sábado, 27 de julho de 2013

UNIÃO EUROPÉIA

Crise faz com que brasileiros desistam do ‘sonho espanhol'



Babeth Bettencourt
Enviada especial da BBC Brasil a Madri e Barcelona
A crise econômica e o alto índice de desemprego - que em abril chegou a 17,36% - estão fazendo com que mais imigrantes brasileiros decidam deixar a Espanha e voltar para casa.
A Organização Internacional para a Migração (OIM) - que ajuda imigrantes que queiram voltar para casa, pagando sua passagem - afirma que, em 2007, analisou pedidos de 2.073 pessoas na Espanha.
De 2008 até abril deste ano, este número tinha subido para 6.722. Outros 500 casos - que poderiam representar cerca de 1.500 pessoas - aguardavam na fila para ser analisados.
"O número de imigrantes querendo ajuda para voltar para casa aumentou muito", conta Clarissa Araújo do Carmo, funcionária da OIM em Madri. "Antes recebíamos cerca de cinco pedidos diários, mas desde meados do ano passado este número subiu para 20, até 30 pedidos."
Os brasileiros, juntamente com os argentinos, são o segundo maior grupo a procurar a OIM. Os bolivianos são os primeiros da fila.
No ano passado, a organização ajudou 143 brasileiros a voltar para casa e neste ano, até março, 45 já haviam retornado e outros 155 casos (o que poderia representar o triplo em número de pessoas) aguardam para ser analisados, mas a espera pode demorar meses.
Crescimento
Desde o ano 2000, o crescimento econômico e a ampla oferta de empregos - principalmente nos setores de construção, hotelaria e serviços domésticos, que os espanhóis não queriam ocupar - vinham atraindo imigrantes de vários países para a Espanha.
Mas refletindo a crise mundial, o país entrou em dificuldades em meados do ano passado e hoje seu índice de desemprego é duas vezes maior do que o dos outros países da União Européia.
O cônsul brasileiro em Madri, Gelson Fonseca, afirma que ainda é cedo para medir os efeitos das dificuldades econômicas sobre os imigrantes brasileiros na Espanha.
"Poderemos ter um número preciso sobre a saída de brasileiros da Espanha daqui a um ano. A Espanha tem estatísticas muito precisas sobre a comunidade estrangeira no país, por conta do Padrão Municipal (uma espécie de censo municipal publicado a cada dois anos)", diz Fonseca.
"O padrão é renovado a cada dois anos, então, precisamos esperar pelo menos mais um ano para medir este número."
De acordo com dados do Padrão Muncipal, havia 11.085 brasileiros registrados na Espanha no ano 2.000. Em 2.008, este número chegava a 116.548. Segundo dados do Ministério do Trabalho, no entanto, apenas cerca de 20% têm seguridade social.
Entre os brasileiros na Espanha, os homens, em sua maioria, trabalham no setor de construção, um dos mais afetados pela crise. As mulheres estariam empregadas, em geral, no setor de serviços doméstico ou de hotelaria.
"A taxa de desemprego entre os imigrantes na Espanha é maior do que a taxa de desemprego entre os espanhóis. O que se diz é que a taxa de desemprego para estrangeiros, geralmente, está entre 6% e 7% acima da taxa dos espanhóis", afirma o cônsul.


Cachón: 'Migrações para a Espanha se produziram por questões de trabalho'
Segundo o sociólogo Lorenzo Cachón, presidente do Fórum para a Integração dos Imigrantes, a crise e o desemprego também aumentaram a tensão entre os imigrantes e os espanhóis.
"A crise está sendo especialmente grave na Espanha, afetando todos os trabalhadores. Com isso, muitos imigrantes perderam o emprego", afirma Cachón.
Se antes os imigrantes ocupavam as vagas rejeitadas pelos espanhóis, agora eles disputam diretamente esses empregos.
"As migrações para a Espanha se produziram, basicamente, por questões de trabalho. As pessoas vieram não por que tinham problemas em seus países de origem, mas porque na Espanha havia oportunidades de empregos", diz o sociólogo.
"Na Espanha, desde o ano 2000, houve muitas oportunidades de emprego. Em 2007, elas começam a diminuir. 2008 foi um ano ruim e a previsão é de que 2009 seja muito negativo", afirma ele.
"O que está acontecendo é que menos gente está vindo para a Espanha porque sabem que hoje não vão encontrar emprego. Aumentou o retorno de imigrantes, principalmente de países latino-americanos."


BBC BRASIL

ALEMANHA - O preço da estabilidade

O preço da estabilidade
Apesar do clima de confiança na economia do país, que conseguiu se manter em melhor situação durante a crise europeia, a Alemanha está pagando um alto custo social por ter sido campeã mundial de exportações. Além do aumento da desigualdade e da pobreza, crescem as tensões políticas

por Till van Treeck

Atualmente, os líderes políticos na Alemanha aparentam muita confiança em relação à economia do país. Até bem recentemente, tanto os sociais-democratas quanto os conservadores não perdiam a chance de se gabar por terem conduzido, nas últimas décadas, as tais “reformas estruturais” que contribuíram para fazer da Alemanha a “campeã mundial das exportações”. Na verdade, até 2009, quando este título foi perdido para a China, o país era o que mais vendia produtos para o exterior em termos de valor agregado.

A economia alemã, fortemente orientada para exportações, foi afetada duramente pela crise econômica mundial iniciada em 2008, culminando em uma queda do comércio internacional: o produto interno bruto (PIB) real alemão declinou 5% em 2009, enquanto que em outros países da zona do euro ele caiu em “apenas” 3,7%. No entanto, a Alemanha ainda é considerada uma fortaleza de estabilidade se comparada a outros membros da União Monetária Europeia e, particularmente, aos infelizes “Pigs” (Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha, da sigla em inglês).

A verdade é que o déficit governamental ainda é relativamente pequeno na Alemanha: estava abaixo de 3% do PIB em 2009 e espera-se que fique em torno dos 5% em 2010, enquanto que nos Pigs, em 2009, ele ficou entre 8% em Portugal e quase 14% na Grécia . De maneira similar, o fato de as taxas de juros sobre os títulos do governo alemão estarem caindo nos últimos meses – enquanto que os Pigs tiveram que oferecer maiores garantias contra riscos aos seus credores – foi interpretado como uma evidência de que a Alemanha, como resultado de sua reforma estrutural e relativa disciplina fiscal, vem ganhando a disputa e, portanto, merece a confiança dos mercados.

Por isso, o governo alemão há muito tem sido relutante em participar de uma solução europeia coordenada para salvar a “tragédia grega”, problema que inicialmente era percebido como uma crise da dívida interna de um país que aparentemente não havia feito seu dever de casa. Somente após um longo período de hesitação, acompanhado por crescentes especulações nos mercados financeiros contra o governo grego, a Alemanha finalmente concordou, em maio de 2010, com o plano de resgate europeu que poderia potencialmente conceder até 750 bilhões de euros em crédito aos países da zona do euro com problemas financeiros.

Mesmo assim, essa interpretação sobre a atual crise na zona do euro, que infelizmente ainda é dominante na Alemanha, é altamente questionável. Na verdade, se a Alemanha, como a maior euro-economia, responsável por mais de um quarto do PIB da região, não superar sua estratégia exageradamente exportadora e seu crescimento neomercantilista, não será possível estabilizar a União Monetária Europeia em longo prazo. Os desequilíbrios comerciais irão persistir e outros países-membros terão que embarcar numa estratégia de austeridade fiscal e contenção de salários a fim de ganhar competitividade em relação à Alemanha. Isso poderia levar a zona do euro a uma espiral descendente, incluindo elevação no nível de desemprego, risco de deflação e aumento de tensões sociais e políticas. Essa foi exatamente a crítica que John Maynard Keynes teceu contra o mercantilismo, uma doutrina econômica ultrapassada onde cada nação tenta melhorar sua balança comercial à custa de outros países, resultando em demanda agregada insuficiente em nível global.

Democracia social?

O Partido Social Democrático (SPD) governou o país de 1998 a 2005, sob a liderança do chanceler Gerhard Schröder, e foi parceiro júnior na Grande Coalizão com o conservador Partido Democrata Cristão (CDU) durante o governo Angela Merkel, de 2005 a 2009. Portanto, é muito difícil para o SPD reconhecer que as reformas estruturais iniciadas com a assim chamada Agenda 2010, a partir de 2002, tenham alguma coisa a ver com a fraca demanda doméstica na Alemanha e os desequilíbrios macroeconômicos na zona do euro.

Em seu manifesto para as eleições gerais de 2009, genericamente conhecido como Deutschland-Plan, o candidato do SPD, Frank-Walter Steinmeier, descreveu o alegado sucesso da Agenda 2010: “Desde 1998, nós, sociais democratas, estamos modernizando a Alemanha e reconstruindo a competitividade internacional. Foi por meio da política de moderação salarial, com o auxílio de parceiros sociais, que as empresas e produtos alemães se tornaram competitivos nos mercados mundiais. A Alemanha se transformou de ‘doente europeu’, como a mídia internacional a chamava há dez anos, em locomotiva da economia na União Europeia. Em 2008, o país já era novamente a campeão mundial das exportações... Os ganhos sociais associados fazem de nós campeões da divisão global do trabalho”.

Realmente, a desregulamentação do mercado de trabalho – que começou nos anos 1990, mas foi elevada a um novo patamar com a Agenda 2010 a partir de 2002 – foi claramente projetada para reduzir salários na renda nacional e aumentar a dispersão dos mesmos. Durante seu discurso no Fórum Econômico Mundial de Davos, em 2005, o então chanceler Gerhard Schröder promoveu o novo modelo alemão ressaltando que “criamos um setor funcional e de baixo custo e modificamos o sistema do seguro desemprego de maneira a dar alta prioridade aos incentivos ao trabalho”. Além disso, seguindo a orientação do Conselho Alemão de Especialistas em Economia e da maioria de outros especialistas da área, o governo vem até então se recusando a introduzir um salário mínimo oficial, que seria uma maneira de aliviar a crescente pressão sobre os salários resultantes da desregulamentação. Isso, juntamente com a frequente recusa do governo em declarar os contratos salariais negociados e universalmente vinculados, tem levado à erosão intencional do sistema de barganha salarial. De fato, o governo alemão parece concordar com a opinião de Hans-Werner Sinn, um conselheiro influente, que concluiu em 2009 que: “O crescimento do setor de baixos salários como resultado da Agenda 2010 não é um problema, mas um sucesso da política alemã”.

Mas, se examinarmos com mais profundidade o desempenho da economia alemã nesta última década, parece que o resultado positivo da Agenda 2010 é baseado mais em ideologia que em fatos empíricos. Para começar, deveríamos levar em conta que a Alemanha era o país (juntamente com a Itália) com o crescimento econômico mais fraco dentro da zona do euro entre 1999, ano em que a moeda foi introduzida, e 2007, o ano antes da crise. Além disso, o mercado de trabalho alemão teve um desempenho pior que a média europeia em termos de criação de novos postos de trabalho, e a economia alemã criou menos empregos que as economias da França, Espanha ou Itália (esse resultado ainda é considerado quando as diferenças de crescimento do PIB são avaliadas). Mesmo o relativo sucesso econômico de meados de 2005 ao início de 2008, celebrado por alguns políticos como a nova Wirtschaftswunder (maravilha econômica) alemã, foi menos intenso em termos de empregos que as duas últimas ascensões da França no final dos anos 90/início dos 2000 (após as 35 horas de reformas), e de 2005-2008.

Ao mesmo tempo, o aumento de desigualdades na Alemanha tem sido dramático. Como a OECD (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) reconheceu em 2008 (baseando-se em dados até 2005): “Desde 2000 a desigualdade de renda e a pobreza estão crescendo mais rapidamente na Alemanha que em qualquer outro país da OECD”. E mesmo durante a ascensão de 2005-2008, o coeficiente Gini, que sobe com maiores desigualdades, aumentou 4 pontos na Alemanha, enquanto diminuiu 2 pontos na França e na Itália, e permaneceu constante na Espanha. Esse aumento nas desigualdades foi, parcialmente, devido à desregulamentação do mercado de trabalho, o qual levou à estagnação ou declínio nos salários reais, mesmo durante o boom de 2005-2008. Além disso, a elevação das desigualdades também foi promovida pelo cerceamento dos benefícios sociais e gastos públicos no geral. Desta forma, a Alemanha é o único país (além do Japão) do qual a Comissão Europeia tem dados disponíveis, onde os gastos públicos e a inflação (ajustada) diminuíram entre 1998 e 2007 (na zona do euro como um todo, incluindo Alemanha, aumentou por volta de 14% no mesmo período). Este estado de exceção foi resultado, principalmente, de uma combinação de cortes substanciais de impostos beneficiando empresas e ricos proprietários, e a vontade de equilibrar o orçamento e reduzir dívidas públicas.

Estagnação de salários

Os desenvolvimentos mencionados anteriormente estão claramente ligados a uma nítida divisão entre a lenta economia doméstica e o dinâmico setor de exportação alemão. De 1999 a 2007, o país era o único, dentro da zona do euro, onde as exportações líquidas contribuíram mais com o crescimento do PIB que a economia doméstica. O consumo privado foi comprimido, estagnando-se o real rendimento de massa pela crescente sensação de insegurança, como resultado do mercado de trabalho, e pelas reformas estatais dos benefícios sociais. A contribuição do crescimento da demanda do governo foi também a mais fraca de todos os membros da zona do euro.

Por outro lado, a estagnação dos salários fez com que as exportações alemãs ficassem ainda mais competitivas. Numa unidade monetária, mudanças na competitividade do preço internacional não podem mais ser corrigidas por meio de mudanças nas taxas de câmbio nominais. Em vez disso, quando as mudanças no custo unitário de trabalho (intimamente ligadas às taxas de inflação) diferem entre os países-membros, alguns países ganham competitividade com relação aos outros. Ora, entre 1999 e 2007, os custos unitários de trabalho aumentaram menos de 2% na Alemanha, mas entre 28% e 31% na Grécia, Irlanda, Portugal e Espanha. Isso significa dizer que não apenas todos os outros países perderam em termos de competitividade de preço com relação à Alemanha, mas que também, como resultado da inflação menor, as taxas de juros têm sido mais altas neste país. Isso contribuiu mais tarde para o enfraquecimento da demanda doméstica. Mesmo na França, onde o custo unitário de trabalho aumentou 17% de 1999 a 2007 (quase alinhado com o alvo de inflação do European Central Bank), a balança externa passou de excedente em 1999-2003, a deficitária a partir de 2004.

Deve-se notar também que a atual crise do euro e os ataques especulativos contra os Pigs têm mais a ver com os desequilíbrios comerciais que com a dívida estatal. Por exemplo, a Espanha, que é de longe o maior dos Pigs, nunca (de 1999 a 2007) violou o limite de 3% de Maastricht, usado como referência pelo European Stability and Growth Pact (SGP – Estabilidade Europeia e Pacto de Crescimento). Ao passo que a Alemanha violou este limite de 2002 a 2005. Além disso, a dívida estatal diminuiu, como porcentagem do PIB, de 62% para 36% na Espanha (na Alemanha cresceu de 61% para 65%), e o governo tem até mesmo tido superávits de 2005 a 2007. Mesmo assim, a despesa privada tem sistematicamente excedido a receita; assim, o setor privado (pessoas físicas e jurídicas) persistentemente tem experimentado altos déficits de até 12% do PIB. Como o total da balança financeira do governo e do setor privado foi negativo, a dívida externa aumentou significativamente. E quando a bolha estourou e o desemprego disparou a partir de 2008, o governo teve que intervir e manipular grande parte da dívida privada e administrar os déficits para estabilizar a economia. De repente, a “validade do crédito” do Estado começou a ser questionada. A situação, de alguma forma, era similar na Irlanda, onde a dívida pública caiu de 49% para 25% do PIB entre 1999 e 2007, mas a dívida privada aumentou sensivelmente. Enquanto isso, na Grécia e Portugal, governos e (mais ainda) setor privado sofriam déficits persistentes. De maneira geral, a lição a ser aprendida a partir disso é que são os déficits comerciais ou dívida externa, e não a dívida pública, que podem minar o poder de crédito de um país e fazer dele alvo de especulação financeira.

Quase sem forças

Diante desse quadro, é totalmente incompreensível quando os líderes políticos alemães hoje se vangloriam pelo sucesso de suas reformas estruturais que fizeram o país parecer mais robusto e sólido fiscalmente aos olhos dos mercados financeiros. Na verdade, o que atualmente é percebido como a força da economia alemã é claramente o equivalente da vitória de Pirro. Lembrando que, segundo Plutarco, após uma vitória de suas tropas contra os romanos, o rei Pirro de Epirus respondeu a um elogio dizendo que “mais uma vitória como essa e ele estaria totalmente destruído”, já que ele havia perdido grande parte de suas forças e quase todos os seus amigos e principais comandantes.

Algo muito similar poderia ser dito sobre a Alemanha de hoje: ela pode não ter perdido suas forças, mas a batalha da divisão global do trabalho foi ganha a um custo social altíssimo, além de um aumento excepcional das desigualdades da pobreza e do declínio das rendas reais até mesmo na classe média. Sem mencionar o aumento das tensões políticas na Europa, que também parecem sugerir que países que deveriam ser aliados da Alemanha estão agora sofrendo as consequências de sua estratégia de crescimento neomercantislista, tornando-se cada vez mais céticos sobre o compromisso alemão de planejar uma Europa mais solidária. Claramente, como a zona do euro em geral não tem experimentado (nem pode, nem deveria!) superávits comerciais, a estratégia alemã orientada para as exportações só consegue funcionar enquanto os outros países do euro continuam a sofrer com suas dívidas externas...

Portanto, os alemães devem entender que não faz sentido, nem mesmo numa visão estreita de autointeresse nacional, ficar celebrando primeiro o título de “campeã mundial de exportações”, e depois reclamar sobre os custos das perdas de capital privado ou sobre as ajudas emergenciais do governo com relação aos importadores mergulhados em dívidas. Uma união monetária simplesmente não funciona quando a grande parte de seus membros contribui tão pouco com a demanda geral.

Os sociais democratas começaram agora a se dar conta de seus erros do passado. Já na época do Deutschland-Plan de 2009, quando a “campeã de exportações” ainda estava sendo celebrada, sabia-se que o “calcanhar de Aquiles da força externa alemã é a sua fraca economia doméstica... Precisamos encontrar um melhor equilíbrio para fortalecer nossa economia doméstica. Para isso, necessitamos salários mais condizentes e uma melhor distribuição de renda, bem como um investimento público estável”. Mesmo assim, esse reconhecimento chegou um pouco tarde, já que os sociais democratas não estão mais no poder. E o governo conservador liberal de Merkel não parece concordar com esse novo pensamento do SPD, agora muito debatido no partido.

A mentalidade ultrapassada do governo Merkel pode ser resumida por esta passagem contada pelo ministro da Economia, Wolfgang Schäuble: “Sou um torcedor do Bayern de Munique. Durante a fase da Liga dos Campeões, pensei que se o Lyon pudesse jogar só um pouco menos, o Bayern poderia se dar melhor. Mas esse não é o fundamento para se construir um sistema competitivo” (Financial Times, 24 de março de 2010). Depois de todas as guerras comerciais e conflitos políticos pelos quais a Europa passou no século passado, é muito irritante que um ministro alemão, abertamente, pareça sugerir que obter um alto superávit de exportação a níveis medíocres de crescimento e grandes desigualdades de renda seja comparável a uma vitória numa partida de futebol. Ele deveria lembrar a lição de Pirro: mais uma vitória como essa e a zona do euro (juntamente com o modelo de crescimento alemão) pode ser totalmente destruída.

Till van Treeck é economista do Institut für Makroökonomie und Konjunkturforschung (IMK), ligado à Fundação Hans Böckler.

Le Monde Diplomatique Brasil

O desafio de construir uma Europa social


O desafio de construir uma Europa social
Em busca de mão-de-obra mais barata e condições fiscais favoráveis, as empresas europeias estão se mudando cada vez mais para o leste. Com o aval da Corte de Justiça das Comunidades Europeias e em nome do livre mercado, elas seguem desrespeitando os direitos trabalhista
Anne-Cécile Robert

Jan Andersson, presidente da Comissão do Emprego e dos Assuntos So-ciais do Parlamento Europeu, continua estupefato. Entre novembro de 2007 e junho de 2008, ele assistiu a Corte de Justiça das Comunidades Europeias (CJCE) concluir quatro processos declarando a primazia dos direitos das empresas sobre os dos trabalhadores. Socialista sueco, Andersson não esperava interpretações semelhantes das leis europeias.

Em um dos casos, um empresário finlandês queria deslocar seu ferry boat para um pavilhão na Estônia, a fim de escapar de uma convenção coletiva assinada em seu país de origem. Em outro, um sindicato sueco tentou impedir os trabalhos de uma empresa de construção e, assim, constranger um prestador de serviços letão a assinar uma convenção coletiva. No decreto Rüffert, por sua vez, uma sociedade polonesa instalada no estado alemão da Baixa Saxônia pagava remunerações inferiores ao salário mínimo local. Em todas essas disputas, o final foi o mesmo: a CJCE condenou as ações sindicais e pediu às autoridades públicas que limitassem as normas sociais impostas às empresas deslocadas. Para a Corte, o direito do trabalho e os movimentos de assalaria-dos não deveriam ser entraves “desproporcionais” à liberdade de estabelecimento das empresas e à livre prestação de serviços no mercado comum.

Em 22 de outubro de 2008, o Parlamento Europeu adotou, com base em um relatório de Andersson, uma “resolução legislativa” contradizendo abertamente a jurisprudência da CJCE. Fato raríssimo no universo fechado dessa instituição.

Para os deputados, as “liberdades econômicas não poderiam ser interpretadas de modo a conceder às empresas o direito de se livrar ou de contornar as leis e práticas nacionais no campo social” [1]. Eles afirmam que, contrariamente à visão restritiva dada pelos juízes, a diretiva de 16 de dezembro de 1996 sobre a transferência de trabalhadores [2] dentro do mercado comum estabelece parâmetros mínimos “mais favoráveis” aos empregados.

Ainda que não tenha caráter obrigatório, essa resolução representa uma pressão política sobre os Estados-membros da União Europeia (UE), aos quais os deputados exigem as medidas necessárias para o esclarecimento do direito comunitário. Ao explicitar uma questão de princípio – os direitos das empresas não têm primazia sobre os parceiros sociais –, o texto indica diretivas futuras. Aprovada por ampla maioria, a resolução conferiu ao Parlamento Europeu uma imagem de defensor da Europa social. Imagem esta reforçada em 6 de novembro de 2008, quando o órgão demonstrou sua oposição ao aumento da jornada de trabalho de 48 horas para 70 horas semanais [3]. Sindicatos e associações saudaram assim a “mensagem muito firme” [4] dos deputados.

Se a dimensão social dos textos que foram adotados pelo Parlamento não deixa nenhuma dúvida, os debates e as reações aos decretos da CJCE denunciam uma realidade mais contrastante. Ao se basear em artigos “históricos”, principalmente os do Tratado de Roma, que instituem a livre concorrência no mercado comum e estão presentes desde as origens – ao passo que as disposições sociais vieram tardiamente matizar seus efeitos [5]–, a CJCE levantou a lebre sobre a lógica da constituição europeia. Demonstrou também a fragilidade da posição institucional do Parlamento, assim como sua imaturidade política.

A socialista francesa Françoise Castex lembra que, quando de sua adoção em 1996, a diretiva sobre a transferência dos trabalhadores era apresentada como uma vantagem para os assalariados. Porém, os juízes fizeram disso um instrumento a serviço da liberdade das empresas. Para Andersson, “a Corte não seguiu as discussões parlamentares. Ela deveria se inspirar nas mudanças políticas, a fim de determinar a intenção do legislador”. Já Castex se mostra mais realista ao evocar uma “política do vazio jurídico” assumida pelos deputados, que deixaria grande margem de manobra para os juízes no âmbito dos tratados europeus estruturalmente liberais.

Até hoje, o poder da CJCE não parecia incomodar muito os deputados. “Quando a legislação e a vaga, os eleitos, principalmente os alemães e os ingleses, confiavam nos juízes para interpretá-la”, conta Castex. Mas após dois julgamentos que os afetaram diretamente, eles perceberam a fragilidade de seus sistemas de negociações coletivas dentro do grande mercado interno e estão “perturbados” pelos decretos da CJCE, que também envolveram os escandinavos. E essa jurisprudência acontece exatamente quando os planos sociais se multiplicam na UE e a crise econômica anuncia novos conflitos entre sindicatos e empresas.

A verdade é que o Parlamento tornou-se a instituição fraca do sistema comunitário. Ele mesmo não propõe todas as diretivas e regras: tem de negociá-las com a Comissão Europeia, que detém a iniciativa das leis. Se não ocorrer um acordo entre as duas instituições, os deputados só podem rejeitar o texto, sem impor outro. Portanto, observa Françoise Castex, não apenas a Comissão propõe leis ultraliberais, mas “quando o Parlamento se opõe a elas ou adota emendas importantes demais, a Comissão volta à carga alguns meses mais tarde com um texto no mesmo sentido”.

Mais esforços do parlamentoNo entanto, para Andersson, não se deve negligenciar o poder de negociação adquirido pelo Parlamento. “Tudo é questão de política”, considera. “É um meio de pressão real” que deve ser, segundo ele, apoiado por uma ação exercida em cada país sobre os governos. Entretanto, para ter justificativa, tal reforço implicaria numa vontade real da parte desta instituição, de se expressar mais fortemente sobre as questões fundamentais. E até agora, pelo menos por ocasião dos de-bates sobre os decretos da CJCE, o Parlamento demonstrou mais seu espírito de consenso que sua vontade de funcionar como uma instância política representativa. Como acontece com frequência, a oposição entre direita e esquerda praticamente não entrou em jogo.

De acordo com Pervenche Béres, deputada socialista francesa, “a linha de separação entre os partidos flutua em função dos assuntos tratados. Sobre as questões de sociedade, existem as alianças da Esquerda Unitária Europeia / Esquerda Verde Nórdica (GUE/NGL), que reúne os partidos de esquerda com o grupo dos Verdes; a Aliança Livre Europeia (ALE) e o Grupo dos Liberais (ALDE). Com eles, o Partido Socialista Europeu (PSE) desempenha seu papel de oposição face à direita majoritária. Entretanto, essas articulações nem sempre permitem ao PSE se constituir maioria: quando ele trabalha sobre a legislação, muitas vezes pro-cura entrar em acordo com o democrata-cristão Partido Popular Europeu (PPE)”. [6]

A leitura à direita e à esquerda das decisões do Parlamento parece ilusória, e a constante recomposição dos grupos, a cada eleição, mostra que não há distinção ideológica clara.

Típico desse espírito de “compromisso”, a resolução “antidumping social” de 22 de outubro “se felicita pelo Tratado de Lisboa”, que retoma, no entanto, artigos do Tratado de Roma sobre os quais a CJCE se baseou para estabelecer uma hierarquia entre os direitos das empresas e os dos assalariados. Assim, fica pouco nítido o suposto posicionamento do Parlamento, de “escudo” dos direitos sociais.

Aliás, o entusiasmo dos deputados pelo Tratado de Lisboa é tal que eles fazem deste um dos fundamentos de sua resolução, mes-mo antes de ele entrar em vigor. Um desrespeito ao direito e à democracia, algo costumeiro para a Comissão de Bruxelas e para a própria CJCE. De fato, como observa a especialista em ciências políticas Gersende Mayo, “as lógicas de voto podem corresponder a diversas divisões, às vezes pouco decifráveis: eurófilos contra eurocéticos, preferência nacional, pequenos grupos contra grandes e até mesmo remanescentes da di-visão esquerda e direita”. [7]

Para Françoise Castex, se o Parlamento é “uma instituição imatura”, acontecimentos recentes como os decretos da CJCE e a crise econômica poderiam contribuir para sua afirmação como instância representativa, uma necessidade óbvia dado que as taxas de abstenção vêm crescendo a cada eleição. [8]

As recentes tomadas de posição sociais dos deputados têm também razões conjunturais. Depois do “não” holandês e francês, em 2005, ao projeto de Constituição Europeia, e do irlandês em 2008, a UE se encontra confrontada com uma “crise de legitimidade”. Precisa restaurar sua imagem sem com isso colocar em questão os equilíbrios políticos adquiridos nos últimos 50 anos. Assim um dos argumentos empregados para fazer votar a resolução antidumping social foi que os decretos da CJCE eram utilizados para desacreditar o Tratado de Lisboa.

Mito e realidade
“Existe uma convergência de interes-ses para que os governos, o Parlamento e a Comissão concebam projetos visando valorizar a ação da Europa face à crise e às dificuldades sociais. A Europa está consubstancialmente ligada ao liberalismo. Como ela é fruto da autonomização das elites, mas o sufrágio universal ainda existe, os dirigentes europeus são forçados a parodiar ‘a Europa social’ para se legitimar... É a tensão permanente entre o ‘mito Europa’ e sua realidade”, analisa o cientista político Gaël Brustier.

É fato que os governos têm apoiado o aumento dos poderes do Parlamento. [9] Mas quando da negociação do tratado constitucional pela Convenção presidida por Valery Giscard d’Estaing, em 2004, os deputados trabalharam de acordo com seus Estados-membros e foram apoiados por seus governos até o final, mesmo depois da rejeição dos franceses e holandeses. As-sim, embora se reúnam em grupos políticos, os eleitos continuam a se agrupar por nacionalidades, e não é raro que, antes de cada sessão, os governos venham expor aos deputados de seu país a política que eles devem adotar. [10]

Se isso pode ser legítimo levando em conta a importância de preservar o quadro do aparelho de Estado na Europa – como a crise financeira veio demonstrar –, também relativiza a ideia de que o Parlamento encarnaria a emergência de um “povo europeu” em nome do qual ele poderia se tornar um “legislador federal” da União.


[1] Resolução legislativa do Parlamento Europeu sobre os desafios para as convençôes coletivas na União Européia (2008/2085 (INI)), P6_TA (2008) 0513, Estrasburgo, 22 de outubro de 2008.

[2] Diretiva 96/71/CE do Parlamento e do Conselho de 16 de dezembro de 1996. JO L 18 de 21 de janeiro de 1997, página 1.

[3] Ver, no site do Parlamento Europeu, “Revisão da diretiva tempo de trabalho: état des lieux”, 8 de dezembro de 2008.www.europarl.eu/news/expert/background_ page/048-44003-343-12-50-908-20081208BKG44002-08-12-2008-false/default_fr.htm

[4] Ver, por exemplo, o comunicado da Confederação Europeia dos Sindicatos, “A Europa vai bem”, 17 de dezembro de 2008. www.etuc.org/a/5675 ou Associação para a taxação das transações financeiras para a ajuda aos cida-dãos (Attac), “Diretiva sobre o tempo de trabalho: o Parla-mento Europeu reagiu”, 22 de dezembro de 2008. www.france.attac.org/spip.php?article9368

[5] Ver Corinne Gobin, Une Europe sociale en trompe-l’oeil, Le Monde Diplomatique, novembro de 1997.

[6] Entrevista concedida em seu próprio site: http://perven-che-beres.fr

[7] Gersende Mayo, A dimensão europeia dos grupos políticos do Parlamento Europeu, Universidade Paris 1, 4 de novembro de 2005.

[8] Quando das últimas eleições europeias de 2004, a participação global foi de 44,6%, ou seja, um recuo de cerca de 5 pontos em relação a 1999. Foi o pior resultado desde 1979, data da primeira eleição do Parlamento, em sufrágio universal direto.

[9] Ler Une Europe des élites? Réflexions sur la fracture dé-mocratique de l’Union européenne, sob direção de Paul Magnette e Olivier Costa, Editions de l’Université de Bruxelles, 2007.

[10] Observa-se também, desde o Tratado de Amsterdã em 1997, um reconhecimento da importância dos Parlamen-tos nacionais que são representados na Conferência dos órgãos especializados em assuntos europeus. Se eles não3têm poder de decisão, o Tratado de Lisboa lhes permitia – segundo um processo muito complexo – contestar uma decisão europeia no que diz respeito ao princípio de subsí-dios. Uma concorrência para o Parlamento Europeu?

Le Monde Diplomatique

UE recebe a "leprosa da Europa" em seu meio


UE recebe a "leprosa da Europa" em seu meio
Walter MayrDesde 19 de dezembro, os sérvios podem ingressar na União Européia sem visto. Contudo, a nova liberdade de viajar gera temores que imigrantes ilegais usarão o país, que já faz parte de uma rota comum de tráfico humano, como trampolim para a UE.

O marco de fronteira 501 separa a Sérvia da União Européia, ou da "Europa", como dizem as pessoas daqui. As luzes da aldeia húngara de Röszke piscam ali perto. Do lado sérvio, as botas de Aleksandar Jelenkovic fazem barulho enquanto caminha pela neve congelada.

Jelenkovic, policial da força de fronteira de Belgrado que faz patrulha noturna aqui, viu suas responsabilidades mudarem a partir de meia noite, quando as novas regras entraram em vigor, permitindo que cidadãos da Sérvia, Macedônia e Montenegro entrem na "Europa" sem visto. O presente diplomático da UE aos moradores dos Bálcãs ocidentais que detêm passaportes à prova de fraude chegou bem a tempo das festividades ortodoxas de São Nicolau.

"Nicolau é o patrono dos viajantes, e meu filho, nascido há quatro anos hoje, recebeu este nome", diz Jelenkovic. O guarda de fronteira tem 27 anos e nunca deixou o território da antiga Iugoslávia. "Para minha geração, viajar era virtualmente impossível até hoje", diz.

Desde que o ex-presidente iugoslavo Slodoban Milosevic deu início às guerras iugoslavas nos anos 90, a Sérvia vem sendo tratada como a "leprosa" da Europa, submetida a sanções, bombardeada pela Otan e separada da Hungria, România e Bulgária pela fronteira externa da UE. Por esta razão, diz o primeiro-ministro vice Bozidar Djelic, a suspensão dos requerimentos de visto é comparável à "queda da Bastilha" para seu povo. Em um discurso na fronteira no dia 19 de dezembro, o ministro de relações exteriores Vuk Jeremic falou do atraso em se fazer justiça, dizendo: "Finalmente, as mesmas regras que se aplicam aos outros se aplicam a nós".

Suas palavras carregam o excesso de confiança e orgulho ferido que frequentemente se ouve dos diplomatas de Belgrado. Na verdade, "as mesmas regras" não se aplicam a todos na periferia da UE. Cidadãos da Bósnia-Herzegovina, Albânia e da ex-província sérvia de Kosovo, assim como da Ucrânia e Belarus, continuam sofrendo as restrições de visita aos países da UE.

Tentando a sorteOs guardas do Ministério do Interior que patrulham a fronteira norte da Sérvia vivenciam as consequências dessas restrições todos os dias. Muitas das pessoas que precisam de visto para entrar em território da UE tentam a sorte nas fronteiras rurais, a pé, preferencialmente sob a cobertura da noite.

Depois de retirar seu exército da fronteira de 627 quilômetros de seu país com a Hungria e România há três anos, Belgrado enviou a polícia. Os homens, que recebem salários mensais de 350 euros (em torno de R$ 900), enfrentam uma batalha inglória. Em todo o país, há apenas cinco veículos com tração nas quatro rodas equipados com câmeras de infravermelho. Além disso, a quantidade de gasolina que os guardas da fronteira recebem para seus Ladas, que usam para ir da base de Martonos para o marco 501, só é suficiente para rodar 30 km por dia.

Essa restrição os força a patrulhar a fronteira a pé, no frio de gelar os ossos, armados de pistolas de nove milímetros e carregando aparelhos de visão noturna fabricados na Rússia. Eles andam ao longo da linha de trem que vai da aldeia sérvia de Horgos pela fronteira com a Hungria, por clareiras cortadas nas florestas dos dois lados do cruzamento bem iluminado na estrada para a cidade húngara de Szeged.

Pela fronteira com mapas do Google
"Os albaneses de Kosovo, em geral, chegam em grupos e são organizados. Eles têm facilitadores nos dois lados da fronteira", dizem os guardas sérvios. "Os afegãos, por outro lado, simplesmente digitam seu destino no Google Maps e começam a caminhar."

As imagens assustadoras transmitidas pelas câmeras de infravermelho para dois monitores no veículo de tração nas quatro rodas da equipe móvel de proteção de fronteira são dramáticas: um afegão solitário é visto caminhando para uma terra de ninguém com um guarda-chuva aberto - "como Mary Poppins", diz, zombando, o guarda de fronteira. Outras imagens mostram três albaneses de Kosovo que tentam desesperadamente se esconder deitados de barriga para baixo no meio do capim na altura da cintura antes de serem descobertos e levados.

Os sérvios documentaram 1.147 "apreensões" em sua fronteira Norte no período de janeiro a novembro de 2009. Seus colegas húngaros, melhor equipados, registraram 1.817 prisões de imigrantes ilegais até o final de agosto. Quando esses números são extrapolados para o ano todo, estima-se que 4.000 imigrantes terão sido impedidos de cruzar por esta seção da fronteira externa da UE. Levando em conta o número estimado de casos não identificados, entre 15.000 e 40.000 pessoas devem ter conseguido entrar na Europa Ocidental via Hungria nos últimos 12 meses.

Esperando a ajuda da sorte
Os policiais do posto de comando da patrulha da fronteira em Subotica conhecem sua clientela. Dos presos, 70% são albaneses de Kosovo, seguidos de afegãos, iraquianos e africanos sub-saarianos. A maior parte segue a rota clássica pelos Bálcãs, que vai da Turquia por Kosovo e Sérvia para o Ocidente. Para os imigrantes ilegais, a cidade de Subotica, localizada próxima à fronteira húngara, é um ponto de encontro e trampolim para a boa vida.

A cidade de 100.000 habitantes, que foi parte do Império Austro-Húngaro e conhecida como Maria-Theresiopolis até 1918, oferece uma rede interconectada de serviços para imigrantes ilegais do mundo todo. Do terminal de ônibus, onde os viajantes chegam de Belgrado e de outras cidades nos Bálcãs, taxistas levam seus passageiros à sua próxima parada, seja o último posto de gasolina antes da fronteira húngara ou instalações modestas como o Hotel Zimmer. Este oferece diárias por 10 euros (em torno de R$ 25) por pessoa, e foi a residência privada de um tal Sr.Varga, na rua Vladimir Danic.

Nesta noite, enquanto o portão da Europa está prestes a se abrir para cidadãos sérvios, jovens determinados a fazer o que for necessário para alcançar a UE estão sentados juntos em camas e sofás no Hotel Zimmer. Alguns colocaram seu destino nas mãos de traficantes, a quem pagaram largas somas de dinheiro, enquanto outros pretendem tentar a sorte sem ajuda. Independentemente do método, todos esperam um golpe de sorte.

Rota muito viajadaNo segundo andar, cinco jovens curdos magros de Sanliurfa, no sudeste da Turquia, estão agachados próximos uns aos outros comendo uma bisnaga de pão e uma panela de ovos mexidos. Seu líder, Mahmud, entrou na Alemanha pedindo asilo e depois administrou restaurantes com seus irmãos na cidade de Schwerin, no Norte do país. Durante uma viagem à Noruega, envolveu-se em uma briga e foi preso e deportado à Turquia.

Mahmud descreve a rota que leva da Turquia de volta para o território da UE. Começa no bazar do bairro de Aksaray em Istambul, onde um traficante albanês chamado Naim coleta 5.000 euros por pessoa (R$ 12.500). A viagem continua por ar até a capital albanesa de Tirana, depois de ônibus para Prístina em Kosovo. Dali, outro traficante leva sua turma para Rozaj, nas montanhas de Montenegro, de onde eles viajam de carro para a fronteira rural livre com a Sérvia e, em 20 minutos, andam para o país vizinho. Um guia local depois dá as direções para um ônibus para Belgrado e depois para Subotica.

Tudo tinha funcionado bem até ali, disse Mahmud. Mas agora, no 36º dia desde o início da viagem, ele e quatro outros curdos ainda estão na fronteira húngara, onde os guias albaneses os mantiveram trancados em um barraco até Mahmud notificar a polícia.

Foi então que ele e seus companheiros conheceram a prisão sérvia. Agora que foram liberados, suas permissões de estadia na Sérvia expiraram e o dinheiro que pegaram emprestado com seus familiares para a viagem na Turquia está acabando.

É obvio, olhando cada um dos homens no grupo, que estão ansiosos com a perspectiva de terem que voltar para casa sem terem conseguido chegar no Ocidente dourado. Só de pensar nisso, o mais jovem na sala começa a chorar. Os cinco têm pedaços de papel com endereços de contato para usarem quando chegarem a seus destinos. Dois vão para a Itália, um para a Alemanha, um para a França e um para a Polônia.

Apesar de nenhum deles dizê-lo abertamente, está claro que esses jovens curdos têm um plano: não vão deixar Subotica sem tentar a sorte em cruzar a fronteira ilegalmente.

Fazendo vista grossa
No andar térreo do Hotel Zimmer, Ljuzim e Sami ainda estão na cama, apesar de ser quase meio dia. Os dois albaneses de Kosovo, que estão em Subotica há dois dias, alegam estar procurando trabalho como motoristas de caminhão. O mais falante dos dois admite que trabalhou ilegalmente como eletricista na Itália. Ele diz que quando entrou no país no porto italiano de Bari, as autoridades fizeram vista grossa em troca de 1.400 euros (aproximadamente R$ 3.500).

E se não houver trabalho em Subotica para caminhoneiros que não falam uma palavra de sérvio? A Itália voltaria a ser uma opção? "Mi piacerebbe", diz o albanês baixinho. "Gostaria disso".

Em Subotica, fica abundantemente claro que as paredes externas da fortaleza da afluente Europa podem ser novamente movidas como resultado das novas regras de viagem. Mesmo as mudanças mais sutis na tectônica geopolítica podem abrir profundas valas no sudeste europeu. Enquanto isso, Belgrado também entrou com pedido para ingressar na UE na terça-feira passada.

Estratégia dissimulada
Os albaneses de Kosovo, que celebraram freneticamente sua independência da Sérvia em 2008, agora estão tentando se inscrever como moradores do enclave albanês em torno de Preservo, no Sul da Sérvia, na esperança de assim adquirir um passaporte sérvio e portanto viajar sem restrições dentro da UE. Muitos outros se dirigem diretamente para a fronteira húngara para tentar a sorte ali. Enquanto Belgrado se recusar a reconhecer a secessão de Kosovo, as autoridades sérvias não podem impedi-los disso; somente os húngaros podem deportá-los.

Até agora, as novas regras sobre a eliminação de exigência de visto somente foram aplicáveis para moradores da própria Sérvia. Mas é comum a diplomacia européia usar uma estratégia dissimulada em suas relações com os Bálcãs. Assim, Belgrado provavelmente será forçada a pagar o preço pela suspensão dos vistos no futuro próximo - na forma de controles mais rígidos em sua fronteira sudoeste.

A maior parte dos imigrantes ilegais vêm de Kosovo por essa fronteira. Para evitar isso, a Sérvia terá que construir uma barreira protetora. Quando tal barreira for erguida, a Sérvia estará a um passo de reconhecer a independência de Kosovo. Para os albaneses de Kosovo representaria o obstáculo final na tentativa de alcançar a liberdade de viagem.

Bljerim Rama não teve paciência de esperar tanto. Com sua esposa, duas crianças pequenas e 14 outros albaneses de Kosovo, lotaram um barco no lado sérvio do rio Tisza em outubro, com o lado húngaro à vista. O barco virou, e apenas Rama e seus filhos sobreviveram. Onze corpos, inclusive o da mulher dele, apareceram nos dois lados do rio. Quatro pessoas continuam desaparecidas.

Três barcos de madeira ainda estão amarrados na cena da tragédia, em uma seção tranquila da margem do Tisza cercada de árvores.

O local, apesar de parecer remoto, fica bem ao lado da Europa.

Tradução: Deborah Weinberg

Der Spiegel

Polônia, uma terra de sobreviventes

Por: Giovana Zilli
Publicado em 05/06/2009
(Foto: Giovana Zilli)

Se a Polônia é uma terra de sobreviventes, a cidade portuária de Gdansk é uma boa porta de entrada. A poucos minutos de caminhada da estação de trens há uma praça dedicada ao movimento Solidariedade e aos trabalhadores que morreram em confrontos com a polícia, nos anos 1970. Ali perto, a exposição Estradas para a Liberdade mostra em detalhes o que livros de História não contam.

No centro histórico, a gigantesca Kościół Mariacki (Igreja de Nossa Senhora) resistiu graças às reconstruções do pós-guerra. O relógio astronômico, restaurado, indica hora, mês, ano, fase da lua, signos do zodíaco e o santo do dia, como em 1470. No museu, pinturas e esculturas dividem espaço com fotos devastadoras da Segunda Guerra, retratos fiéis das cinzas das quais o país se reergueu.

Começar uma visita por Gdansk não é comum. É em cidades maiores e mais conhecidas – como a capital Varsóvia e a importante Cracóvia – que as coisas acontecem. Mas há voos lotados e filas de espera que vêm para o bem. Foi assim que cheguei a Gdansk e, de lá, embarquei num trem para Torun, cidade de Nicolau Copérnico. Ali a presença do Rio Vístula – que corta todo o país – é discreta.

O museu Kopernika, a poucos metros da margem, foi a casa onde, em 1473, nasceu o astrônomo, autor da teoria heliocêntrica, segundo a qual a Terra girava em torno do Sol, só publicada após sua morte, em 1543.

Desde tempos medievais, a pequena Torun é também famosa pelos biscoitos de gengibre. No centro antigo, a enorme edificação da prefeitura domina a praça com seus tijolos vermelhos, estátua de Copérnico à frente. De Torun segui para Poznan, uma das cidades mais antigas e coloridas da Polônia, onde todos os dias visitantes reúnem-se em frente ao museu para ver os bodes de lata colidindo a cabeça 12 vezes para anunciar o meio-dia.

Diz a lenda que no dia da inauguração do relógio da torre o cozinheiro deixou queimar a carne do banquete. Então roubou bodes nas vizinhanças para assar, mas eles escaparam e começaram a bater a cabeça na praça. Acabaram por se tornar o centro da festa daquele dia de 1551, virando monumento junto com o relógio.

Poznan é exemplo incrível de reconstrução da cultura polonesa. Seu centro histórico recebeu extrema atenção dos restauradores. Prédios medievais bem-preservados abrigam cafés, bares e restaurantes. Apesar de crescer a popularidade da cerveja, a vodca – pura, como manda o costume, ou com suco de frutas – ainda é preferência nacional.

A base da maioria dos pratos tradicionais é carne vermelha frita ou assada, com muito molho. Entre os favoritos: flackzi (tipo de buchada com vegetais e pimenta), golabki (folhas de repolho enroladas com carne moída) e golonka (pernil de porco com raiz-forte).

Com o ingresso da Polônia na União Europeia, em 2004, o turismo aumentou e ajudou a economia. Mas não o bastante. Atrás de melhores salários, mais de 600 mil polacos haviam deixado o país em direção ao Reino Unido. A ponto de faltar mão-de-obra para as indústrias que começaram a se instalar ali em busca de custos mais baixos de produção.

O governo polonês chegou a fazer campanha nos países britânicos para convencer seus emigrados sobre os novos empregos que estariam sendo gerados. Mas em bares, hotéis ou na construção civil da Inglaterra, Irlanda ou Escócia os poloneses ganhavam cinco vezes mais do que em sua terra.

A volta para casa começou a se intensificar neste ano, devido ao desemprego nos países ricos. Estima-se que mais da metade dos que haviam mudado para o Reino Unido tenha retornado. Mas não sem antes deixar como herança um pouco da sua cultura. Há vestígios dela no revigoramento do catolicismo, em itens incorporados às prateleiras dos supermercados e na súbita admiração pela energia perseverante, típica dos sobreviventes.

País sobreviventeEm 1795, a Polônia foi tomada pelos vizinhos Prússia, Áustria e Rússia. Apesar da resistência de seu povo, armado de foices contra os exércitos, foi dividida entre os invasores. A independência viria em 1918, depois da Primeira Guerra, por pouco tempo. Em 1939, o país foi invadido pelas tropas de Hitler. Quase um quinto de sua população foi dizimado durante a Segunda Guerra.

Até então, a Polônia tinha a maior comunidade judaica da Europa. Após a Guerra, o país passou a compor o bloco liderado pela ex-União Soviética. E seria o primeiro a colocá-lo na berlinda, em 1970, quando a repressão do governo a um protesto de trabalhadores contra a carestia deixou 44 mortos e mais de mil feridos em Gdansk.

O ano novo seguinte começou com uma greve que se espalhou por toda a região norte do país. A pressão foi tanta que os preços baixaram, o Partido Comunista trocou de comando e abriu diálogo com os trabalhadores.

A rejeição dos poloneses ao modelo totalitário stalinista acabaria sendo um dos pontos de partida para a derrocada do regime. Os polacos sempre foram fiéis às suas tradições e aos ideais de liberdade. Hoje o catolicismo é a religião de 90% da população. A Igreja preservou sua forte influência por ter se alinhado à identidade cultural do país.

Não foi à toa que, em 1978, o Vaticano nomeou Karol Wojtyla seu primeiro papa não-italiano em 450 anos. A visita de João Paulo II a sua terra natal no ano seguinte mexeu com a autoestima nacional e serviu de estopim à mobilização que colocaria Gdansk, o eletricista Lech Walesa e o sindicato Solidariedade na mídia mundial.

O inédito movimento não comunista rompeu as fronteiras e as estruturas do regime. Com a queda do Muro de Berlim e o enfraquecimento do comunismo, em 1990 os poloneses foram às urnas pela primeira vez para eleger Walesa. Mas seus cinco anos de governo foram decepcionantes e o Solidariedade perdeu expressão.
Revista Brasil

Os Dez anos do Euro: Passado de orgulho, Futuro de Incertezas


Patrícia Nasser de Carvalho & Elói Martins Senhoras
A criação de um espaço monetário único entre Estados soberanos e politicamente independentes é um fenômeno com poucos paralelos históricos, o que torna os dez anos de surgimento doeuro em um marco significativo nos processos de integração regional. O surgimento da moeda única chamada euro nada mais foi que um dos pilares econômicos dentro de uma trajetória maior de convergência e cooperação entre os países europeus desde o final da Segunda Grande Mundial no multifacetado processo de integração regional que hoje consubstancia a União Européia.

Firmado por chefes europeus de Estado em 1992, o Tratado de Maastricht transformou-se em um ponto decisivo para a estratégia de integração monetária através de um enfoque gradualista de transição rumo a uma zona monetária. Na primeira etapa, os países do Sistema Monetário Europeu (SME) aboliram todos os controles de capitais que ainda persistiam, e foi aumentado o grau de cooperação entre os Bancos Centrais. Na segunda etapa foi criado o Instituto Monetário Europeu (IME), precursor do Banco Central Europeu (BCE), que tinha por funções o reforço da cooperação dos Bancos Centrais Nacionais. Na terceira etapa foram fixados os câmbios entre as distintas moedas nacionais de forma irrevogável e o BCE começou a operar, emitindo a moeda européia, que se convertiria em uma divisa de pleno direito.

Em 1999, na terceira etapa, a transição para a moeda única foi realizada inicialmente por 11 países que a utilizavam apenas na contabilidade empresarial como uma divisa virtual de referência durante os dois primeiros anos.

O euro somente entrou em circulação enquanto papel moeda e moedas metálicas a partir de 2001, e desde então, a União Européia se expandiu por meio de adesões principalmente originadas da Europa Oriental. Dos 27 países-membros que aderiram ao processo de integração regional da União Européia, 16 aderiram ao euro, conformando assim uma zona monetária única.

A formação desta zona monetária única trouxe uma representativa inflexão geopolítica para o continente europeu desde a derrubada do Muro de Berlim e do fim da União Soviética, uma vez que estes eventos trouxeram a desmontagem de estruturas do passado, enquanto que o euro engendrou uma ousada aposta no futuro que têm sido importante junto a outras políticas para retirar o continente de uma situação de perda de dinamismo econômico desde os anos 1980 conhecida comoeuroesclerosis.

Passados dez anos desde o seu surgimento, a centralidade do euro como divisa nas relações econômicas internacionais atesta para um sucesso de empreendimento para sair da crise européia,que se via com cautela em 1999, pois de fato, a moeda comum tornou-se a expressão máxima do desdobramento histórico da cooperação européia, cujo processo gerou a superação de divergências e obstáculos de toda ordem à integração por mais de cinqüenta anos. Este desempenho afirmativo vai em desencontro às previsões dos economistas mais céticos, especialmente da Inglaterra e dos Estados Unidos à época do lançamento do euro, que não estavam convencidos de que a moeda única conseguiria vingar ou, mesmo se conseguisse, não perduraria.

Os dez anos do euro mostram que gradativamente os representantes dos Bancos Centrais dos Estados membros conseguiram superar os prognósticos mais sombrios, diagnóstico este que também contradiz a crença dos cidadãos europeus quanto ao futuro da participação do euro no sistema monetário internacional à época de seu lançamento.

O mérito da moeda única está ainda no fato de que, no início do século XXI, o euro se transformou rapidamente na segunda moeda de referência do Sistema Monetário Internacional e alcançou alto valor no mercado financeiro. Aos dez anos,o euro é capaz de proporcionar menores riscos aos investimentos e maior estabilidade monetária em função dos mecanismos de coordenação cambial nas economias européias em relação a períodos anteriores.

A despeito do sucesso relativo do euro ao longo destes 10 anos, a adesão de países com características distintas na União Européia complexifica a zona monetária do euro e por isso torna menos clara a capacidade amortecedora frente às crises, demonstrando que apesar dos sinais positivos da união monetária é necessário uma boa dose de sobriedade, por dois motivos.

Em primeiro lugar, se nominalmente no campo monetário-financeiro o êxito do euro é evidente, na economia real o seu desempenho se apresenta mais preocupante uma vez que a moeda única ainda não resultou em um crescimento econômico mais efetivo nos países que a adotaram. Por um lado, a valorização do eurotrouxe o fortalecimento no âmbito do Sistema Monetário Internacional nos últimos anos, embora, por outro, tenha provocado efeitos negativos para o comércio internacional de muitos Estados membros da União Européia, com grande impacto na demanda por exportações, componente importante para o crescimento de uma economia.

Em segundo lugar, a coincidência do aniversário dos dez anos do euro com os sinais da crise financeira internacional fez arrefecer as celebrações do aniversário de 10 anos uma vez que desde o colapso do banco norte-americano Lehman Brothers, em setembro de 2008, que transbordou as fronteiras norte-americanas, os países europeus passaram a sofrer com as tempestades financeiras, embora em menor medida do que a economia estadunidense.

A situação de incertezas em que se encontra a União Européia a “divide” em dois grupos nesse momento: de um lado, os Estados fundadores que questionam, cada vez mais, a eficiência do fragmentado sistema comunitário de regulação financeira e, até mesmo, se a associação ao euro realmente vale à pena, tendo em vista os riscos que oferecem as economias orientais. De outro, os países da Europa Central e Oriental, tradicionalmente mais instáveis, em degradante situação macroeconômica, tanto do setor pública, quanto do privado.

O decenário é um momento impar na história do euro pois ao demarcar uma celebração de sucesso atesta o que pode ser considerado o maior desafio desde o seu lançamento: enfrentar a crise internacional e, ao mesmo tempo, balancear necessidades tão distintas dos Estados membros, por meio de uma política monetária comum, semtornar o continente europeu em uma colcha de retalhos.

Patrícia Nasser de Carvalho é Economista e doutoranda pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP (patinasser@yahoo.com.br).

Elói Martins Senhoras é Professor assistente do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de Roraima – UFRR (eloi@dri.ufrr.br).

Meridiano 47

Os Dez anos do Euro: Passado de orgulho, Futuro de Incertezas


Os Dez anos do Euro: Passado de orgulho, Futuro de Incertezas
Patrícia Nasser de Carvalho & Elói Martins Senhoras
A criação de um espaço monetário único entre Estados soberanos e politicamente independentes é um fenômeno com poucos paralelos históricos, o que torna os dez anos de surgimento doeuro em um marco significativo nos processos de integração regional. O surgimento da moeda única chamada euro nada mais foi que um dos pilares econômicos dentro de uma trajetória maior de convergência e cooperação entre os países europeus desde o final da Segunda Grande Mundial no multifacetado processo de integração regional que hoje consubstancia a União Européia.

Firmado por chefes europeus de Estado em 1992, o Tratado de Maastricht transformou-se em um ponto decisivo para a estratégia de integração monetária através de um enfoque gradualista de transição rumo a uma zona monetária. Na primeira etapa, os países do Sistema Monetário Europeu (SME) aboliram todos os controles de capitais que ainda persistiam, e foi aumentado o grau de cooperação entre os Bancos Centrais. Na segunda etapa foi criado o Instituto Monetário Europeu (IME), precursor do Banco Central Europeu (BCE), que tinha por funções o reforço da cooperação dos Bancos Centrais Nacionais. Na terceira etapa foram fixados os câmbios entre as distintas moedas nacionais de forma irrevogável e o BCE começou a operar, emitindo a moeda européia, que se convertiria em uma divisa de pleno direito.

Em 1999, na terceira etapa, a transição para a moeda única foi realizada inicialmente por 11 países que a utilizavam apenas na contabilidade empresarial como uma divisa virtual de referência durante os dois primeiros anos.

O euro somente entrou em circulação enquanto papel moeda e moedas metálicas a partir de 2001, e desde então, a União Européia se expandiu por meio de adesões principalmente originadas da Europa Oriental. Dos 27 países-membros que aderiram ao processo de integração regional da União Européia, 16 aderiram ao euro, conformando assim uma zona monetária única.

A formação desta zona monetária única trouxe uma representativa inflexão geopolítica para o continente europeu desde a derrubada do Muro de Berlim e do fim da União Soviética, uma vez que estes eventos trouxeram a desmontagem de estruturas do passado, enquanto que o euro engendrou uma ousada aposta no futuro que têm sido importante junto a outras políticas para retirar o continente de uma situação de perda de dinamismo econômico desde os anos 1980 conhecida comoeuroesclerosis.

Passados dez anos desde o seu surgimento, a centralidade do euro como divisa nas relações econômicas internacionais atesta para um sucesso de empreendimento para sair da crise européia,que se via com cautela em 1999, pois de fato, a moeda comum tornou-se a expressão máxima do desdobramento histórico da cooperação européia, cujo processo gerou a superação de divergências e obstáculos de toda ordem à integração por mais de cinqüenta anos. Este desempenho afirmativo vai em desencontro às previsões dos economistas mais céticos, especialmente da Inglaterra e dos Estados Unidos à época do lançamento do euro, que não estavam convencidos de que a moeda única conseguiria vingar ou, mesmo se conseguisse, não perduraria.

Os dez anos do euro mostram que gradativamente os representantes dos Bancos Centrais dos Estados membros conseguiram superar os prognósticos mais sombrios, diagnóstico este que também contradiz a crença dos cidadãos europeus quanto ao futuro da participação do euro no sistema monetário internacional à época de seu lançamento.

O mérito da moeda única está ainda no fato de que, no início do século XXI, o euro se transformou rapidamente na segunda moeda de referência do Sistema Monetário Internacional e alcançou alto valor no mercado financeiro. Aos dez anos,o euro é capaz de proporcionar menores riscos aos investimentos e maior estabilidade monetária em função dos mecanismos de coordenação cambial nas economias européias em relação a períodos anteriores.

A despeito do sucesso relativo do euro ao longo destes 10 anos, a adesão de países com características distintas na União Européia complexifica a zona monetária do euro e por isso torna menos clara a capacidade amortecedora frente às crises, demonstrando que apesar dos sinais positivos da união monetária é necessário uma boa dose de sobriedade, por dois motivos.

Em primeiro lugar, se nominalmente no campo monetário-financeiro o êxito do euro é evidente, na economia real o seu desempenho se apresenta mais preocupante uma vez que a moeda única ainda não resultou em um crescimento econômico mais efetivo nos países que a adotaram. Por um lado, a valorização do eurotrouxe o fortalecimento no âmbito do Sistema Monetário Internacional nos últimos anos, embora, por outro, tenha provocado efeitos negativos para o comércio internacional de muitos Estados membros da União Européia, com grande impacto na demanda por exportações, componente importante para o crescimento de uma economia.

Em segundo lugar, a coincidência do aniversário dos dez anos do euro com os sinais da crise financeira internacional fez arrefecer as celebrações do aniversário de 10 anos uma vez que desde o colapso do banco norte-americano Lehman Brothers, em setembro de 2008, que transbordou as fronteiras norte-americanas, os países europeus passaram a sofrer com as tempestades financeiras, embora em menor medida do que a economia estadunidense.

A situação de incertezas em que se encontra a União Européia a “divide” em dois grupos nesse momento: de um lado, os Estados fundadores que questionam, cada vez mais, a eficiência do fragmentado sistema comunitário de regulação financeira e, até mesmo, se a associação ao euro realmente vale à pena, tendo em vista os riscos que oferecem as economias orientais. De outro, os países da Europa Central e Oriental, tradicionalmente mais instáveis, em degradante situação macroeconômica, tanto do setor pública, quanto do privado.

O decenário é um momento impar na história do euro pois ao demarcar uma celebração de sucesso atesta o que pode ser considerado o maior desafio desde o seu lançamento: enfrentar a crise internacional e, ao mesmo tempo, balancear necessidades tão distintas dos Estados membros, por meio de uma política monetária comum, semtornar o continente europeu em uma colcha de retalhos.

Patrícia Nasser de Carvalho é Economista e doutoranda pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP (patinasser@yahoo.com.br).

Elói Martins Senhoras é Professor assistente do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de Roraima – UFRR (eloi@dri.ufrr.br).

Boletim Meridiano 47

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