Klink, as conquistas reais ficaram aquém da expectativa até aqui. “Não mudou drasticamente o processo de aprovação de obras e o controle social sobre ele, e tampouco a governança sobre a terra”, exemplifica o professor da Universidade Federal do ABC.

Entre as novidades para a administração municipal está a exigência de estudo de impacto de vizinhança (EIV) para empreendimentos com possíveis efeitos negativos. Também as audiências públicas compõem o cardápio de aberturas participativas para as decisões importantes. Poucas prefeituras, porém, têm lançado mão delas quando não são obrigatórias, e organizações civis se queixam das condições em que se dão as consultas. Por fim, praticamente não se tem notícia de algumas aplicações, como a desapropriação de imóveis subutilizados.

“Sob o ponto de vista das instituições e da política, o estatuto é um bebê ainda”, pondera o relator de direito à cidade da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Dhesca Brasil), Orlando dos Santos Junior. Em sua opinião, a questão de fundo é um conflito entre diretrizes e práticas de mercantilização e desmercantilização da cidade – ou seja, entre as “leis do mercado” e suas contrapartidas. “Temos uma Constituição em que a propriedade privada tem muita força”, comenta.

O vice-presidente do Sindicato da Habitação do Estado de São Paulo (Secovi), Claudio Bernardes, destaca as possibilidades geradas para o desenvolvimento das cidades por instrumentos urbanísticos previstos no estatuto, como as operações urbanas consorciadas, a outorga onerosa e a transferência de potencial construtivo (ver texto abaixo). Ele faz contudo uma ressalva: “É como uma caixa de ferramentas cirúrgicas, que deve ser usada por alguém com capacidade. Nas mãos de um médico ruim, fica perigosa”. Bernardes, que também é pró-reitor da Universidade Secovi, explica que o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) progressivo no tempo, em especial, pode ser muito positivo ou muito negativo. Em sua opinião, os problemas que afetam os grandes centros e as localidades em seu entorno pedem hoje a elaboração de um “Estatuto da Metrópole”.

Longa gestação

O Estatuto da Cidade descende de uma das 83 proposições elaboradas pela sociedade civil e recebidas pelos parlamentares na Constituinte – a emenda popular 63/1987, ou Emenda Popular da Reforma Urbana, apresentada com 131 mil assinaturas. Boa parte de seu conteúdo não entrou no texto constitucional, mas foi incorporada na lei que o regulamentou.

Apresentado em 28 de junho de 1989 pelo senador Roberto Pompeu de Souza, o projeto de lei do estatuto herdou mais uma coisa daquele momento: o cabo de guerra entre o Movimento Nacional pela Reforma Urbana e entidades do setor imobiliário e construtivo, conforme explica o consultor legislativo do Senado José Roberto Bassul, ex-presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil. O artigo 182 da Constituição, embora gerasse a necessidade imediata de uma lei federal para ser aplicado, deslocou em parte essa batalha para o âmbito local, ao dar centralidade ao plano diretor municipal na política urbana.

Entre outros, o projeto de lei do estatuto despertou a ira dos participantes da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP). No entanto, diz Bassul, após anos de impasse na Câmara dos Deputados, o documento passou a agradar ao pessoal favorável à reforma urbana e ao capital imobiliário. “Boa parte dos instrumentos incluídos na proposta já vinha sendo posta em prática pelos municípios, com resultados animadores para o empresariado, e isso derrubou o preconceito que marcava o projeto como socialista”, explica.

As cidades se repensam
O Ministério das Cidades realizou uma campanha para estimular a elaboração do plano diretor – que é obrigatório para municípios com mais de 20 mil habitantes ou perfil turístico – e ao final 87% deles estavam em dia com o compromisso. Um balanço crítico dessa leva de planejamentos, apresentado no livro Os Planos Diretores Municipais Pós-Estatuto da Cidade, organizado por Orlando dos Santos Junior e Daniel Todtmann Montandon, mostra que os principais sucessos divulgados dizem respeito à adesão a processos participativos e sua promoção, bem como à inclusão dos instrumentos urbanísticos. Segundo o estudo, 91% dos planos têm zoneamento, 87% preveem mecanismos para desapropriação de imóveis ociosos e 81% criam zonas destinadas a habitação para a população de baixa renda. Apesar desses avanços, há falta não só de metas e estratégias como da própria identificação de fontes de recursos para sua consecução.

Outra constatação é que há baixa capacidade institucional e técnica das prefeituras para lidar com essas questões. Segundo Santos Junior, que é também coordenador da Rede para a Implementação dos Planos Diretores Participativos, isso reflete, em parte, falta de empenho em transformações. “É necessário chegar a um modelo de debate que explicite os interesses dos diferentes atores e os conflitos resultantes”, opina. “E para a implementação dos planos parece interessante cada cidade identificar os instrumentos que são mais úteis para ela e concentrar-se neles.”

Uma das principais recomendações do balanço é que os municípios avancem (e os estados e a União os apoiem) na estruturação do Cadastro Territorial Multifinalitário – ou seja, conheçam a si mesmos de forma detalhada para embasar quaisquer decisões.

A relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para o direito a moradia adequada, Raquel Rolnik, e o professor Jeroen Klink concluíram em 2010 o estudo Crescimento Econômico e Desenvolvimento Urbano, sobre as cidades brasileiras e as condições de habitação em 1991, 2000 e 2008. Os autores elaboraram um indicador de condições de urbanidade baseado no acesso a infraestrutura, no qual são considerados adequados os domicílios fora de assentamentos precários (favelas e afins), com banheiro, luz elétrica, abastecimento de água, afastamento de esgoto e lixo, e no máximo duas pessoas por cômodo. Os dados referentes a 1991 apresentavam um país com cidades de baixas condições de urbanidade: menos de 23% de casas e apartamentos totalmente adequados e cerca de 50% dos municípios com índice zero de moradias nessas condições.

Em 2000, o quadro mostra um Brasil com 33% dos domicílios totalmente adequados (o que significava 30,5 milhões sem alguns dos itens mínimos) e nenhuma municipalidade com 100% das residências plenamente adequadas. Na projeção para 2008, a porcentagem de domicílios adequados crescia um pouco mais rápido. As variações, embora positivas em todas as regiões, foram mais intensas onde já havia melhores condições.

Eixo do PAC

O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) tem na infraestrutura social e urbana um de seus eixos. Segundo seu último relatório, divulgado em julho, com dados consolidados até outubro de 2010, o programa previa destinar à habitação R$ 106,3 bilhões públicos e privados entre 2007 e 2010, beneficiando 4 milhões de famílias. Além disso, deveria garantir água e coleta de esgoto a 22,5 milhões de domicílios e infraestrutura hídrica (que inclui, por exemplo, a construção de canais, adutoras e barragens de médio e grande porte) a 23,8 milhões de pessoas.

Os desembolsos do governo para as duas áreas durante esse período, contudo, ficaram muito longe das metas, segundo relatório do Tribunal de Contas da União (TCU). De acordo com o documento, o governo previa gastar R$ 16,9 bilhões em habitação de interesse social pelo PAC, mas conseguiu desembolsar apenas 2% do total, atendendo 24 mil famílias. Já em saneamento, da meta de R$ 40 bilhões, somente teria sido aplicado R$ 1,5 bilhão. O Ministério do Planejamento afirma que esses percentuais subiriam se fossem computadas obras em curso, acrescentando que a falta de iniciativas semelhantes no período anterior deixou defasada a área de engenharia dos municípios, acarretando maior demora nas ações. Ainda segundo a assessoria de imprensa dessa pasta, o Programa Minha Casa, Minha Vida, lançado em 2009, chegou a 1 milhão de unidades contratadas no período, num esforço para cobrir parte do déficit habitacional.

O PAC 2 deve destinar R$ 278,2 bilhões à habitação até 2014, entre dinheiro público e privado, no âmbito da segunda edição do Minha Casa, Minha Vida. Há previsão do desembolso de R$ 22,1 bilhões em saneamento, R$ 18 bilhões para obras no metrô, corredores de ônibus e afins, R$ 13 bilhões direcionados ao setor de água em áreas urbanas e R$ 11 bilhões para drenagem e contenção de encostas (valores que não incluem a contrapartida de estados e municípios). Além disso, existe a intenção de construir equipamentos para qualificação urbana, como praças e postos de saúde.

Ciclo vicioso

O estudo de Jeroen Klink e Raquel Rolnik problematiza o cenário. A soma de elementos claramente positivos – crescimento da economia, oferta maior de crédito, “aumento espetacular” do gasto público em desenvolvimento urbano, um dos ciclos imobiliários mais intensos da história nacional, um novo marco legal – não estaria conseguindo suplantar um modelo viciado, “marcado por disparidades socioespaciais, ineficiência e grande degradação ambiental”, em que a população de baixa renda é sempre a menor beneficiária.

A solução não se completa em nível local, conclui Klink, porque essas questões passam pelo sistema político nacional e sua lógica de negociação. Para piorar, a precariedade que empurra pessoas para áreas ambientalmente frágeis e sem estrutura potencializa os efeitos de inundações, secas e incêndios. Este ano, mal tinha arrefecido a comoção com a tragédia na serra Fluminense, o sul do país já contabilizava milhares de desabrigados e dezenas de mortes em função de chuvas, sem falar no prejuízo financeiro. Em junho, foi a vez de Roraima enfrentar uma das piores cheias de sua história. A preocupação aumenta com o agravamento dos desastres devido às mudanças climáticas.

Entre as medidas anunciadas para enfrentar essa situação, 25 cidades deverão contar, a partir deste verão, com sistemas de alerta contra enchentes e deslizamentos. Está previsto para novembro o início das operações do Centro de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), criado por decreto em julho pela presidente Dilma Rousseff. O centro, onde trabalharão inicialmente 75 pesquisadores, deve receber investimentos de R$ 250 milhões até 2015.

Um atlas das áreas de risco foi encomendado pelo Ministério da Integração Nacional à Universidade Federal de Santa Catarina. Quando esta reportagem estava em fechamento, os inventários por estados se encontravam em fase de finalização.

A luta por um teto

Estima-se que 5,5 milhões de famílias careçam de moradia digna. Os números do déficit habitacional representam pessoas morando em favelas, cortiços e loteamentos irregulares. A partir desse contingente, formaram-se organizações como a União Nacional por Moradia Popular (UNMP), que descobriu nas ocupações de prédios e terrenos uma forma de chamar a atenção da sociedade e pressionar os governantes.

De acordo com a titular da Secretaria de Mulheres da UNMP, Maria das Graças Xavier, esses movimentos conseguiram bons ajustes no Minha Casa, Minha Vida, como o subsídio maior para famílias com renda de até três salários mínimos. As bandeiras atuais dos militantes passam pelo fortalecimento do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social e pelo estabelecimento de um percentual mínimo para moradia nos orçamentos federal, estaduais e municipais.

Depois de crescer de 5,9 milhões de unidades, em 2000, para 6,3 milhões, em 2005, o déficit habitacional caiu substancialmente, chegando a 5,5 milhões em 2008. Os números são da Fundação João Pinheiro, do governo de Minas Gerais. Para acelerar o processo, Maria das Graças Xavier sugere que administrações municipais e estaduais se disponham a firmar parcerias. “A principal contribuição delas pode ser a oferta de terrenos centrais para Zeis”, esclarece.

Desde a década de 1990, iniciativas como o Programa Favela-Bairro priorizam a permanência dos habitantes, em vez da remoção para conjuntos distantes do trabalho e de referências pessoais. Em 2004, o governo federal passou a emitir títulos de posse para moradores de favelas por meio do Programa Papel Passado, que promove também a urbanização desses locais. “Somos a favor dessa iniciativa, como forma de dar alguma segurança a pessoas numa sociedade capitalista”, afirma a líder. “Estamos discutindo a possibilidade de um modelo com posse coletiva.”

Ruas congestionadas

A crise na mobilidade urbana, com a multiplicação de carros e motos, evidencia os efeitos colaterais da estabilidade econômica. O ritmo de crescimento do volume de veículos de passeio supera o da população na maioria das 15 metrópoles brasileiras, nas quais o número de habitantes subiu por volta de 10,7% e o de automóveis aumentou 66% entre 2001 e 2010, segundo estudo do Observatório das Metrópoles, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Isso significou mais de 900 mil carros despejados nas ruas a cada ano. Assim, Curitiba, Campinas, Florianópolis e São Paulo vão se aproximando de uma proporção de um carro para cada dois habitantes.

Como resultado, na saída do feriado de Corpus Christi de 2009, os paulistanos tiveram de encarar 293 quilômetros de congestionamento. Ainda de acordo com o Observatório, um em cada quatro moradores da Região Metropolitana do Rio de Janeiro leva mais de uma hora para ir de casa para o trabalho.

“Falta uma visão do transporte como serviço essencial”, afirma Nazareno Affonso, coordenador do Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade para Todos (MDT) e representante da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP) em Brasília. “Os investimentos são regidos pelo mercado e o transporte coletivo é visto como algo ‘para os pobres’.”

Ele alerta para uma cultura em que o transporte individual se impõe como se fosse um direito natural, sinônimo de cidadania, ao mesmo tempo em que exige um esforço contínuo de grandes obras. “O correto seria tratar o automóvel como um dos elementos do sistema, cobrar pelos custos que gera e investir os recursos arrecadados nos serviços públicos do setor.” Pelos cálculos da ANTP, os carros poluem dez vezes mais que os ônibus urbanos por passageiro transportado.

O MDT estima que as tarifas de ônibus poderiam cair 12% se o diesel para esse fim tivesse o preço ajustado; 19% se o passe estudantil e as gratuidades fossem custeados pela sociedade como um todo, por meio do poder público, e não somente pelos usuários do sistema; e 18% com redução de tributos e encargos. Dessa forma, uma passagem de R$ 2 poderia ir para R$ 1. Levando a ideia mais longe, nos últimos anos ganhou corpo o Movimento Passe Livre, que reivindica operação pública do transporte e tarifa zero.

Metas ambiciosas

O Brasil produz hoje 200 mil toneladas diárias de lixo. E, com o avanço do debate sobre o tema, a própria palavra vai mostrando sua inadequação, já que a maior parte do que se joga fora é reaproveitável. Está em vigor desde agosto de 2010 a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) e agora falta ao país implementá-la. “É uma política muito avançada, com metas ambiciosas”, diz o secretário de Recursos Hídricos e Ambiente Urbano, Nabil Bonduki, do Ministério do Meio Ambiente. Uma delas é a eliminação dos lixões até 2014. “A grande questão reside não nos recursos, mas em capacitação e vontade política, especialmente dos municípios”, explica o secretário.

Grupos de trabalho com foco nos tipos mais problemáticos de resíduos estão debruçados na questão da logística reversa, pela qual os fabricantes se responsabilizam por seus produtos após o uso. “Essa foi uma vitória”, diz o professor titular aposentado Luiz Moraes, da área de saneamento, da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Ele foi um dos coordenadores do Panorama do Saneamento Básico no Brasil, elaborado por três universidades federais (a de Minas Gerais, a UFBA e a UFRJ) a partir de chamada pública do Ministério das Cidades. De acordo com o estudo, as soluções ou serviços de esgotamento sanitário, a drenagem e o manejo de águas pluviais estão em pior situação que o abastecimento de água e a coleta de resíduos domiciliares.

O Panorama, que calcula em R$ 420,8 bilhões o investimento necessário até 2030, apresentou alguns dados reveladores. Embora o abastecimento de água mostre o quadro mais crítico no campo, onde estão 73% dos domicílios do país sem esse serviço, o esgotamento é mais problemático na área urbana, que responde por 58% do déficit. Tanto num quesito como no outro, a região nordeste concentra carências, com 55% das moradias brasileiras sem rede de abastecimento de água, poço ou nascente com canalização interna, além de 43% daquelas desprovidas de acesso à rede coletora ou fossa séptica.

No que respeita aos resíduos sólidos, ainda segundo o Panorama, as cidades têm maior cobertura. Em 2008, cerca de 90% dos moradores de áreas urbanas tinham soluções classificadas como adequadas quanto ao manejo, contra 28,8% dos residentes no campo. Nesse item, 39 milhões de brasileiros não são atendidos. Novamente, a região nordeste é aquela que apresenta os piores índices, com a parcela de 58% dos domicílios não atendidos, no país, por coleta porta a porta de resíduos sólidos domiciliares. O sudeste vem em seguida, com 28%.

Contas, propostas e esperanças

Lançado em março, o Atlas Brasil – Abastecimento Urbano de Água mostra a necessidade de um investimento de R$ 70 bilhões até 2025 em obras de água e esgoto, especialmente nas regiões metropolitanas e nas grandes cidades das regiões sudeste e nordeste. Segundo esse estudo, da Agência Nacional de Águas (ANA), mais da metade dos municípios brasileiros poderá ter seu abastecimento “no vermelho” já em 2015.

Um reforço para a PNRS foi incluído no Plano Brasil sem Miséria, por meio do qual os catadores de materiais deverão contar com empréstimos e cursos de capacitação, além de ser estimulados a formar cooperativas. Outra frente de sustentação da política de resíduos é o apoio federal a prefeituras para que implantem a coleta seletiva.

Mobilidade é o foco de uma proposta encaminhada pelo Secovi, em parceria com o ex-governador do Paraná e consultor da ONU Jaime Lerner, para o novo plano diretor paulistano, previsto para 2012. A ideia consiste em mudar o modelo de ocupação de maneira que as pessoas possam se deslocar menos. Polos ao longo das linhas de metrô e trem, voltados a todas as faixas de renda, contemplariam trabalho, estudo e diversão.

“O rompimento com a ordem vigente requer mobilização, movimentos sociais que se articulem em torno de novas utopias”, avalia Santos Junior. “O desafio não é mais buscar um novo modelo único.”


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Instrumentos legais para o desenvolvimento das cidades

• Operação urbana consorciada – Conjunto de intervenções em uma área que visem a transformações estruturais. Os recursos gerados têm de ser investidos no perímetro delimitado.

• Outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso – Autorização, com cobrança, para que o empreendedor construa acima do limite original ou mude a finalidade de um terreno. Os valores se destinam a melhorias urbanas.

• Transferência do direito de construir – Permissão para que o dono de um lote venda a área construída a que teria direito para terceiros e/ou use noutro local.

• Parcelamento, edificação e utilização compulsórios – Associados ao IPTU progressivo no tempo (elevação da alíquota do imposto), combatem a ociosidade de imóveis. No limite, alguém que mantenha um terreno ou prédio para especular fica sujeito à desapropriação com títulos públicos.

• Zonas especiais de interesse social (Zeis) – Destinadas a habitação para baixa renda, são áreas vazias ou assentamentos a urbanizar ou regularizar.

• Concessão de uso especial para fins de moradia – Permite a regularização de ocupações de até 250 metros quadrados em terras públicas para pessoas que não tenham outra propriedade. Pode ser assegurada de forma coletiva.

Revista Problemas Brasileiros

O futuro das cidades - A luta por espaço

O futuro das cidades

A luta por espaço

A chegada, aos bairros operários, de grupos sociais pertencentes às classes de maior poder aquisitivo é vista, com frequência, como uma invasão. Para a maior parte dos moradores afetados, essa mudança significa especulação financeira e imobiliária, o que acelera sua expulsão e substituição por cidadãos mais abastados

por Jean-Pierre Garnier

A reestruturação urbana pela “destruição criadora” adquiriu dimensão planetária. De Bombaim a Pequim, passando por Londres, Nova York ou Paris, bairros populares bem localizados são revitalizados, enquanto seus antigos habitantes são deslocados para conjuntos habitacionais de baixa qualidade nas periferias para dar lugar a projetos residenciais “de categoria”. Iniciativas culturais prestigiosas capazes de mobilizar investidores, promotores, diretores e quadros sociais superiores, além de turistas endinheirados. Em suma, para o geógrafo David Harvey, “a favela entra em colisão com o canteiro de obras global, assimetria atroz que só pode ser interpretada como uma maneira gritante de confronto de classe1”.

Para além da aparição de novas formas de organização urbanística e arquitetônica, localizar esse fenômeno como conflito de classe não permite, contudo, afirmar que a luta secular entre dominantes e dominados pela conquista ou reconquista do espaço urbano se dá de maneira imutável ou estável. Seria negligenciar os efeitos ideológicos e políticos da recomposição de grupos sociais, em particular em países onde a “terceirização” ganhou mais importância que a industrialização. O crescimento das atividades do chamado setor de serviços vem sendo acompanhado, desde as últimas décadas do século XX, pela expansão de uma nova classe média ligada à polarização das funções-chaves financeiras, jurídicas e culturais em áreas urbanas elevadas à categoria de metrópole em escala mundial ou, ao menos, nacional. Dois aspectos gerais devem ser ressaltados: de um lado, o aumento do potencial dessa força de trabalho bem provida de capital escolar (estudos e diplomas de ensino superior) que, a fim de frutificar seus investimentos em educação, aliou-se à burguesia; de outro lado, o enfraquecimento do tecido industrial tradicional e a desagregação do movimento operário, que derrocaram os projetos de transformação radical da sociedade e os ideais de emancipação coletiva que os sustentavam.

Divisões de classes
“Confronto”, de acordo com a formulação de Harvey, não é necessariamente afrontamento. Hoje, é sobretudo sob a forma de separatismo que se manifestam as divisões de classes no espaço urbano. Os enfrentamentos diretos entre proprietários e despossuídos tornaram-se raros. O combate para se apropriar da cidade não acabou por falta de combatentes, mas porque, face à uma burguesia sempre na ofensiva, o outro protagonista, o proletariado, não está em condições de se opor a ela. A primeira “conserva o conjunto de atributos de uma classe: situação e destino comuns, sentimento de aparência e estratégias múltiplas de reprodução social, incluindo as ações para enfraquecer o mundo do trabalho2”. Os trabalhadores, ao contrário, perderam a consciência de sua existência coletiva e de seu “papel histórico” de sujeitos revolucionários destinados a subverter a ordem estabelecida, tal como lhes atribuíam os teóricos do socialismo.

Sem dúvida, as manobras das classes dirigentes para privar o povo de seus territórios não pararam de suscitar resistência. Afrontamentos entre a polícia ou o exército e moradores de ciudades cayampas e favelas “disfarçados” de luta contra a delinquência e a subversão na América Latina; despejos realizados por militares nas periferias do Magreb e da África subsaariana; deslocamento forçado de antigos habitantes e demolição de suas casas na China “popular” para abrir terreno a infraestrutura e imóveis destinados a colocar as grandes cidades em dia com a mundialização do mercado; incêndios metódicos de grande calibre em ex-bairros “alternativos” de Berlim apropriados pela neo-burguesia após a reunificação...

Também poderíamos mencionar as revoltas da população negra nos guetos estadunidenses nos anos de 1960 ou as de jovens imigrantes afro-caribenhos nas periferias inglesas marginalizadas, alvos de promessas de “reforma” por parte do governo de Margaret Thatcher no início dos anos 1980. Já na França, na Itália e na Espanha, manifestações, ocupações, multiplicação de squats, autorredução de aluguéis, florescimento de associações de residentes e comitês de bairro fizeram crer, nos anos de 1970, que estava se formando um novo tipo de movimento social qualificado pela sociologia crítica de “luta urbana”, mais ou menos explicitamente enquadrado na reivindicação do “direito à cidade” por todos. Teóricos e militantes de extrema esquerda que viram nessa agitação a abertura de uma nova frente de luta anticapitalista, porém, desencantaram-se rapidamente.

Resistência efêmera

Com algumas exceções, a junção esperada entre trabalhadores e citadinos como uma extensão do domínio da luta de classes não aconteceu. Em ocasiões em que se deu, como no Chile, Argentina ou certas cidades italianas e espanholas – Turim, Bolonha, Barcelona –, os trabalhadores chegaram a unir-se contra promotores, proprietários e seus apoios políticos, mas a resistência, revestida de formas efêmeras e sem futuro, foi quase sempre abafada pela repressão. Esse tipo de rebeldia também foi neutralizado pelas negociações com os poderes vigentes, processo no qual a combatividade e a radicalidade dos habitantes revoltados foram “amansadas” pelo processo de tornar seus líderes notáveis.

As “lutas urbanas”, cuja eclosão deveria reforçar a participação de outras classes sociais junto ao proletariado e contra o capital, foram empreendidas e teorizadas por militantes “contestadores” oriundos da universidade (docentes, pesquisadores, arquitetos, assistentes sociais...). Contudo, a importância dada a esse “novo ambiente” vinha acompanhada de certa indiferença, quando não de pura ignorância em relação ao que acontecia no “mundo do trabalho”. Na França, sob a batuta de universitários da “segunda esquerda” (François Dubet, Didier Lapeyronnie...) – precursores do liberalismo social –, as lutas urbanas foram inclusive inscritas entre os “novos movimentos sociais” convocados a tomar o lugar de importância de um movimento operário esgotado. Estavam destinados a “transformar o contexto social” sem que fosse necessário acabar com o capitalismo, postulado então como inevitável. Para “mudar a cidade”, bastaria ajudar a sociedade a evoluir conferindo-lhe uma configuração mais “urbana”.

É precisamente nessa tarefa que se lançaram um grande número de ex-críticos ferrenhos da urbanização capitalista. Assim, sociólogos e geógrafos, arquitetos e urbanistas, técnicos e eleitos locais conjugaram seus esforços para adaptar o espaço urbano aos requisitos do capitalismo “pós-moderno”. Após esvaziar toda e qualquer conotação revolucionária, não hesitaram em retomar certas temáticas do “direito à cidade” teorizado pelo sociólogo marxista Henri Lefebvre3: prioridade do qualitativo sobre o quantitativo; recusa da padronização das construções para preservar ou recuperar a historicidade, a autenticidade e a personalidade de um bairro; valorização dos espaços públicos – lugares da sociabilidade espontânea por excelência.

Não se trata mais de fazer do espaço urbanotabula rasa como na época da “renovação-escavadeira”, quando pedaços – ou bairros inteiros – da cidade eram considerados “insalubres” e derrubados para “liberar terrenos” propícios ao florescimento de imóveis de “categoria” com fins residenciais ou comerciais. As ruas tortuosas e estreitas, herdadas ao longo dos séculos também foram submetidas ao mesmo processo, dando lugar a “anéis viários” e “radiais” para adaptar a cidade ao automóvel. Atualmente, a palavra de ordem não é “destruição” – salvo um ou outro edifício irrecuperável –, e sim “reabilitação”, “regeneração”, “revitalização” ou ainda “renascimento”.

Em voga entre aqueles que ocupam cargos ligados à manutenção e à reorganização das cidades, essa terminologia visa sobretudo dissimular uma lógica de classe: reservar os espaços “requalificados” às pessoas “de qualidade”. “Todos esses termos que começam por ‘re’ são a priori positivos para a cidade, mas excluem completamente a questão social”, nota um geógrafo belga.

“Quando um bairro torna-se descolado e entra na moda, isso implica que parte dos moradores será ‘descartada’. A região ‘melhora’, mas não para as mesmas pessoas4”. Dito de outra forma, se há “reforma urbana”, ela visa antes “renovar” a população local para que os moradores das zonas centrais dos grandes conglomerados urbanos possam exercer sua vocação: se impor como habitantes de “metrópoles” dinâmicas e atrativas.

Especulação imobiliária
Ainda que efetuada progressivamente, a chegada de grupos sociais pertencentes às classes assalariadas de maior poder aquisitivo e profissionais liberais em bairros operários é vista, com frequência, como invasão pelos habitantes originais. Para a maior parte dos moradores afetados, essa mudança significa especulação financeira e imobiliária, o que acelera sua expulsão e substituição no espaço por citadinos mais abastados e educados, desejosos de constituir uma identidade residencial que esteja de acordo com a identidade social.

A “gentrificação” não atinge somente o espaço construído: afeta também o espaço político e, em particular, a natureza dos partidos da esquerda oficial cuja adesão popular não para de cair. “Trata-se de um fenômeno europeu”, nota o geógrafo Christophe Guilly: “por todos os lados vemos também uma ‘gentrificação’ da social-democracia5”. Não é surpreendente, portanto, que as municipalidades de esquerda se coloquem, na maior parte do tempo, à frente dos desejos e aspirações de sua nova base social, notadamente em questões de urbanismo, habitação e consumo cultural.

No luxuoso folheto de divulgação das reformas programadas para a “Paris do século XXI”, a primeira secretária da prefeitura encarregada do urbanismo e arquitetura da cidade, Anne Hidalgo, resumia a vocação que se impõe aos locais escolhidos como alvo de reformas em grandes cidades: reforçar a identidade de “cidades globais”, “um estatuto que a capital francesa disputa com numerosas metrópoles mundiais6”. Os discursos líricos e consensuais sobre a necessidade de “romper o isolamento do núcleo da aglomeração” em relação à periferia e de levar um “novo olhar sobre o centro da região urbana” não deve gerar ilusões. Como o supertrem circular automatizado previsto pela hipotética “grande Paris”, o projeto de anel viário em torno de bairros tradicionais de Anvers não visa responder às necessidades urgentes de transporte dos habitantes locais, e sim colocar em relação direta polos econômicos, estradas, aeroportos e estações de trem. Em outras palavras, os pontos julgados vitais para a circulação do capital e que, articulados entre si, permitirão à metrópole francesa não ficar para trás na competição com suas rivais europeias.

Que tipo de renovação?

Afinal, os planos urbanísticos faraônicos, atrativos a complexos residenciais que incluem shoppings, museus, cinemas, centro de negócios etc., como por exemplo “grande Hanói”, não deveriam ajudar a ex-capital da resistência anti-imperialista a tomar seu lugar junto a Cingapura, Hong Kong e até mesmo Xangai? (ver artigo de Xavier Monthéard, na pág.10) E o que dizer da construção programada, em São Francisco, de um prestigioso “centro de trânsito” onde diferentes tipos de transporte público estarão conectados para tornar mais fluido o deslocamento em torno da baía? Essa operação de “renovação urbana” que inclui arranha-céus e equipamentos de lazer, é vista como meios para “transformar o perfil físico da cidade”. E seu perfil social também: a parte do antigo centro, com diversos imóveis ocupados, será simplesmente apagada do mapa7.

O projeto que diz recuperar a parte central e a periferia de regiões urbanas para destiná-las à “comunidade” é apenas a aplicação espacial do princípio único que rege o conjunto da vida em sociedade por todo o planeta: a “concorrência livre e justa”.

Jean-Pierre Garnier é sociólogo, autor do livro Contra os territórios de poder.

1 David Harvey, “The right to the city”, New Left Review, n° 53, Londres, set.-out. 2008.

2 Paul Bouffartigues, Le retour des classes sociales. Inégalités, dominations, conflits, La Dispute, Paris, 2004.
3 Henri Lefebvre, O direito à cidade, Ed. Centauro, São Paulo, 2008.
4 Mathieu Van Criekingen, La Tribune de Bruxelles, 6 décembre 2007.
5 Christophe Guilly, “La nouvelle géographie sociale à l’assaut de la carte électorale”,], Centre d’études de la vie politique française, Paris, 2002.
6 Anne Hidalgo, “Paris doit faire face à une évolution profonde du monde”, Paris 21 e siècle, Atelier parisien d’urbanisme-Le Passage, Paris, 2008.
7 Brad Ston, “Ambitious Downtown Transit Project Is at Hand”, The New York Times, 3 de janeiro de 2010.
Le Monde Diplomatique Brasil

O futuro das cidades - Saturação das metrópoles

O futuro das cidades

Saturação das metrópoles
A urbanização extensiva de regiões pobres e emergentes revolucionou os modos de ser e agir de grande parte da humanidade. Ao mesmo tempo origem e consequência das migrações que intensifica, ela cria novas estratificações sociais e acentua o movimento de transformação do ecossistema global pelo ser humano

por Philip S. Golub 

Pela primeira vez na história da humanidade, a porção da população mundial que vive em áreas urbanas ultrapassou, entre 2007 e 2008, a daquela que vive em zonas rurais. Agora, mais de 3,3 bilhões de pessoas moram em cidades. Destas, mais de 500 milhões estão em megalópoles com mais de 10 milhões de habitantes ou em grandes cidades com mais de 5 milhões de habitantes. Daqui para frente, projeções da Organização das Nações Unidas (ONU) apontam para um aumento significativo da taxa de urbanização nas próximas décadas, que deve atingir 59,7%, em 2030 e 69,6%, em 2050. Os novos e antigos centros urbanos vão absorver a maior parte do crescimento que está por vir.1

Tal transformação em larga escala vai afetar, sobretudo, as regiões pobres e emergentes mais populosas. Já fortemente urbanizados, os países mais desenvolvidos devem experimentar um aumento relativamente pequeno do índice de população urbana: dos 74% atuais para cerca de 85% em meados deste século, impelindo as possibilidades de expansão ao limite. O mesmo vale para a América Latina, em razão de sua urbanização precoce, ocorrida desde o início do século XX, e diferente daquela dos países ricos.

Por seu lado, a África e a Ásia vão experimentar – aliás, já experimentam – uma ruptura de equilíbrio. A população urbana africana, que foi multiplicada por mais de dez entre 1950 e hoje (de 33 milhões para 373 milhões), chegará a 1,2 bilhão em 2050. Na Ásia, onde ela atingia 237 milhões em meados do século passado , hoje chega a 1,6 bilhão e deverá mais que dobrar. Dessa forma, mais da metade dos indianos vão morar em cidades, assim como quase três quartos dos chineses e quatro quintos dos indonésios.

Novas estratificações

Em suma, pensando a partir da fórmula premonitória do historiador Lewis Mumford2, o mundo inteiro “torna-se uma cidade”, ou melhor, uma constelação de polos urbanos, muitas vezes desproporcionais, formando nódulos do espaço econômico globalizado. A urbanização extensiva de regiões pobres e emergentes revolucionou os modos de ser e agir de grande parte da humanidade, e vai continuar a fazê-lo cada vez mais rapidamente. Ao mesmo tempo origem e consequência das migrações que intensifica, ela cria novas estratificações sociais e acentua o movimento de transformação do ecossistema global pelo ser humano.

Para compreender o verdadeiro significado do fenômeno, é preciso situá-lo numa perspectiva histórica. A urbanização extensiva é inseparável do surgimento do Antropoceno – termo pelo qual alguns chamam a era geofísica mais recente, que teria sido inaugurada à época da revolução industrial. Esta última, devido ao uso intensivo dos recursos de energia fóssil que exige, altera significativamente o habitat.

Antes dessa ruptura, a vida econômica e social foi, durante milênios, dominada pelo ritmo lento da economia convencional, com os vilarejos e primeiras cidades mantendo uma “relação simbiótica com o ambiente natural3”. A sociedade tinha certamente um impacto na natureza local, mas este não era poderoso o suficiente para desafiar o equilíbrio do ecossistema. Da revolução agrícola do Neolítico, que abriu caminho para a sedentarização e as concentrações populacionais, até o século XIX, a proporção da população urbana mundial permaneceu limitada. De acordo com estimativas do historiador Paul Bairoch, que reviu para cima as avaliações anteriores, ela oscilava entre 9% e 14%, conforme a região e a época.4

É certo que se formaram grandes aglomerações durante esse longo período pré-industrial como Babilônia, Roma, Constantinopla, Bagdá, Xian, Pequim, Hangzhou, Nanquim, e assim por diante. Algumas dessas cidades foram o coração de impérios e abrigavam dezenas ou mesmo centenas de milhares de pessoas. Por volta de 1300 d.C., Pequim tinha entre 500 mil e 600 mil habitantes.5 Já a Europa conheceu o que Bairoch chama de “empurrão urbano” na Idade Média, com a formação de uma rede de cidades mercantis e cidades-Estado com mais de 20 mil habitantes. Mas isso não alterou fundamentalmente o equilíbrio entre a cidade e o campo, nem revolucionou as relações sociais.

Em 1780, havia no mundo menos de uma centena de cidades com mais de 100 mil habitantes. Não se pode, portanto, falar de dominação urbana, nem na Europa nem em qualquer outro lugar. Em toda parte a reprodução social pré-capitalista apoiava-se na agricultura, uma base rural que proporcionava o quadro geral de atividades da sociedade.

Transformações violentas

É a partir da Revolução Industrial que se afirma uma “nova relação simbiótica entre urbanização e industrialização6”. Ao exigir a concentração do trabalho e do capital, esta impulsiona uma reestruturação da divisão do trabalho e uma urbanização sem precedentes. De pouco menos de 20% em 1750, número já alto para a época, a população urbana do Reino Unido passa, em um século e meio, para 80%. Em média, a quantidade de pessoas nas regiões recém-industrializadas (exceto o Japão) é multiplicada por dez entre 1800 e 1914, atingindo 212 milhões; esse crescimento, três vezes superior ao da população, corresponde a um índice médio de urbanização que aumentou de 10% para 35% em 1914. Com a indústria absorvendo então quase metade do emprego urbano, esse desenvolvimento baseava-se em uma ampliação constante da produtividade agrícola. Não se deve diminuir a violência dessa transformação: prova disso são as condições de vida experimentadas pela classe trabalhadora infantil e adulta. Contudo, esse movimento fazia parte de uma lenta evolução no sentido de um aumento geral nos padrões de vida que o século XX testemunhou.

A experiência urbana nas regiões colonizadas do mundo foi diferente. Em conjunto com a expansão territorial do Ocidente, a Revolução Industrial instituiu uma nova divisão internacional do trabalho, na qual o comércio de longa distância desempenhou papel cada vez mais importante. Descrevendo essa primeira globalização, Karl Marx afirmou, em 1848: “[As antigas indústrias] são suplantadas por novas indústrias [que empregam] matérias-primas vindas de regiões muito distantes, e cujos produtos são consumidos não apenas na própria localidade, mas em todas as partes do globo. No lugar das antigas necessidades, atendidas pelos produtos nacionais, surgem novas necessidades que exigem para sua satisfação os produtos dos mais distantes confins e climas. Em vez do antigo isolamento das províncias e das nações que bastavam a si mesmas, desenvolvem-se as relações universais, numa interdependência universal das nações7”.

Ora, essa interdependência assimétrica, estruturada em torno de relações desiguais “centro-periferia”, reconfigura a economia e os espaços das regiões colonizadas ou dependentes. Sua integração forçada no mercado global desarticula os tradicionais laços entre a cidade e o campo, e prejudica as redes econômicas internas. Privilegia a produção de commodities para exportação (algodão, açúcar, ópio, grãos, metais etc.). As restrições impostas pelos pactos coloniais mercantis provocam a diminuição, mais ou menos acentuada, conforme as regiões, das atividades proto-industriais na China e na Índia, por exemplo, sendo que esta última era o maior produtor de têxteis do mundo antes de 1750.

Assim, a nova estrutura do comércio internacional levou também a uma inflação demográfica das cidades costeiras, transformadas em entrepostos de produtos primários destinados ao mercado mundial. A “descontinentalização” econômica da África subsaariana em benefício dessas áreas litorâneas, o crescimento da população de Bombaim, Calcutá e Madras e a decadência das cidades do interior da Índia em meados do século XIX são prova disso, assim como a reconfiguração de pontos do norte da África sob colonização francesa.

A rápida urbanização dessas áreas globais no século XX, especialmente durante a acelerada fase iniciada em 1950, tem, em geral, ocorrido sem nenhum tipo de desenvolvimento real, com exceção dos grandes complexos urbanos dos novos países do leste da Ásia (Seul, Taipei, Cingapura, Hong Kong e, hoje em dia, Xangai e Pequim). Em outros lugares, a urbanização desordenada dos Estados outrora colonizados resulta de desequilíbrios econômicos e sociais internos, muitas vezes herdados das estruturas do período de domínio estrangeiro e exacerbados pelas forças do mercado global.

O deslocamento desmedido de pessoas das zonas rurais para os centros urbanos, impulsionado pela pobreza em que viviam, resultou na formação de grandes aglomerados urbanos, em especial na África subsaariana, na América Latina e no sul da Ásia. Com um crescimento populacional e espacial constante, essas áreas experimentam o desemprego em massa e assustadores problemas ambientais (vide Lagos, Dacar, Cidade do México, Caracas, Calcutá, Dacca, Jacarta, Manila...). Nesses espaços urbanos coexistem bolsões de grande riqueza e uma imensa pobreza que produz um “planeta-favela” em escala mundial8”.

De fato, como mostrou o sociólogo Manuel Castells, os principais centros urbanos dos países ricos também são cidades “duplas”, que incorporam o “Sul” ao “Norte”: altamente segmentadas em termos sociais, elas concentram grande quantidade de trabalhadores braçais e de pessoas socialmente excluídas – muitas vezes vindos de países que outrora foram colônias.9 Claro, essa desigualdade social das cidades ditas globais que concentram a riqueza, cultura, conhecimento e know-how (Nova York, Los Angeles, Londres, Tóquio etc.) não pode ser comparada com a das zonas urbanas “globalizadas” no “Terceiro Mundo”.

Fenômeno irreversível

A urbanização reúne e expressa as tensões e contradições da industrialização e da globalização. Algo que Henri Lefebvre já havia percebido quando escreveu: “Sentido e finalidade da industrialização, a sociedade urbana se forma ao buscar a si mesma10”. Fenômeno irreversível, a urbanização desafia nossa capacidade de produzir bens públicos, sobretudo educação, cultura, saúde e um ambiente saudável para o conjunto das populações, pré-requisito para o desenvolvimento sustentável que garanta o bem-estar coletivo e, portanto, a expansão das liberdades individuais.

A criação dos grandes centros nos países industrializados no século XIX e início do século XX gerou inúmeras reflexões. Para resolver o problema social representado pelas favelas da época vitoriana, urbanistas reformistas propuseram uma descentralização por meio da construção de novas constelações menores e mais “habitáveis”, e que tornariam mais fácil a gestão das massas – as autoridades nacionais e regionais da China e da Índia, atualmente seguem nessa direção, diga-se de passagem. Mais tarde, Lewis Mumford, entre outros, elaborou um descongestionamento urbano por meio de um sistema de planejamento regional e sub-regional baseado no uso dos recursos locais e nas cadeias de abastecimento de curto prazo, cujo objetivo era conseguir um equilíbrio ecológico (o que agora é chamado de “desenvolvimento sustentável” urbano). Tais esforços intelectuais foram infrutíferos.

Nas décadas de 1970 e 1980, floresceu a ideia de um desenvolvimento urbano “comunitário”, ou seja, a apropriação pelos cidadãos dos seus espaços de vida (“community design”).11 Hoje, a questão da apropriação cidadã e das condições de produção dos espaços urbanos permanece intacta e representa um grande desafio do século.

Philip S. Golub é professor associado do Instituto de Estudos Europeus da Universidade Paris 8.

1 “World Urbanisation Prospects, the 2007 Revision Population Database”, United Nations Population Division (UNPD), Department of Economic and Social Affairs; http://esa.un.or/unup
2 Lewis Mumford, The city in history: its origins, its transformations, and its prospects, Harcourt Brace International, New York, [1961] 1986.
3 Mumford, op. cit.
4 Paul Bairoch, De Jéricho à Mexico: villes et économie dans l’histoire, Gallimard, Paris, 1985.
5 Tertius Chandler, Four thousand years of urban growth, Edwin Mellen, Lewiston, 1987.
6 Edward W. Soja, Postmetropoli: critical studies of cities and regions, Blackwell, Oxford, 2000.
7 Karl Marx & Friedrich Engels, Manifeste du Parti Communiste, Flammarion, Paris, 1999.
8 Mike Davis, Planète bidonville, Ab Irato, Paris, 2005.
9 Manuel Castells, The informational city: information, technology, economic restructuring and the urban-regional process, Blackwell, Cambridge, 1989, e Dual city: restructuring New York, Russell Sage Foundation, New York, 1991.
10 Citado por Rémi Hess, Henri Lefebvre et l’aventure du siècle, Métailié, Paris, 1988, p. 276.
11 Peter Hall, Cities of tomorrow, Blackwell, Oxford, 1996.

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O futuro das cidades - Para unir o urbano dividido

O futuro das cidades

Para unir o urbano dividido

Cerca de um bilhão de pessoas vivem hoje em situação de extrema pobreza nas cidades. Para incluí-las, é preciso mais do que ampliar as suas capacidades de consumo. É necessário promover uma reconfiguração estrutural dos seus territórios, integrando as esferas políticas, econômicas, culturais e materiais da vida urbana

por Kazuo Nakano

Violações do direito à cidade
Direito à Cidade – Unindo o Urbano Dividido” será o tema central da quinta sessão do Fórum Urbano Mundial, que ocorre dias 26 e 27 de março, no Rio de Janeiro. Mais uma vez, autoridades governamentais, lideranças comunitárias, pesquisadores e diversos tipos de organizações sociais se reúnem para discutir as várias faces das desigualdades sociais que dividem, muitas vezes de modo violento, os territórios das cidades.

Esses temas são velhos conhecidos para aqueles que estão atentos às realidades urbanas no mundo. E não há nenhuma dúvida em relação à importância técnica e política das discussões sobre eles. Entretanto, é importante que essas discussões saiam dos enunciados e se concretizem, produzindo espaços urbanos com maior equidade, justiça social, fortalecimento democrático e sustentabilidade. Será que isso é possível? A resposta é positiva, desde que os discursos críticos busquem incansavelmente realizar ações transformadoras nessas realidades urbanas criticadas.

Não basta interpretar a realidade das cidades, há que se experimentar mudá-las nos marcos de um amplo projeto social e político, pois cerca de um terço dos moradores das áreas urbanas mundiais, cerca de um bilhão de pessoas, se encontram em situações de extrema pobreza e morando em assentamentos precários, expostos à fome e a vários tipos de riscos e ameaças. Para incluir essas pessoas nas cidades, gerando condições de cidadania, é preciso mais do que ampliar as suas capacidades de consumo. É preciso promover uma reconfiguração estrutural dos seus territórios integrando-os a todas as esferas políticas, econômicas, culturais e materiais da vida urbana.

É significativo observar que a luta pelo direito à cidade, originária da sociedade, está adentrando as esferas institucionais, inclusive dos organismos internacionais. Vê-se que essa luta é atualíssima, pois os padrões desiguais, precários e predatórios de urbanização estão se disseminando, de modo destrutivo, em várias partes do planeta. Tais padrões são produzidos pelas forças desregradas e desagregadoras dos mercados formais e informais que promovem formas excludentes de uso e ocupação do solo urbano, que segregam os locais de moradias dos grupos de alta, média e baixa renda.

No Brasil, estamos inteiramente familiarizados com os temas abordados no FUM 2010. Temos lutas históricas pelo direito à cidade e conhecemos as graves consequências do “urbano dividido”. Quando vemos as favelas e os bairros gigantes das periferias metropolitanas, notamos as precariedades urbanísticas e vulnerabilidades socioambientais que prejudicam as condições de vida dos seus moradores. Nesse momento sabemos que milhões de homens e mulheres, em fases distintas da existência, sofrem violações diárias do direito à cidade.

As segregações socioespaciais entre assentamentos urbanos formais e informais, entre espaços bem qualificados e precários do ponto de vista urbanístico, não devem ser vistas como fenômenos naturais e inevitáveis. Isso se deve, principalmente, às práticas de planejamento e regulação urbana que subordinam o interesse público às regras que facilitam a atuação dos agentes dos mercados imobiliários, que buscam, cada vez mais, lucrar de modo predatório com os processos de produção e transformação dos espaços urbanos.

É preciso regular as forças do mercado para evitar ataques especulativos e ampliar ao máximo o acesso ao solo adequado das cidades, em especial aqueles localizados nas partes centrais e intermediárias, para a implantação e permanência das moradias dos mais pobres que não conseguem acessar o mercado imobiliário formal.

A crise econômica iniciada em 2008 e ainda em pleno curso no mundo mostrou, claramente, que as forças do mercado que atuam livre de regulações públicas são altamente prejudiciais para a sociedade como um todo. Essa crise global, considerada a maior desde a Grande Depressão da década de 1930, coloca em pauta a discussão sobre o papel do Estado na prevenção das vulnerabilidades sistêmicas que afetam vários campos da vida social. Essa discussão cabe também em tudo que diz respeito às cidades, em especial às metrópoles, onde há grande concentração populacional e acúmulos gigantescos de déficits históricos na oferta de serviços, equipamentos e infraestruturas urbanas básicas.

Junto com as cidades mé adias, as metrópoles são pujantes máquinas econômicas de produção e consumo de riquezas e, ao mesmo tempo, poderosas máquinas de exclusão socioterritorial dos mais pobres. Essas enormes máquinas socioterritoriais operam devastando recursos naturais, devorando fontes de energias e gerando toneladas de resíduos e efluentes que contaminam os solos, os ares e as águas. Para que essas potentes máquinas operem num rumo com mais inclusão social, democracia e sustentabilidade, nós precisamos de mais políticas públicas, processos de planejamento e gestão territorial conduzidos por Estados que não estejam capturados pela lógica patrimonialista e clientelista que favorece interesses privados minoritários.

O Estado é fundamental para acabar com as violações do direito à cidade, como a insuficiência e baixa qualidade na oferta dos serviços públicos de saneamento básico, transporte coletivo, educação, saúde, cultura e assistência social, entre outros. Quando testemunhamos os despejos forçados, o aumento da criminalidade, os conflitos fundiários e as mortes provocadas por deslizamentos de morros e pelas inundações, nós percebemos que essas violações são, às vezes, fatais e extremamente violentas. Nesses casos, as violências das cidades se somam às violências nas cidades.

Para alterar esse quadro necessitamos aceitar as cidades, criticamente, como fenômenos positivos e não somente como lugares destrutivos e infernais. Precisamos ativar suas maiores potencialidades, as inteligências coletivas capazes de buscar soluções conjuntas para problemas comuns. As cidades são os locais mais propícios para a realização de amplos debates públicos, inclusive com a utilização das modernas tecnologias de comunicação, na busca por agendas políticas compartilhadas e articuladas.

As crescentes interconexões inter-urbanas estão fazendo das redes de cidades lugares férteis para a consolidação de pactos em torno de projetos e objetivos futuros de longo prazo. Para enfrentarmos os desafios que se levantam nos horizontes do século XXI, o que temos de mais potente é, apesar de tudo, as possibilidades de mudanças a partir das cidades.

Produção e inclusão

A efetivação do direito à cidade precisa de um Estado forte, com estrutura institucional e capacidade técnica para a formulação e implementação de políticas públicas verdadeiramente democráticas e com estreita integração intersetorial. Políticas públicas inseridas em estruturas de governanças territoriais e econômicas que operem articulações entre as escalas locais, regionais e nacionais e estejam organizadas nas esferas municipais, estaduais e federal. Estruturas que precisam ser criadas com investimentos maciços na formação continuada de gestores públicos e em arranjos organizacionais que superem o baixo grau de desenvolvimento institucional existentes nos entes da federação.

É preciso também um Estado no qual os diferentes níveis de governo tenham capacidades de realizar investimentos públicos com responsabilidade e transparência. Investimentos que, de fato, atenda às principais demandas sociais locais e regionais. Precisamos superar a atual lógica do balcão que prevalece na obtenção de recursos para financiar ações e intervenções nos espaços urbanos. É necessário eliminar as condições de penúria e dependência financeira em que se encontra a maioria das prefeituras municipais e alguns governos estaduais do país.

Afora as necessidades de investimentos para atender às demandas organizacionais da gestão pública, as agendas de financiamento do desenvolvimento urbano nas cidades e regiões do Brasil apresentam duas vertentes que precisam se acomodar de modo justo e equilibrado:

• a satisfação das necessidades sociais básicas de todos os habitantes das cidades, concretizando um padrão de urbanidade e de inclusão socioterritorial que universalize a cobertura e garanta a qualidade de serviços, equipamentos e infraestruturas urbanas básicas; e que democratize as decisões para que as pessoas tenham possibilidades de escolha em relação ao seu desenvolvimento e realização das suas capacidades humanas. Apesar de incipientes, tais padrões estão sendo definidos com clareza crescente nos sistemas federativos das políticas de saúde e assistência social;

• o bom funcionamento dos territórios econômicos das cidades na produção e distribuição de riquezas. Trata-se de configurar esses territórios para que novos processos produtivos venham a reduzir o uso de fontes de energia e recursos não renováveis, reduzir a geração de poluentes e melhorar a distribuição dos produtos com redução, reuso e reciclagem de resíduos.

É nas perspectivas apontadas por essas vertentes que precisamos avaliar o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), tanto em relação aos investimentos públicos em urbanização de favelas e implantação de serviços e infraestruturas de saneamento básico, quanto na execução de grandes obras de infraestruturas que exercem impactos sociais, econômicos e ambientais nos espaços urbanos locais e regionais. Essa atenção especial deve ser dada também às realizações do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), que se propôs a produzir um milhão de moradias urbanas para as famílias com renda até 10 salários mínimos.

Esses critérios valem também para avaliarmos as ações de regularização fundiária realizadas por diferentes órgãos do governo federal como, por exemplo, a Secretaria Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades, a Secretaria do Patrimônio da União do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, entre outros. Até que ponto todos aqueles investimentos públicos, somados a essas ações de regularização fundiária, estão contribuindo para a superação do nosso “urbano dividido” manifesto nas grandes, médias e pequenas cidades? Até que ponto eles superam as profundas discrepâncias sociais e econômicas entre os lugares de moradia dos grupos ricos e pobres? Quais são os seus efeitos na base econômica local e regional?

Na avaliação dos vários componentes do PAC, do PMCMV e das ações de regularização fundiária de assentamentos urbanos, precários e informais, vale indagar se eles contribuem para os esforços de estruturação de políticas urbanas e habitacionais mais perenes. Em que medida eles contribuem para a consolidação de políticas públicas de Estado que extrapolem as limitações de um ou dois mandatos governamentais?

Como é que esses investimentos e ações fortalecem processos permanentes de planejamento e regulação urbana que assegurem o cumprimento das funções sociais das cidades e das propriedades urbanas, conforme determinações do Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/2001)? Esses investimentos e ações impulsionam a construção do importante Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, instituído pela Lei Federal 11.124/2005? Promovem o desenvolvimento institucional e práticas democráticas nos diferentes níveis da federação?

Essas avaliações são fundamentais para que a sociedade possa compreender que tipos de resultados estão sendo alcançados por essas ações estatais realizadas nos espaços urbanos do país. A partir dessa compreensão, é possível ver quais os ajustes e aperfeiçoamentos podem ser feitos para se conseguir avanços na efetivação do direito à cidade no Brasil.

Os caminhos para o desenvolvimento econômico socialmente equitativo e ambientalmente sustentável passam, necessariamente, por mudanças profundas nas condições de vida e de produção econômica existentes nas cidades. Tais mudanças demandam, por exemplo:

• o planejamento de ações e investimentos que atendam a todas as necessidades habitacionais existentes nas cidades brasileiras a fim de eliminar os déficits de novas moradias e das condições inadequadas de habitação. Atendam ainda a todas às demandas por serviços e infraestruturas de saneamento ambiental que integrem abastecimento de água, coleta e tratamento de esgotos, drenagem urbana e controle de vetores de transmissão de doenças;

• a superação definitiva do predomínio do automóvel individual na matriz dos transportes de massa para modalidades integradas e sustentáveis, baseadas em veículos de uso coletivo movidos a fontes de energia limpas e renováveis, como a dos biocombustíveis e elétrica. Trata-se da utilização articulada de transportes coletivos como trens, metrô, trólebus, veículos leve sobre trilhos, bicicletas, entre outros;

• a eliminação das situações de vulnerabilidade a riscos de todos os tipos, em especial aqueles gerados pelos efeitos das mudanças climáticas e de aquecimentos globais nos espaços urbanos. Tal medida demanda várias ações de adaptação que envolvem, por exemplo, a renaturalização de trechos de várzeas fluviais inundáveis e a realocação, pactuada, de moradores de áreas vulneráveis para locais mais seguros e adequados do ponto de vista urbanístico. É urgente um trabalho sistemático de análise e definição das ações necessárias para a adaptação dos espaços das cidades àqueles efeitos das mudanças climáticas e do aquecimento global.

Ganha cada vez mais força a ideia de que será por meio das cidades que vamos realizar novos modelos de desenvolvimento econômico, humano e territorial que promovam a equidade na distribuição das riquezas sociais, a democratização nas relações sociais e a sustentabilidade no uso e proteção dos recursos naturais.

O planejamento e a gestão pública são fundamentais para a efetivação desses novos modelos. Precisam estar à altura dos desafios e das potencialidades das cidades do século XXI. O tempo urge e não podemos mais protelar as decisões necessárias. O futuro será fruto dessas decisões.


Kazuo Nakano é arquiteto urbanista, técnico do Instituto Pólis, doutorando do Núcleo de Pesquisas Populacionais (NEPO) da Universidade de Campinas (Unicamp).

Le Monde Diplomatique Brasil

Redefinição da centralidade urbana em cidades médias


Redefinição da centralidade urbana em cidades médias

Gilberto Alves de Oliveira Júnior 

Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Geografia Universidade de Brasília – UnB

INTRODUÇÃO

O presente artigo é resultado de um esforço reflexivo acerca das novas formas contemporâneas de reprodução do capital e suas implicações quanto à redefinição dos papéis das cidades médias. Com tal intento, o debate encontra-se centrado essencialmente nas modificações decorrentes da dinâmica econômica, haja vista que no momento atual estas cidades assumem novas funções articuladas ao suprimento das presentes necessidades de reprodução e acumulação do capital e à ampliação do mundo da mercadoria.

Nessa direção, e com o intuito de estabelecer um diálogo com a teoria espacial, objetiva-se construir um breve debate a partir da emergência de novas centralidades em cidades médias que realize uma leitura dos processos e fenômenos que permeiam a criação e consolidação dessas centralidades com a articulação de ordens e racionalidades globais e locais que cada vez mais apresentam-se visceralmente imbricados, revelando a imposição de técnicas e racionalidades hegemônicas em escala mundial.

Isso implica em considerar as (novas) formas contemporâneas com que as atividades econômicas dos diversos ramos comerciais e de serviços vêm se organizando espacialmente como parte de um processo de concentração econômica nas metrópoles que se acompanha de desconcentração espacial, bem como as formas de competitividade que se desenvolvem entre as cidades de porte médio para se apresentarem mais rentáveis e propícias para receberem os investimentos que se desconcentram espacialmente.

Desta forma, apresenta-se como de fundamental importância o estudo dessas transformações — que impelem uma nova orientação tanto para o crescimento urbano quanto para a formulação e aplicação de políticas espaciais urbanas — para a compreensão dos novos processos geradores de fluxos de capital, mercadorias, pessoas, dentre outros, que estão assentados em novas formas de comércio e dos serviços urbanos modernos, ou em outras palavras, em novas formas de reprodução e acumulação do capital.

O artigo encontra-se dividido em três partes, além da introdução. No primeiro momento, realiza-se um debate acerca da conceituação de cidades médias; posteriormente, a partir do conceito de estruturação urbana apresenta-se uma discussão teórica acerca das implicações da redefinição da centralidade na dinâmica intra-urbana; por fim, os dois primeiros debates se conjugam na última parte, na qual se desenvolvem algumas idéias sobre a redefinição da centralidade em cidades médias.

Notas acerca do debate sobre cidades médias

O processo de urbanização que se acentuou consideravelmente no decorrer do século XX trouxe consigo rupturas e permanências que incidem nos processos de produção e estruturação do espaço urbano. Essas são notáveis quando se considera tanto a escala intraurbana quanto a escala interurbana, em âmbito regional, nacional ou mundial.

Essa urbanização acentuada possui como uma das suas características mais expressivas uma elevada concentração de população em poucas cidades em diferentes países do mundo. A concentração de população está aliada também a uma concentração econômica, cultural, de infra-estrutura, informação, poder de articulação, assim como dos problemas e conflitos gerados pelo capital. Tais problemas e conflitos são constituídos e se expressam em diferentes ordens complexamente inter-relacionadas entre si: econômica, social, política, ambiental, dentre outras, que se traduzem em questões relevantes como habitação, saneamento, segurança, acessibilidade, lazer, segregação.

Nesse sentido, é notório que um número considerável destas análises se concentra na metropolização devido à própria escala privilegiada de análise dos processos de reprodução e urbanização da sociedade e acumulação do capital. Estudos recentes têm observado a relevância da concentração de população em grandes áreas urbanas que, dentre outros problemas sociais, espaciais e ambientais, tece uma rede urbana desequilibrada.

Um dos enfoques recentes acerca das cidades médias se concentra exatamente na gestão e planejamento territorial a partir de redes urbanas mais equilibradas. Essa perspectiva coloca as cidades médias, e seu papel de intermediação, em evidência nos mais diversos países do mundo, mas especialmente nos países considerados subdesenvolvidos ou em desenvolvimento.

Isso porque, nos países subdesenvolvidos encontram-se atualmente 15 das 20 cidades com população superior a 10 milhões de habitantes no mundo residindo em áreas consideradas urbanas (UNITED NATIONS, 2006), fato que expressa a macrocefalia e o desequilíbrio da rede urbana nesses países.

O crescente número de estudos sobre cidades médias nas últimas décadas, que denotam uma específica preocupação com a sua (in)definição, aponta para a fragilidade teórica que historicamente embeveceu a construção do seu conceito, ainda impreciso, como também para uma mudança de papéis e portanto da própria relevância das cidades médias na rede urbana e para a incidência, nesses espaços, de fenômenos sócioespaciais que antes estavam restritos às metrópoles.

Alguns estudos recentes vêm demonstrando que estes fenômenos têm servido para modificar, inclusive, a dinâmica do processo de estruturação destas cidades. Entretanto, estes fenômenos não podem ser considerados — por uma simplória analogia desmedida — idênticos aos das grandes cidades, o que pressupõe a necessidade de um instrumental analítico-conceitual específico para as cidades médias. Neste sentido, este instrumental deve estar comprometido em procurar compreender esta categoria de cidades na totalidade do movimento contemporâneo de urbanização da sociedade e acumulação do capital.

Nessa direção, nota-se que os estudos sobre cidades médias devem não apenas constar de elementos estritamente empíricos devido essencialmente à sua indefinição conceitual, o que termina por implicar que uma das relevâncias destes estudos, no plano acadêmico, seja a de contribuir para o desenvolvimento da sua definição, ou de não se furtar em discutir seu conceito, que se encontra hoje sob expressivo e candente debate.

Tradicionalmente as cidades médias têm sido essencialmente definidas de acordo com o seu porte demográfico, sendo que estes números inevitavelmente sofrem modificações ao longo do tempo. Evidentemente que de acordo com uma determinada quantidade de habitantes se torna mais provável que as cidades venham a desempenhar determinadas funções características de cidades médias, e assim exerçam uma polarização sobre a sua hinterlândia. De qualquer forma, é inegável que a prescrição e anuência de um aporte estritamente quantitativo, quanto a demografia para definilas, é insatisfatório, sem consistência, bem como também não é determinante, embora possua sua relevância, devendo a demografia ser congregada a outras variáveis e fatores, tanto quantitativos quanto qualitativos.

Essa "tradição" quantitativa coloca em evidência que é extensa a diversidade entre as cidades médias, e essa diversidade se apresenta como característica fundamental dessa categoria de cidades. Isso termina por conduzir à constatação da utilização de critérios diferentes para a sua definição, que tendem a variar de acordo com as escolhas de cada pesquisador quanto ao que este considera ou estabelece como relevante ou irrelevante na construção da sua definição, ou simplesmente em determinada classificação ou levantamento de cidades médias para fins diversos.

Decerto, a escolha dessas variáveis leva sobre si um peso político, ideológico, dentre outros, e nesta direção iluminam o processo de urbanização e a realidade concreta das cidades médias diferencialmente, velando ou desvelando problemas e conflitos, supervalorizando ou desprezando soluções e estratégias.

Dessa forma, as diferentes variáveis que embasam as definições de cidades médias e eclodem em perspectivas divergentes, em certo sentido, expressam uma consistente dificuldade de congregar e sintetizar a evidente amplitude da heterogeneidade que compreende a realidade das cidades médias. A tal fato se agrega que as cidades médias se incorporam de mais complexidade de síntese conceitual quanto menor a escala de análise, nas quais evidencia-se ainda mais as disparidades existentes entre as cidades consideradas médias. Em outras palavras, nota-se que é crescente a dificuldade na definição de cidades médias quando parte-se de um nível de escala local ou microrregional para a mundial, passando por todas as escalas que se possam considerar entre essas duas extremidades.

As nuances e imbricações espaço-temporais (de)compostas e recompostas pela desigualdade e diferenciações inerentes no/do processo de (re)produção social do espaço condicionam, assim como também (re)arranjam os papéis e a relevância das cidades médias na rede urbana em diferentes escalas, nas quais se articulam e se interpenetram questões políticas, econômicas, culturais, dentre outras.

Embora considerando-se que as diferentes temporalidades se conjugam no mesmo tempo presente, no mesmo espaço, essas se articulam desigualmente, resultando em espaços diferenciados e fragmentados, implícitos ao movimento de reprodução social. Esse movimento congrega conteúdos novos em embate com velhos, modificando e sendo modificados pelo perpétuo rearranjo (econômico-social) no/do espaço, o que significa que variáveis estatísticas rígidas encontram cidades médias diversas numa escala temporal, quando comparadas as décadas de 1950, 1970 e a atual, por exemplo. Disso se depreende que uma das contextualizações para a definição de cidades médias é a temporal.

Estudos recentes, como os de Bellet Sanfelíu e Llop Torné (2004a) e Castello Branco (2006), dentre outros, apontam para outros aspectos qualitativos e quantitativos que subsidiam com maior propriedade uma definição e classificação ou tipologia de cidades médias.

Há ainda o embate entre a utilização do termo ou adjetivo de cidade média ou cidade intermédia. Segundo Bellet Sanfelíu e Llop Torné (2004a) o uso do adjetivo intermédia começou a ser efetivado com considerável aceitação no meio acadêmico no decorrer da década de 1980. Os autores consideram que esse adjetivo dilata o significado da denominação que ele substitui, na medida em que cidade média tem relação direta com critérios quantitativos excessivamente rígidos e estáticos, que serviram, e ainda servem, para tornar oculta a função principal desempenhada por esse tipo de cidades: a da intermediação entre os espaços locais e os espaços regionais, nacionais e, em alguns casos, inclusive globais.

Outra questão relevante na definição de cidades médias/intermédias é que por se encontrarem entre dois extremos (pequenos núcleos urbanos e grandes aglomerações urbanas) são definidas como uma espécie de "conceituação negativa": cidades médias/intermédias são aquelas que nem são grandes nem são pequenas, o que mais uma vez traz ao centro do debate o problema quantitativo, que, como dito, tem sua relevância, embora deva ser contextualizado. Uma cidade de 200.000 habitantes, a título de exemplo, está contextualizada diferencialmente na realidade brasileira, estadunidense, portuguesa, francesa, chinesa etc. Até mesmo na realidade brasileira, decerto que uma classificação que apresente um nível profundo de rigidez é com certeza problemática pelo vasto contraste existente entre as regiões do país.

Assim, ao defender a denominação de cidade intermédia, Bellet Sanfelíu e Llop Torné (2004a) expressam a opinião de que o adjetivo "intermédia" introduz três novas dimensões que anteriormente encontravam-se "veladas" pelo adjetivo "média": (1) acrescenta a idéia de que a importância da cidade não depende tanto do seu tamanho demográfico como do modo como se articula com o restante dos elementos do sistema; (2) realça e introduz aspectos mais dinâmicos e estratégicos da cidade na rede urbana; (3) supõe a substituição do sentido estático e hierarquizado por uma nova idéia mais aberta, dinâmica e interativa (apud DEMMATEIS, 1991).

Isso significa que essa divisão que se propõe ao debate entre a utilização do termo cidade média ou cidade intermédia não é apenas pautado num ponto de vista meramente semântico, mas sim compreende a existência de duas vertentes com determinadas distinções no que tange ao processo científico de permear o fenômeno de modo a apreender sua essência e revelar seu papel no processo de urbanização contemporâneo. No contexto desses debates, incontestavelmente, a construção conceitual de cidades médias/intermédias adquire novos contornos e horizontes.

Para Bellet Santelíu e Llop Torné (2004a), as cidades intermédias se convertem em centro de serviços e equipamentos (mais ou menos básicos) de que se servem tanto os habitantes do mesmo núcleo urbano como aqueles que residem em sua área de influência, sendo centros de serviços que interagem com amplas áreas territoriais, sendo estas mais ou menos imediatas. Para isso, desenvolvem funções de distribuição e intermediação, sendo dotadas de uma série de infra-estruturas coletivas, com destaque para a comunicação e o transporte.

A este conjunto de cidades também é associada uma melhor qualidade de vida, que, entretanto, se traduz muitas vezes numa forma de marketing e promoção urbana e de determinados setores da economia, além de pessoal quando diretamente associada aos gestores e administradores públicos. Expressa-se, ainda, na valorização de publicações de rankings de qualidade de vida das cidades, premiações pela qualidade dos serviços coletivos, dentre outros.

Castello Branco (2006), ao realizar uma análise das cidades médias no Brasil, aponta para o crescimento da importância que estas cidades vêm adquirindo nas últimas décadas no país, fato que se expressa tanto no crescimento do número de cidades médias quanto no incremento populacional expresso nestas cidades.

Com objetivo de contribuir com a definição de cidades médias, Castello Branco (2006) conclui que embora o tamanho demográfico deva ser considerado no processo de investigação, deve-se ressaltar que tanto a localização destas cidades quanto o sistema de transportes em que está inserida tem enorme peso no tamanho da população. Ressalta ainda a importância do tamanho econômico e do grau de urbanização, além da qualidade de vida urbana, mas atribui como essência das cidades médias a centralidade.

A autora reforça que, neste sentido, é preciso considerar que a não inclusão das cidades que se encontram inseridas em regiões metropolitanas ou polarizadas por capitais de estados ou províncias na classificação de cidades médias se deve ao fato de que estas cidades certamente não possuiriam as condições necessárias para polarizar sua hinterlândia e exercer as funções de centralidade e intermediação com outras escalas, tomadas como ponto de partida para a definição de cidades médias.

De acordo com as análises de Sposito (2006), depreende-se que a centralidade compreende um princípio de proximidade que resulta na estruturação das cidades médias como área ou região. Embora, no momento atual, a proximidade, que condiciona a estruturação da cidade em área ou região — e expressam a centralidade da cidade — , não possa ser o único ou principal aspecto da definição desta categoria de cidades, que se encontram atualmente inseridas nas possibilidades oriundas da conectividade. Isso implica na inserção das cidades médias em redes de articulações de diferentes escalas espaciais que não necessariamente necessitem de continuidades territoriais, o que significa que paralelamente ao seu papel regional, as cidades médias exercem novos papéis. Desta forma, cumpre compreender como e porque no momento atual os papéis das cidades médias se modificam e se redefinem.

Assim, a partir do final da década de 1970, com a crise de acumulação do capital implicando num processo de reestruturação produtiva, as cidades médias revestem-se de novos atributos que cada vez mais se apresentam como não mensuráveis sob os critérios quantitativos rígidos que historicamente consubstanciam a definição desta categoria de cidades.

E, neste sentido, as redefinições atuais dos papéis das cidades médias se embebem de ordens e racionalidades globais e locais que se entrecruzam e se interpenetram visceralmente. Esse movimento atribui então novos papéis aos territórios não-metropolitanos frente ao processo de mundialização do capital, dentre os quais se destacam as cidades médias por apresentarem os requisitos necessários às novas necessidades de alocação do capital.

Nests direção, e em função desses novos momentos e processos inseridos na dinâmica da produção social do espaço, se criam novas centralidades na escala intra-urbana. Essas expressam muitas vezes a saturação dos centros tradicionais para as necessidades impelidas pelas novas formas contemporâneas de reprodução e acumulação do capital, além da imposição de (novos) tempos hegemônicos.

Além disso, as novas centralidades expressam também o intuito de fragmentar a cidade em lugares cada vez mais definidos pelas estratégias dos agentes imobiliários — estratégias estas que se definem pela mediação do mercado capitalista. Assim, são criados e inseridos novos artefatos que favorecem e aperfeiçoam a reprodução capitalista do espaço: o espaço como produto social constrangido pela acumulação do capital como sistema metabólico social.

Essas centralidades também sugerem um processo de (re)valorização do espaço urbano, na medida em que a atração exercida por estas áreas implica em alterações no preço e acesso à terra urbana, principalmente no entorno imediato a estas novas centralidades.

Sob essa perspectiva é que nas cidades médias, a partir deste novo momento do processo de urbanização, nota-se dentre as inúmeras características que se destacam a partir da década de 1970, que é recorrente em diferentes pesquisas recentes a relevância do desenvolvimento da tendência à insurgência de atividades e equipamentos comerciais e de serviços territorialmente descentralizados, ou seja, que se localizam territorialmente em áreas exteriores ao centro principal das cidades.

Estudos recentes, como os de Sposito (1991, 1998, 2001), Silva (2001) e Soares (2003) vêm demonstrando que estes equipamentos que insurgem territorialmente descentralizados são capazes de gerar e manter fluxos que, ao se estabelecerem e se intensificarem, consolidam a criação de uma nova expressão de centralidade, o que redefine a própria noção de centralidade no espaço urbano.

Centro, centralidade e (re)estruturação do espaço urbano
A cidade consolida-se como centro de comando para a economia capitalista. Nela, o capital concentra os seus meios de produção, circulação e realização, subjugando o trabalho do homem e, por conseguinte, as relações sociais às suas necessidades de reprodução. Neste sentido, a cidade se produz pautada em espaços hierarquizados, segmentados, fragmentados e fraturados; o capital limita e diferencia a apropriação e uso do solo urbano, segrega classes e camadas sociais.

Por tudo isso, a cidade coaduna as melhores condições para o processo de reprodução do capital, e isto implica em conflitos que se refletem na própria reprodução da vida, no cotidiano da sociedade e das suas classes. Pois "o processo de produção da cidade [é] indissociável do processo de reprodução da sociedade — neste contexto a reprodução continuada da cidade se realiza enquanto aspecto fundamental da reprodução ininterrupta da vida" (CARLOS, 2004, p. 19).

A cidade é, portanto, expressão da simultaneidade das contradições do capitalismo nos conflitos engendrados sob o invólucro da sua apropriação privada, e neste sentido é reproduzida, (re)valorizando (diferencialmente) os lugares, pois "o processo social de produção é espacialmente seletivo" (SANTOS, 1997, p. 41). Assim, a produção da cidade estabelece diferentes e desiguais possibilidades de apropriação (e uso) do espaço urbano, reproduzindo uma cidade desigual baseada na contradição existencial do capitalismo por meio dos conflitos de interesse entre suas classes. Nesse processo as classes se organizam no espaço numa lógica de segmentação socioeconômica e nesse sentido são segregadas, e se "separam". Porém essa

separação das classes é simultaneamente ilusória e extremamente real. É ilusória porque as classes figuram-se na mesma sociedade, no mesmo 'todo' que se sistematiza; aliás, há uma única fonte de riqueza social. E é real porque socialmente e na prática há uma separação de classes que como tal é mantida e vai até o conflito (LÉFÈBVRE, 1972, p. 36, grifos do autor).

O espaço é essencialmente contraditório, se constrói no movimento das contradições do processo de reprodução da totalidade social. É um espaço que, para o processo produtivo, une os homens, e é um espaço que, por este mesmo processo, os separa (SANTOS, 1997). O espaço urbano, portanto, é um produto apropriado desigualmente pelas diferentes classes e camadas sociais posto que sua apropriação ocorre em evidente concordância com seu consumo privado. A partir desse definem-se no espaço suas porções desiguais, no qual o espaço é uma mercadoria nutrida de preço e especulação capitalista, objetivando-se inviabilizar ou anular o acesso à determinadas porções do espaço para camadas sociais que detém um poder de aquisição/apropriação menor.

A cidade, em seu tecido urbano, também se apresenta dividida pó meio da produção de uma desigual disposição de fenômenos nas suas distintas parcelas, engendrando uma articulação interna que tende a se configurar de forma diferenciada e segmentada. Dessa forma, estabelecem-se espaços na cidade que dispõem de uma maior concentração de atividades que concedem a esses espaços um maior poder de articulação. Assim, esses espaços exercem atração sobre as demais parcelas do tecido urbano e constituem uma centralidade urbana, que compreende também uma área capaz de gerar e manter fluxos (de pessoas, capitais, mercadorias etc), e não apenas concentrar determinados fixos.

Contudo, a concentração de equipamentos, atividades econômicas e serviços, é extremamente necessária para uma maior dinamização dos fluxos, sobretudo de mercadorias, objetivando que as trocas se realizem de forma mais profícua ao capital. Tal concentração, ao propiciar uma centralização urbana, termina por implicar "numa articulação diferenciada nos usos do solo, alterando a forma urbana e tornando-a segmentada" (SILVA, 2001, p. 108) tanto social e econômica quanto espacialmente.

As questões que envolvem o centro e a centralidade intra-urbana têm sido debatidas por correntes teóricas que apresentam certas distinções entre si. Essas correntes pautam suas análises basicamente em dois conceitos que, embora aparentemente encontrem certa proximidade, trazem divergências importantes: o conceito de estrutura urbana e o de estruturação urbana.

No primeiro grupo de teóricos encontram-se os pesquisadores filiados à Escola Estruturalista de Chicago (também conhecida por Ecologia Urbana) e à Escola Francesa Clássica. Essas escolas, embora com algumas divergências da análise das estruturas urbanas, tendem a considerar:

o centro como algo fixo, preocupando-se com a forma e com a localização, procurando realizar uma minuciosa descrição das áreas em estudo, visando evidenciar o padrão de concentração, estabelecendo modelos que dêem conta de explicar a forma de espaço urbano (SILVA, 2001, p. 108).

Ainda de acordo com Silva (2001), a principal divergência entre essas duas escolas encontra-se nas críticas formuladas pela Escola Francesa Clássica aos estudos de pesquisadores da Ecologia Urbana. As críticas decorriam da constatação de que os estudos da Ecologia Urbana se concentravam demasiadamente na formulação de modelos, em detrimento de estudos sobre a gênese histórica e sobre as características físicas da área em análise.

O segundo grupo de teóricos é identificado por realizar um debate acerca da centralidade intra-urbana a partir do conceito de estruturação urbana. Esse conceito não se prende exclusivamente na descrição e interpretação das formas e equipamentos que se encontram fixos, mas compreendem a relevância do debate acerca dos fluxos que se encontram em movimento no território. Assim, essa perspectiva analítica tende a considerar que "a centralidade deve ser entendida a partir dos fluxos que geram de pessoas, de automóveis, de capitais, de decisões, de informações e, sobretudo, de mercadorias" (SILVA, 2001, p. 108).

Nesa direção, depreende-se que o estudo da centralidade urbana se consolida em íntima relação com a própria noção de estrutura e estruturação urbana, e das modificações e rupturas que se processam no tempo. Conceitos que dizem respeito às diferentes disposições (arranjos) no uso e ocupação do solo urbano e as diversas articulações e interações entre estes, resultantes do próprio arranjo. Contudo, esta seria uma centralidade também em movimento, "um movimento dialético que a constrói e a destrói; que a cria ou a estilhaça" (LÉFÈBVRE, 1999, p. 110).

Corroborando com a necessidade de relacionar centralidade e estrutura(ção) urbana, Castells (1983) aponta que a centralidade constitui-se como elemento fundante das articulações entre os demais elementos que compõem a estrutura urbana, sendo a centralidade permeada por um conteúdo social, ao mesmo tempo em que se apresenta como um local geográfico. Assim, a centralidade expressaria, ao mesmo tempo, um conteúdo e uma forma, posto que se materializa em centros, desdobramentos do centro, sub-centros, dentre outras possibilidades da centralidade se materializar ao assumir formas espaciais na estrutura urbana.

De acordo com Castells (1983, p. 273), o centro representa, por um lado, "a espacialização do processo de divisão técnica e social do trabalho [...]. Por outro lado, podemos defini-lo como especialização geográfica de um certo tipo de unidades de consumo e de serviços". Além disso, é necessário compreender que o centro não se define para sempre como um local fixo na estrutura urbana, o que significa a existência de uma impossibilidade de "assentar o centro urbano, [revelando] que é necessário defini-lo com relação ao conjunto da estrutura urbana" (CASTELLS, 1983, p. 275, grifo do autor).

Acerca da estruturação do espaço urbano, uma questão inicial que merece destaque, segundo observação de Castells (1983), é a de compreender que o espaço urbano é estruturado implica em compreender que este espaço não se (re)organiza ao acaso, mas a partir de determinações e conflitos de interesses. A partir dessa formulação pode-se depreender que a estruturação do espaço faz-se constituída do resultado (sempre inconcluso) dos embates sintetizados principalmente na organização econômica, social, política e os interesses dos grupos sociais dominantes, bem como na própria dialética empreendida e resultante de outro embate, esse entre os fatores internos e externos à cidade.

Neste sentido, apreender o processo de estruturação implica em considerar as dinâmicas e funções das distintas parcelas do tecido urbano e a relevância e relação dessas parcelas individualmente com o processo de reprodução do espaço urbano e na articulação das próprias parcelas. Na medida em que determinados fragmentos do espaço se constituem de maior poder político, econômico, social, e permitem, essencialmente associados aos interesses das elites, induzir o crescimento, os novos investimentos e a valorização da terra urbana, revelam a importância de uma estrutura urbana que atenda prontamente a realização dos interesses desses grupos, atrelando a estrutura à reprodução do espaço, que também deve estar pautada nesses interesses.

Para apreender o processo de estruturação urbana, portanto, é necessário realizar o esforço reflexivo de desvelar a profunda articulação existente entre os conteúdos individuais das distintas parcelas da estrutura com o processo de reprodução do espaço urbano, consubstanciada também com as rupturas e permanências que se expressam ao longo da história no próprio recorte temporal que compreende a estrutura. Desvelar, assim, os conflitos, as contradições que se materializam e se ocultam, impelindo a organização da cidade sempre associada a determinadas racionalidades e interesses em conflito.

Dessa forma, não se encontrando alheia às contradições e conflitos do processo de reprodução social, a estruturação do espaço urbano se expressa permeada pela constante relevância do espaço para o aprofundamento da desigualdade entre as classes sociais. Para tanto ocorre uma manipulação do espaço a partir de determinações na organização e arranjo dos seus conteúdos em parcelas definidas do tecido urbano, realizando um processo que aponta como tendência o aprofundamento das diferenças de classe.

Esse aprofundamento se revela na cidade, no âmbito da estrutura urbana, como resultante da dialética de um campo de força envolto pelos conflitos que se constituem na disputa de acesso e de poder pela terra urbana que por sua vez reafirma os conflitos, sendo reproduzida e apropriada inexoravelmente a partir desses. Por se realizar essencialmente a partir dos interesses dos grupos sociais dominantes, a estrutura urbana se revela intimamente comprometida com esses. A partir dessas observações podemos depreender que "o centro urbano, como a cidade, é produto: por conseguinte, ele exprime as forças sociais em ação e a estrutura de sua dinâmica interna" (CASTELLS, 1983, p. 274, grifo do autor).

Alguns autores, como Sposito (1991, 2004), ao proporem a utilização da expressão estruturação, enfatizam que esta possibilitaria a análise da estrutura como um processo, como uma contínua transformação na qual a estrutura contém e está contida na reprodução dos processos sociais. Nesse sentido, cumpriria observar que a estrutura da cidade não é estática, pois que se encontra em constante movimento a partir do processo de (re)estruturação. Assim, alia-se o processo à forma, e a estrutura deve ser entendida como um mero recorte temporal de um processo amplo e contínuo de modificação das próprias estruturas, o processo de estruturação. Nessa direção, a autora observa que:

o conceito de morfologia urbana não se referiria [apenas] a uma dada forma urbana (extensão e volume), tal como ela se apresenta configurada espacialmente, mas ao processo de sua gênese e desenvolvimento, segundo os quais podemos explicar essa morfologia e não apenas descrevê-la ou representá-la gráfica ou cartograficamente. Aceitando-se essa perspectiva, a morfologia urbana refere-se não apenas à forma, mas também aos conteúdos que orientam essa forma e são por ela redefinidos continuamente (SPOSITO, 2004, p. 66).

Sposito (2004) salienta, ainda, que se deve guardar a expressão reestruturação para os momentos nos quais se contemplam um amplo e profundo conjunto de mudanças na estrutura urbana, partindo da idéia de ruptura com a dinâmica constituinte de uma estrutura anterior, passando o espaço urbano a se (re)produzir pautado nas modificações resultantes. Ou seja, a reestruturação desencadeia-se de uma desestruturação, que marca um rompimento, uma mudança significativa no processo de estruturação. Teríamos, assim, um processo contínuo de estruturação-desestruturação-reestruturação das estruturas urbanas, e esse processo de "estruturação das cidades tem que passar necessariamente pelo entendimento do papel do centro" (SPOSITO, 1991, p. 5), ou dos centros, das diferentes centralidades intra-urbanas.

Assim, é necessário considerar que as rupturas ocorridas no processo de estruturação compreendem uma articulação temporal e dialética entre o velho e a imposição do novo, tanto como conteúdo social quanto como processo espacial, redefinindo ao mesmo tempo o velho e o prosseguimento do processo, constituindo um desequilíbrio que é também um reequilíbrio. De acordo com Santos (1996, p. 227), as rupturas "podem ser consideradas um fator de desagregação, [ou uma] desestruturação, se nos colocamos em relação ao passado, isso é, ao equilíbrio anterior. E de uma reestruturação, se vemos a coisa do ponto de vista que se está dando".

Outro ponto relevante é compreender que a reestruturação que se expressa no espaço intra-urbano tem profunda relação com movimentos de reestruturação interurbana, o que Sposito (2004, 2007) denomina de reestruturação da cidade e reestruturação urbana, respectivamente. Dessa forma, a autora enfatiza que o movimento de estruturação interna das cidades é incapaz de responder a si mesmo quando desconexo do próprio movimento que implica na atribuição e modificação contínua dos papéis às cidades na rede urbana. Entretanto, isso não significa que esses processos não sejam distintos, embora também sejam complementares.

Uma ruptura significativa com as estruturas urbanas, observada com atenção por diversos estudiosos da geografia urbana como uma característica relevante à intensificação do processo de urbanização decorrente no século XX, consiste num processo de descentralização territorial de equipamentos e atividades para espaços diversos ao que constitui o centro tradicional (principal) das cidades. Esses equipamentos e atividades, para além da descentralização têm-se mostrado capazes de gerar e manter fluxos de forma a desencadear um processo de recentralização conjugado à descentralização territorial.

Neste sentido, diferentes estudos têm apontado como um caminho analítico pertinente que o processo de descentralização conjugado ao de (re)centralização — não mais restrito à dinâmica espacial das metrópoles — seja indissociavelmente debatido a partir da sua relação com o processo de estruturação-desestruturação-reestruturação do espaço urbano. Assim, observa-se que a constituição de uma nova expressão de centralidade em uma cidade outrora centralizada em um único núcleo, redefine nesta a própria noção de centralidade, rompendo e (re)constituindo um novo arranjo e novas formas de articulações e interações entre os diferentes lugares da cidade, que passa a ser poli(multi)nucleada.

Desta forma, realiza-se uma alteração significativa na dinâmica, no arranjo e nas relações entre as distintas parcelas do espaço. Em outras palavras, ocorre "uma tendência de descentralização e de uma conseqüente (re)centralização, expressando uma centralidade multicêntrica, que amplia a espacialização intra-urbana, distribuindo os fluxos e ampliando a diferenciação/segmentação urbana" (SILVA, 2001, p. 111). A centralidade torna-se multicêntrica posto que mesmo com "a emergência de outros 'centros', o principal e cada um deles desempenha um papel de concentricidade" (SPOSITO, 1991, p. 6-7).

Nesta direção, depreende-se que não há uma mera mudança na localização das atividades que se encontravam no centro principal ou uma dispersão dessas atividades por outras áreas da cidade, mas uma lógica locacional profícua à dinâmica econômica de determinadas atividades que expressam uma "concentração descentralizada" frente ao centro principal, expressando uma redefinição da centralidade intra-urbana, que se torna múltipla e plural, resultante "do que muda com relação ao que permanece, no plano territorial e no plano das representações que se constróem sobre o espaço urbano e suas áreas centrais" (SPOSITO, 2001, p. 238).

De acordo com Sposito (1998), a relevância da análise da redefinição da centralidade intra-urbana pode ser sintetizada a partir de quatro dinâmicas que expressam um conjunto de mudanças sociais, econômicas e espaciais em curso. Estas mudanças se realizam impelindo uma contínua recomposição da estruturação intra-urbana conjugando rupturas e continuidades expressas através: (1) dos novos padrões de localização dos equipamentos comerciais e de serviços e seus impactos frente ao papel do centro principal; (2) das transformações econômicas expressas em formas flexíveis de produção que impõem fortes vínculos interurbanos na estruturação intra-urbana; (3) das novas dimensões da redefinição da centralidade intra-urbana, que embora não seja um processo novo, passa a ocorrer também nas cidades médias; (4) da redefinição do cotidiano frente ao crescimento da importância conferida ao lazer e ao tempo destinado ao consumo.

Nessa perspectiva, a autora procura reforçar a necessidade de utilização do conceito de (re)estruturação urbana em detrimento do conceito de estrutura urbana. Isso devido à capacidade analítica e de fundamentação crítica que o conceito de estruturação proporciona ao possibilitar respostas para questões cruciais que não se encontram restritas aos usos do solo e ao que está fixo no território, mas sobretudo aos fluxos gerados e mantidos pelo arranjo e rearranjo do que está localizado no território, bem como aos processos sociais gerados pelo (re)arranjo e aos quais esse mesmo (re)arranjo responde. Assim, Sposito (2001) afirma que embora o centro se revele por determinados atributos localizados ou fixados no território, a centralidade se desvela pelo que se movimenta no território. Ou seja, "a centralidade pode ou não ser fugaz, efêmera ou transitória, porque ela não se institui apenas pelo que está fixo no espaço, mas pelas mudanças ocorridas no decorrer do tempo, no uso, apropriação e sentido dados aos espaços e deles apreendidos" (SPOSITO, 2001, p. 239).

Portanto, não apenas a descentralização de determinadas atividades correspondem à criação de novas expressões de centralidade. Essas se criam essencialmente em decorrência dos fluxos que as atividades geram e dos quais decorrem sua própria descentralização, que ao se estabelecerem e se intensificarem geram novas centralidades. Ou seja, conforme aponta Sposito (2001, p. 236), ocorre uma articulação de duas dinâmicas econômico-territoriais: "a descentralização territorial dos estabelecimentos comerciais e de serviços e a de recentralização dessas atividades".

A expressão completa desse processo é a diversificação das expressões da centralidade intra-urbana e, ainda, da centralidade interurbana, visto que novas formas de comércio promovem novos fluxos entre cidades de diferentes portes, permitindo a emergência de uma centralidade múltipla e complexa, no lugar da centralidade principal e muitas vezes única, que marcava a estruturação interna das cidades até há algumas décadas (SPOSITO, 2001, p. 236, grifo da autora).

A crescente presença dessa dinâmica, expressa na descentralização de atividades comerciais e de serviços caracterizada pela recentralização exercida por essas novas áreas no território das cidades, aponta para um processo de aumento e diversificação de áreas centrais. Tal alteração têm sido verificada também nas cidades médias, o que denota uma alteração nas formas contemporâneas de reprodução do capital adentrando a dinâmica espacial de outras categorias de cidades que não as metrópoles. Sposito (2001) observa que a freqüente incidência desse processo, modificando a concepção de centro e centralidade frente à estruturação intra-urbana, permite constatar a ocorrência de uma centralidade múltipla, exercida por diferentes e diversas áreas centrais.

Uma outra ocorrência de centralidade é derivada da própria multiplicidade temporal da expressão da centralidade dessas diferentes áreas centrais. Sendo o centro caracterizado, conforme já observado, pelo que se encontra fixo no território, mas a centralidade pelo que no território se movimenta, a centralidade se presta a modificações que ocorrem em variações temporais mais curtas e inconstantes. Dessa forma, constata-se que a centralidade pode ser redefinida continuamente em curtos intervalos de tempo, o que torna possível que a sua apreensão se realize a partir da noção de centralidade cambiante. Essa apreensão, de acordo com Sposito (2001), é resultante não apenas das relações decorrentes da articulação entre o que está fixo e o que está em movimento, mas das variações impressas e expressas nessa articulação no decorrer de determinados intervalos de tempo. Esses intervalos podem, inclusive, ser de curto período, estabelecendo diferenças de fluxos nas diversas áreas centrais, em diferentes horários de um mesmo dia ou entre diferentes dias da semana. Ou seja, a centralidade exercida por determinada área pode acentuar-se ou dissipar-se momentaneamente e em diferentes intensidades.

Para além da centralidade múltipla, e paralelamente a esta, as cidades também passam a responder à necessidade de uma centralidade polinucleada, que caracteriza uma centralidade diferenciada. Isso ocorre porque, como constatou Sposito (1991, 2001), as novas áreas centrais geram e mantém um determinado padrão de consumo que implica uma "funcionalidade" e acessibilidade (não apenas tangível, ou seja, não apenas pelas facilidades propiciadas pelas suas vias de acesso) para determinados grupos e camadas sociais de elevado poder aquisitivo, que se sentem estimulados ao atendimento e realização dos padrões de consumo das novas centralidades. Dessa forma, as novas centralidades terminam por expressar centralidades socialmente segmentadas no interior das cidades.

Uma outra forma de manifestação das novas centralidades é resultante do reforço da centralidade urbana por meio da articulação de duas escalas espaciais, o que implica, de acordo com Sposito (2001), numa centralidade complexa. Essa decorre da articulação entre a multiplicação da centralidade na escala intra-urbana com o reforço da centralidade exercida pelas cidades nas quais se apresenta a ocorrência de novas centralidades. Nesse sentido, a centralidade torna-se complexa, gerando ao mesmo tempo um reforço e uma modificação na articulação dos fluxos entre a escala intra-urbana e interurbana, pois as novas centralidades compreendem uma lógica a partir da "escolha de localizações que possam ser estratégicas de sorte a atrair mercados consumidores de mais de uma cidade" (SPOSITO, 1998, p. 34). Por isso, reforçam a centralidade da cidade ao mesmo tempo em que multiplicam a centralidade na cidade.

Redefinição da centralidade em cidades médias

Acerca dos principais processos contemporâneos, neste contexto de natureza espaço-temporal, que redefinem os papéis das cidades médias, Sposito (2006) aponta para serem os mais significativos os processos que se enquadram em duas vertentes: concentração e centralização econômica e a melhoria e diversificação dos sistemas de transportes e telecomunicações.

Para a autora, essa primeira vertente de processos caracterizada pela concentração e centralização econômica constitui-se pela emergência de novos meios técnicos e informacionais que vêm possibilitando novas estratégias e lógicas de atuação das empresas de diferentes portes. Nessa direção:

a análise desses processos interessa na medida em que tanto a concentração como a centralização econômicas requerem e propiciam (des)concentração espacial e/ou centralização espacial dos capitais, o que implica novas estratégias por parte de empresas, grupos econômicos ou conglomerados (SPOSITO, 2006, p. 8).

Isso se verifica, a título de exemplo, com a desconcentração espacial de variados ramos de atividades produtivas das metrópoles para cidades de médio porte. Esse processo, se por um lado altera ou amplia os papéis urbanos das cidades médias, caracterizando a desconcentração espacial, por outro lado amplia também os papéis da metrópole, pois gera uma (re)centralização dos capitais no que tange à localização dos centros de comando, o que implica essencialmente na centralização do capital financeiro (SPOSITO, 2006). Disso depreende-se que no momento atual "a lógica do capital industrial é redefinida, produz-se um deslocamento, no espaço, dos estabelecimentos industriais sem que essa desconcentração traga, consigo, a descentralização do capital" (CARLOS, 2005, p. 30).

No caso brasileiro, de acordo com Botelho (2002), na década de 1970 a região metropolitana de São Paulo chegou a participar com 44% da produção industrial do país. Contudo, entre a década de 1970 e 1990, a participação do interior paulista na produção industrial estadual subiu de 25% para 47%.

Ao analisar as indústrias automobilísticas, o autor confirma que a desconcentração também se expressa na localização das novas indústrias e dos novos investimentos do setor em cidades de porte médio, havendo uma desconcentração também para outros estados e regiões da federação. Exemplos desse processo são os casos da General Motors em Gravataí-RS, da Audi/Volkswagen e Renault em São José dos Pinhais-PR, da Mitsubichi em Catalão-GO, da Ford em Camaçari-BA, dentre outros exemplos que expressam uma mudança ou diversificação na escolha de localização dos investimentos do setor industrial no país a partir da década de 1980.

A outra vertente analisada por Sposito (2006) compreende as modificações que se acentuaram a partir da década de 1980 quanto à considerável melhoria e a própria diversificação dos sistemas de transportes e comunicações que trouxeram implicações no que tange a diminuição de custos com circulação, tanto de mercadorias e informações como de pessoas.

A essas alterações acrescentem-se as possibilidades abertas pela existência de novos tipos de mídia que favorecem a difusão de imagens e de valores que ampliam o consumo e estimulam a expansão territorial de capitais, empresas, grupos e conglomerados, da escala regional, passando pela nacional e chegando à internacional (SPOSITO, 2006, p. 10).

Deste processo, a autora aponta para a tendência que se instaura com a diminuição dos custos com circulação de mercadorias na constituição dos preços finais, propiciando uma maior mobilidade territorial de equipamentos direcionados ao consumo, e não apenas de setores produtivos. Contudo, como há necessidade de uma determinada densidade de consumidores para que certa localidade seja interessante para investimentos dos capitais que se desconcentram, as cidades médias apresentam-se como espaços privilegiados de alocação destes investimentos, dos quais decorre o fortalecimento do papel destas cidades no que tange ao oferecimento de funções, bens e serviços aos moradores da sua hinterlândia e de áreas rurais ou urbanas mais ou menos distantes. Assim, este processo implica no reforço ao papel das cidades médias como espaços de consumo locais e regionais, reforçando a centralidade e intermediação destas cidades.

Um outro aspecto abordado pela autora diz respeito às modificações do período atual na modernização do setor agropecuário, ocorrendo uma dupla relação espaço-temporal. Isto porque, ao mesmo tempo em que o setor exige relações espaciais marcadas pela contigüidade e sob domínio de uma cidade média, por outro lado exige também relações de sobreposição e articulação com outras escalas espaciais não definidas pela contigüidade, resultantes sobretudo das modernas formas de comunicação.

Contudo, por último, Sposito (2006) propõe uma compreensão das cidades médias que relacione essencialmente duas vertentes analíticas supra citadas — os processos decorrentes da concentração e centralização econômica conjugados com a melhoria e diversificação dos sistemas de transportes e telecomunicações. Isto implica em considerar as (novas) formas contemporâneas com que as atividades econômicas dos diversos ramos comerciais e de serviços vêm se organizando espacialmente "como parte de um processo de concentração econômica que se acompanha de desconcentração espacial" (SPOSITO, 2006, p. 12), bem como as formas de competitividade que se desenvolvem entre as cidades de porte médio para se apresentarem mais rentáveis e propícias para receberem os investimentos que se desconcentram espacialmente.

Desta forma, com a insurgência destes investimentos, modifica-se a dinâmica de produção e estruturação do espaço intra-urbano das cidades médias, bem como também a forma como estas cidades se relacionam e interagem com a sua hinterlândia, com outras cidades médias e com as metrópoles.

Os novos processos sociais e espaciais que transformam os papéis das cidades médias, redefinindo-os, podem ser analisados a partir das mudanças ocorridas na dinâmica intra-urbana, tendo como ponto de partida o movimento econômico que subsume as cidades médias pelas prementes necessidades da reprodução e acumulação do capital no atual momento histórico.

Esse movimento econômico delineia um problema, na medida em que impele nas cidades médias a criação de novas centralidades e artefatos mais profícuos à imposição de tempos hegemônicos, ou seja, mais profícuos ao novo contexto da dinâmica econômica. Esse contexto, ao redefinir os papéis das cidades médias, revela na dinâmica intra-urbana destas cidades as mudanças resultantes do embate entre o que existe e o que se impõe, embate que vela e desvela as contradições do movimento do mundo nos lugares.

Para o desenvolvimento analítico da redefinição da centralidade nas cidades médias, parte-se da hipótese de que, nas cidades médias, as novas áreas centrais são criadas para estas cidades se adaptarem e "atenderem" às mudanças decorrentes da dinâmica econômica a partir da mundialização do capital. Tal fato denota, nestas cidades, um processo de redefinição dos seus papéis, bem como revela, na maioria dos casos, a não funcionalidade e/ou incapacidade dos centros tradicionais em receber e "atender" às necessidades contemporâneas da reprodução e acumulação do capital. Ou seja, são os novos papéis determinados às cidades médias no processo de mundialização do capital que impelem nestas cidades a necessidade de criar novas áreas centrais, tornando as cidades médias atrativas à localização de novos artefatos ou equipamentos comerciais e de serviços pautados em novos fluxos, materiais e imateriais, de capital e mercadorias que reproduzem novos signos, idéias, valores, contradições, discursos, dentre outros.

As cidades médias apresentam-se então como espaços privilegiados para o atendimento dessas necessidades de reprodução do capital no momento em que ocorre um processo de descentralização espacial do capital produtivo ou do terciário. Isso porque essas cidades, além de situarem-se em localizações relevantes, possuem requisitos importantes quanto às redes de transporte e comunicação e exercem uma centralidade em nível interurbano sobre determinada contigüidade territorial, atraindo, portanto, consumidores, o que faz com que estes novos investimentos sejam rentáveis economicamente. Estes investimentos, ao se instalarem, reforçam a própria centralidade que estas cidades já exerciam, fato que inclusive otimiza a reprodução dos novos valores decorrentes da imposição do tempo hegemônico em outros espaços territorialmente descentralizados na rede urbana.

Considerações para o prosseguimento do debate

Por se consolidarem essencialmente substanciadas pelas atividades comerciais e de serviços, as novas centralidades constituem-se de equipamentos que geram e mantém padrões e necessidades de consumo que respondem ao conteúdo do novo contexto da reprodução do capital, estruturada por meio de fluxos de natureza material e imaterial. Essas necessidades de consumo, por subjugarem ainda mais o tempo livre à ampliação do mundo da mercadoria e as mediações das relações sociais ao valor de troca, expressam também o crescente distanciamento entre o indivíduo e a produção humano-genérica consciente, resultando no aprofundamento do estranhamento da vida cotidiana na cidade.

Neste sentido, ao reforçar e consolidar uma ruptura tênue que não se define claramente entre o tempo de trabalho e o tempo livre, subjugam outros momentos cotidianos à reprodução e acumulação do capital, ou seja, à produção e realização do valor. Isso se consolida ao mesmo tempo em que se intensifica e precariza o trabalho num processo produtivo com profundas alterações de âmbito qualitativo. Tais fatos impulsionam um processo de esvaziamento de sentido do homem como ser social — tendendo a não realizar-se senão no sentido da realização da mercadoria — , tanto dentro quanto fora do trabalho, principalmente pelos novos fluxos imateriais. Estes fluxos, ao se estabelecerem e se intensificarem no sistema de mediação social, terminam por não permitir observar separadamente os momentos cotidianos, assim como dificultam a própria apreensão da intensidade das suas expropriações para o homem e reapropriações pelo capital.

Portanto, as novas centralidades apresentam-se como movimentos da dinâmica espacial relevantes ao debate acerca da ofensiva do capital sobre os momentos de "não-trabalho", que, cada vez mais, apresentam-se como funcionais ao capital no processo da sua expropriação devido à premência do tempo livre à reprodução do sistema produtivo como tempo de consumo ou de lazer subvertido. Ou seja, as novas centralidades revelam as presentes imposições do tempo hegemônico ao tempo livre como condição de reprodução do capital.

A criação de novas centralidades evidencia também a questão do planejamento e da gestão urbana e o peso dos agentes envolvidos. Isso devido ao fato que a análise das novas centralidades implica em compreender as formas de articulação e o papel exercido pela ação dos agentes do poder público local e de setores da iniciativa privada em impelir e direcionar o processo de reestruturação do espaço urbano da cidade, revelando os interesses destes agentes.

Isso ocorre porque o processo de reestruturação caracterizado principalmente pela centralidade múltipla e polinucleada — poli(multi)nucleada — , na qual as centralidades são incorporadas de formas desiguais no que tange à sua acessibilidade, são, portanto, espaços de "uso" (e de conflito entre propriedade e uso, apropriação), apropriação e realização de padrões de consumo de segmentos sociais urbanos distintos e em certa medida com uma maior homogeneidade interna, o que pressupõe que as novas centralidades atendem a interesses de determinados grupos sociais em detrimento de outros.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1982-45132008000100014&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

Revista Sociedade e Natureza

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