quarta-feira, 17 de julho de 2013

BLOCOS ECONOMICOS

As veias abertas do Paraguai


Monumento a Solano López,
em Assunção / Foto: Herbert Carvalho


País vizinho discute com o Brasil energia e compra de terras

HERBERT CARVALHONo bicentenário de sua independência, comemorado em 2011, o Paraguai amarga um ressentimento em relação aos demais sócios do Mercosul, que não consegue alcançar em matéria de superação da pobreza. Apesar de ter batido o recorde de crescimento econômico na região, com a impressionante expansão de 14,5% de seu produto interno bruto em 2010, apresentou no ano passado um PIB per capita de US$ 4,7 mil, muito inferior aos da Argentina (US$ 14,5 mil), do Uruguai (US$ 13,2 mil) e do Brasil (US$ 10,1 mil).

Esses três países, não por acaso, são os mesmos que se aliaram há quase 150 anos para mutilar o território e dizimar a população de uma nação que ousou ser igualitária, coesa e soberana num continente então marcado pelo escravismo, por lutas fratricidas e pela submissão a potências estrangeiras. A Guerra do Paraguai (1864-1870), como a chamam os vencedores, ou da Tríplice Aliança, no dizer dos vencidos – a mais atroz da história americana, considerada por muitos estudiosos como o primeiro genocídio dos tempos modernos (ver “A Tragédia Paraguaia”, Problemas Brasileiros nº 333) –, exterminou um quarto da população antes estimada em 800 mil habitantes. Destruída, principalmente pelas forças brasileiras comandadas pelo conde D’Eu, uma infraestrutura que contava com fundição de aço, ferrovia e telégrafo, restaram pequenos grupos de mulheres, crianças e anciãos espalhados por campos e bosques.

Restaurado o aparelho de Estado para legalizar o despojo do país – cuja dívida de guerra remanescente foi paga até a década de 1940 –, o Paraguai se envolveu 60 anos depois em novo conflito, desta vez com o vizinho do norte, a Bolívia. Ainda que vitorioso na Guerra do Chaco (1932-1935), o país sofreu enormes perdas humanas e econômicas, ingressando em período de golpes e lutas intestinas que desembocou em 1954 na ditadura de Alfredo Stroessner (1912-2006).

Esse militar, filho de pai alemão, faz pender para o Brasil a balança da secular disputa com a Argentina pela hegemonia geopolítica na bacia do Prata. Ao mesmo tempo, a fronteira com nosso país converteu-se na porta de entrada para produtos contrabandeados e falsificados, além de armas edrogas. Deposto em 1989, após 35 anos de torturas e assassinatos de opositores, refugiou-se em Brasília, sede do governo com o qual assinara, em 1973, o Tratado de Itaipu, considerado até hoje pelos paraguaios como altamente lesivo a seus interesses.

Bispo dos pobres

País que inaugurou o ciclo das ditaduras militares da segunda metade do século passado na América do Sul, o Paraguai foi o último a restaurar a democracia, mas sem alternância no poder. Em agosto de 2008, finalmente, o ex-bispo católico Fernando Lugo, apoiado em uma aliança de centro-esquerda, desalojou do governo o Partido Colorado, que respaldara a ditadura e mantivera-se ao longo de seis décadas, desde 1947, no comando férreo e indivisível da política nacional.

Embora sofra com a mesma desconfiança e má vontade da mídia e das elites locais, o presidente Lugo, ao contrário do que ocorre com os demais governantes de esquerda da região, não obteve o controle do Congresso, o que dificulta a tramitação e aprovação de muitos de seus projetos. Com maioria oposicionista, o Senado paraguaio bloqueia, por exemplo, há dois anos, a entrada da Venezuela como membro pleno do Mercosul, autorização já concedida pelos três outros legislativos do bloco. No final do ano passado, por iniciativa do presidente do Uruguai, José Mujica, os três governos passaram a fazer pressão sobre o Parlamento do parceiro recalcitrante para superar o impasse, o que levou o diário conservador ABC Color, o maior do país, a bradar que uma “nova Tríplice Aliança” estava se formando contra o Paraguai.

Como se as dificuldades políticas não bastassem, a popularidade de Fernando Lugo – angariada por suas ações em defesa dos camponeses sem-terra, que lhe valeram o título de “bispo dos pobres”, quando era o titular da diocese de San Pedro, uma das regiões mais carentes do país – despencou em 13 de abril de 2009. Nessa data ele reconheceu a paternidade de um filho, fruto de relacionamento mantido ao tempo em que ainda envergava o báculo e a mitra, fato que inicialmente tentou ocultar.

Um ano depois, médicos detectaram um câncer em sua virilha, tratado com cirurgia e sessões de quimioterapia realizadas no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. É considerado curado sem ter de passar, em nenhum momento de seu tratamento, a presidência ao vice Federico Franco, do Partido Liberal, opositor de várias decisões tomadas pelo governo.

Ainda em 2010, Lugo foi surpreendido pela atuação de um obscuro Exército do Povo Paraguaio (EPP), grupo estimado de 100 guerrilheiros que seriam apoiados pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Obteve do Congresso licença para a intervenção do exército nos departamentos (equivalentes a estados) de Presidente Hayes, San Pedro, Concepción, Amambay e Alto Paraguay (os três últimos na fronteira com o Brasil), mas o prazo dado de 30 dias expirou sem que a tarefa de neutralizar a insurgência tivesse êxito.

Soberania energética

Nesse contexto de grandes dificuldades internas e pessoais, o presidente Lugo se debruçou sobre os temas prioritários para tentar estabelecer uma nova etapa nas relações com o Brasil. A questão permanente, de maior segurança na fronteira, foi equacionada em acordo assinado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, prevendo a construção de onze bases da Polícia Federal brasileira nos pontos mais críticos. Além de inibir a ação das quadrilhas de traficantes de ambos os lados, o objetivo era combater a lavagem de dinheiro: estima-se que o narcotráfico movimente cerca de US$ 50 milhões por ano entre os dois países. Do ponto de vista brasileiro, também é vital controlar o fluxo transfronteiriço de gado, para evitar que a febre aftosa, endêmica no país vizinho, contamine nosso rebanho.

O problema mais urgente e difícil, porém, reside naquilo que Fernando Lugo, ainda quando candidato, reivindicou sob a designação genérica de “soberania energética”. Embaixo desse guarda-chuva abrigam-se as seguintes demandas: reajuste no preço da energia elétrica comprada pelo Brasil, permissão para o Paraguai vender a energia diretamente no mercado brasileiro sem a intermediação da estatal Eletrobras e também ofertá-la a outros países. Essas possibilidades são hoje vetadas pelo Tratado de Itaipu, o que anula a vantagem do Paraguai em ser o maior exportador mundial de energia elétrica.

Maravilha da engenharia à época de sua construção (entre 1974 e 1984) – com um lago de 1,35 mil km² e potência de 14 mil megawatts em vinte unidades geradoras –, a usina binacional de Itaipu fornece 20% da eletricidade consumida no Brasil e 90% da que o Paraguai usa. Essa última parcela representa, porém, apenas 5% do total produzido. Como a metade da energia de Itaipu pertence ao sócio, o Brasil compra o excedente, mas paga muito pouco por isso, de acordo com a voz unânime dos paraguaios.

Em reunião mantida com Lugo, no início de 2009, Lula recusou-se a rever o tratado, mas aceitou triplicar o preço pago, de US$ 120 milhões para US$ 360 milhões anuais – o Paraguai queria, inicialmente, o valor de US$ 800 milhões por ano. O reajuste encontrou, porém, forte resistência da mídia e dos partidos de oposição no Brasil, sendo aprovado apenas no ano passado, poucos dias antes de 14 de maio, data nacional em que os paraguaios celebraram o bicentenário. A sessão do Senado brasileiro que adotou a deliberação foi acompanhada ao vivo na capital Assunção, em clima de Copa do Mundo. As demais reivindicações paraguaias sobre Itaipu, entretanto, ficaram postergadas para 2023, quando vence o tratado assinado em 1973.

Carperos

Outro problema, agravado no final do ano passado e no início deste, tem origem relacionada com Itaipu. Agricultores que tiveram suas propriedades alagadas no extremo oeste do Paraná por causa da construção da usina não conseguiram, com a indenização recebida, comprar outras terras no país. Mas na margem do rio Paraná oposta a Foz do Iguaçu, no departamento do Alto Paraná – onde fica Ciudad del Este, a meca dos sacoleiros brasileiros –, as terras eram oito vezes mais baratas e podiam ser compradas, porque Stroessner anulara a lei que impedia a aquisição de glebas por estrangeiros na faixa de fronteira.

Resultado: ao longo de quatro décadas os brasiguaios, como passaram a ser chamados, ocuparam milhares de hectares dessas terras férteis que integram a mesopotâmia paraguaia – a região densamente habitada entre os rios Paraná e Paraguai. Transformaram o país em grande produtor e exportador mundial de soja, produto que responde por 55% de sua economia. São 250 mil só no Alto Paraná, liderados pelo “rei da soja”, Tranquilo Favero, que cultiva e arrenda para outros brasileiros mais de 400 mil hectares na região do rio Ñacunday, epicentro do conflito com os carperos, sem-terra paraguaios assim chamados por viverem sob cabanas de plástico, as “carpas”.

Inconformados com a lentidão da reforma agrária prometida por Lugo, os carperos vindos de todo o país acamparam nas imediações das valorizadas propriedades dos brasiguaios – hoje com preço de mercado de US$ 10 mil por hectare –, que ameaçam invadir. Alegam que as fazendas estão em áreas do governo ou foram obtidas mediante fraudes.

Para complicar ainda mais a questão, o Paraguai reeditou a lei restritiva da compra de terras por estrangeiros a menos de 50 km das fronteiras, à exceção das áreas adquiridas antes de sua promulgação. O presidente garante que os direitos dos brasiguaios serão respeitados, mas seu governo realiza um pente fino para determinar a legalidade ou não das propriedades. Num país onde terras públicas foram historicamente ocupadas por argentinos e brasileiros desde 1870, a questão fundiária, temperada pelo nacionalismo, adquire forte apelo emocional. O próprio Fernando Lugo chegou à presidência por meio do movimento popular camponês intitulado Tekojoja, expressão que significa “viver em igualdade” na língua guarani, idioma oficial ensinado nas escolas ao lado do espanhol.

Diante das incertezas, muitos brasiguaios estão voltando e se integrando ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST brasileiro. O Mato Grosso do Sul já tem 2 mil deles à beira de rodovias preparando-se para novas ocupações, como as realizadas no município de Itaquiraí. Para Favero, porém, regressar está fora de questão: “Se vamos perder tudo o que fizemos trabalhando em 30 anos, algo licitamente adquirido, preferimos morrer aqui”, diz o agricultor de 74 anos, a maior parte dos quais vividos em território paraguaio.

A hesitação e a ambiguidade das autoridades paraguaias em relação a essa questão se explica, embora não se justifique, pelos interesses econômicos e sobretudo políticos que envolve: por trás dela está o jogo da sucessão do presidente Lugo, que deixará o governo em 2013, pois a Constituição paraguaia veda a reeleição.

Guarânias e tereré

Único país bilíngue da América Latina, o Paraguai não tinha analfabetos na primeira metade do século 19 e ainda hoje seu índice nesse quesito, de 5,2% da população, é a metade do brasileiro (9,6%). Do total de 6,5 milhões de habitantes, 95% são mestiços, resultado da forte miscigenação entre colonizadores espanhóis e índios guaranis, que originalmente ocupavam o território mediterrâneo, hoje reduzido a pouco mais de 400 mil km², desprovido de litoral e totalmente dependente da navegação fluvial para realizar seu comércio exterior. No dizer do escritor paraguaio Augusto Roa Bastos, seu país é “uma ilha rodeada de terras”.

Conscientes de integrar uma nação pobre e pequena – mas que não se apequena diante de ninguém, como diz um slogan oficial –, os paraguaios são em geral receptivos aos brasileiros que em número cada vez maior escolhem Assunção como destino turístico, atraídos pelas compras e pelos cassinos. No Resort Yacht y Golf Club Paraguayo, distante 14 km do centro da cidade, o hóspede nem sequer precisa recorrer ao “portunhol” para ser atendido nas piscinas ou em qualquer um dos cinco luxuosos restaurantes, pois os funcionários compreendem e se expressam sem dificuldade em português.

Fator importante para atrair visitantes são os preços baixos nesta que é considerada uma das dez capitais mais baratas do mundo. Apesar dos muitos zeros na hora do câmbio – 1 real vale cerca de 2,4 mil guaranis, a moeda local –, o Paraguai é o país mais estável monetariamente do Mercosul e apresenta a menor inflação de todos, nos últimos 50 anos. Uma refeição para duas pessoas com bebida custa em torno de 70 mil guaranis: menos que R$ 30.

O brasileiro que percorre as arborizadas ruas de Assunção – as mesmas que foram ocupadas em 1869 pelas tropas comandadas pelo duque de Caxias – logo percebe que os agentes da invasão brasileira agora não são mais soldados, e sim empresas. Postos de gasolina da Petrobras, agências do Banco Itaú e cartazes da cerveja Brahma são onipresentes não apenas na capital, mas em todo o país.

As queixas que se ouvem contra essa espécie de imperialismo brasileiro, porém, não estão relacionadas com produtos ou serviços, e sim com o que se poderia chamar de apropriação indébita de símbolos da cultura paraguaia. Anibal Riveros, dono da loja de discos Blue Caps na Calle Palma – a rua comercial mais tradicional de Assunção –, reclama enquanto sorve um gole de tereré, um chimarrão de água gelada que os paraguaios consomem durante todo o dia para amenizar os rigores do calor: “Não existe nada mais paraguaio que o tereré, mas os brasileiros tiveram a coragem de registrá-lo como se fosse deles”, diz, aludindo a um decreto assinado em 2011 pelo governador de Mato Grosso do Sul, André Puccinelli (PMDB). Classificada como tereré de Ponta Porã – cidade no sul do estado, separada apenas por uma avenida da paraguaia Pedro Juan Caballero –, a bebida foi declarada patrimônio imaterial histórico e cultural de Mato Grosso do Sul, sem qualquer referência a sua verdadeira origem.

O pior, entretanto, foi quando o programa “Fantástico”, da Rede Globo, apresentou a música Meu Primeiro Amor como se fosse brasileira, sem mencionar que se trata de uma versão da guarânia Lejanía, composta em 1937 pelo paraguaio Herminio Giménez. A indignação ganhou as páginas dos jornais paraguaios, e o Núcleo Cultural Guarani Paraguay Teete, com sede em São Paulo, mobilizou a comunidade de 70 mil paraguaios residentes no Brasil para exigir a retificação, explicando que o ritmo guarânia nasceu em 1925, no Paraguai, pelas mãos do maestro José Asunción Flores. Na década de 1950, o brasileiro José Fortuna fez a versão livre de canções como Lejanía, de Giménez, e India, de Flores, que se tornaram grandes sucessos no Brasil sem que as origens e os verdadeiros autores fossem mencionados ou reconhecidos. Satisfeitos com a nota lida pelos apresentadores do programa global admitindo o erro e a omissão, os membros do Paraguay Teete (“Paraguai verdadeiro”, em guarani), fundado em 2009, prosseguem com sua proposta de mostrar aos brasileiros que seu país “não se resume a Ciudad del Este”. Defender a dignidade, a imagem e a história do Paraguai e de seus descendentes perante situações discriminatórias, tratos pejorativos, piadas e chacotas que a mídia do Brasil vem produzindo constantemente é o objetivo central do grupo.

Dos guaranis aos brasiguaios

1537 – Em acordo com caciques guaranis, o capitão espanhol Juan de Salazar funda na margem oriental do rio Paraguai o Porto e Casa Forte de Nossa Senhora de Assunção como “amparo e reparo” da conquista do sul do continente, cuja porção espanhola seria conhecida como Província Gigante das Índias.

1758 – Os jesuítas são expulsos após o Tratado de Madri entre Portugal e Espanha. Os guaranis abandonam as missões, onde por mais de um século haviam resistido aos ataques dos bandeirantes paulistas.

1811-1840 – Independência do Paraguai e governo de José Gaspar de Francia, conhecido como El Supremo, que fecha o país para evitar a influência de algumas características de seus vizinhos: o escravismo no Brasil e o extermínio de índios na Argentina.

1864-1870 – Guerra do Paraguai ou da Tríplice Aliança, orquestrada à sombra do Império Britânico por um quarto aliado, a libra esterlina, de acordo com o historiador e ex-senador paraguaio Domingo Laino.

1932-1935 – Guerra do Chaco, contra a Bolívia, estimulada por interesses petrolíferos dos EUA.

1954-1989 – A ditadura de Alfredo Stroessner deixa um saldo de 420 desaparecidos, segundo o relatório final da Comissão Verdade e Justiça do Paraguai.

2008-2013 – Após se eleger presidente para um mandato de cinco anos, Fernando Lugo, bispo católico vinculado à Teologia da Libertação, obtém do papa Bento XVI a dispensa de seus votos eclesiásticos.
Revista Problemas Brasileiros

MERCOSUL - 20 anos


indicado para exibição por Roberta Sumar
http://geoprofessora.blogspot.com/

Venezuela: um quase autorizado descaminho do MERCOSUL a vista

Venezuela: um quase autorizado descaminho do MERCOSUL a vista
por José Ribeiro Machado Neto
18/02/2010
O protocolo de adesão da Venezuela ao MERCOSUL foi assinado em 2006 e, desde então, a vizinha e conturbada nação vem envidando esforços políticos e diplomáticos para concretizar a sua entrada no bloco liderado pelo Brasil.

Em 29 outubro de 2009 a Comissão de Relações Exteriores do Senado brasileiro aprovou a entrada da Venezuela no MERCOSUL, decisão homologada em sessão plenária de 15 de dezembro do mesmo ano, faltando, apenas, portanto, para a sua concretização, a anuência do Parlamento paraguaio, que segundo observadores brasileiros, deverá seguir o exemplo dos parlamentos argentino e uruguaio. A aprovação facilitará assim, a extensão dos tentáculos do bloco dos limites caribenhos até a Patagônia, não obstante a existência de claras e conturbadas assimetrias dogmáticas, políticas e econômicas.

Com a admissão da Venezuela, o MERCOSUL passaria a contar com uma área comum de influência de aproximadamente 260 milhões de habitantes, sendo 190 milhões (73%) somente no Brasil; e com um PIB de US$ 1,0 trilhão (75% da América Latina), além de outros agregados econômicos expressivos, que garantiriam, ainda, algumas vantagens geoeconômicas e geoestratégicas apenas relativas. Entretanto, esses possíveis ganhos seriam contrabalançados por significativas e elevadas propensões marginais a consumir e a importar; taxas de desemprego superiores a 10% ao ano, a exemplo da própria Venezuela; uma inoportuna administração de dois câmbios com flutuações diferenciadas; e baixas taxas de investimento interno motivadas principalmente por uma constante ameaça de fuga de capitais externos.

Este quadro aumenta a instabilidade externa do regime econômico, mantido com altíssimos custos de oportunidade social que estão sendo transferidos unilateralmente às populações de menores níveis de renda, diminuindo assim, o poder de compra dos bolívares desses segmentos sociais, até agora sem quaisquer expectativas de contrapartidas.

Particularmente, o cenário da Venezuela não é um dos melhores da região, tendo em vista a degradação tarifária e o estreito comprometimento da manutenção de programas sociais com o curso das receitas petrolíferas em baixa – além das originárias das relações econômicas intra-bloco altamente diferenciadas das extra-bloco que dependem da estabilidade de preços dos principais mercados internacionais, mormente os inseridos na União Européia (UE), contrariamente a algumas teses mantenedoras do regime de Chávez.

A política de nacionalizações como meta do programa bolivariano não tem favorecido a necessária inversão interpretativa do coeficiente de GINI venezuelano, bem próximo de 50.0, considerado mundialmente um dos 30 piores em cenários de concentração de renda, pois seus efeitos já alcançam a maioria dos espaços sociais, limítrofes à linha da pobreza na América Latina.

A cada instante em que o clima político de deteriora internamente, o governo na maioria das vezes, responde com medidas radicais em determinados setores considerados estratégicos. O das comunicações têm sido o favorito e as empresas de rádio e TV, em contrapartida, unem-se e tendem a se transformar em novos partidos de oposição, aproximando-se da opinião pública internacional e, com isso, apresentar demonstrações de reação ao fechamento de emissoras, como também, novas tentativas de combate ao autoritarismo advindo de intenções de perpetuação de um monopólio estatal das comunicações.

Desta feita a oposição conta com um novo, sensível e esclarecido aliado que pode tornar-se numa força capaz de fazer renascer o espírito rebelde de 1968 que caminhou sobre o Sena, tornando aquele ano infindável, mesmo após a recente mudança secular. Os universitários venezuelanos estão nas ruas e os assassinatos não estão intimidando-os. Até agora as universidades Central de Venezuela, Caracas; de los Andes, Estado de Mérida; Católica Andrés Bello, Caracas; lideram o movimento que tende a se estender pelos demais Estados formando uma frente única com objetivos contundentes, tangíveis e acessíveis ao entendimento de todos os extratos sociais, à exceção dos trabalhadores das petrolíferas, cujos níveis salariais diferenciados da maioria da classe trabalhadora, absorvem a maior parte dos benefícios advindos do comércio exportador.

As conquistas ou externalidades advindas pela inserção do país no MERCOSUL certamente não diminuirão as tensões internas, pelo menos no curto prazo, pois essas dependem muito mais de impactos de políticas públicas. Além do mais, num segundo plano, de apaziguamentos políticos, o que não consta nas metas de Chávez, mesmo porque existe uma crescente fuga de ex-aliados para a oposição em crescimento. Uma contestação paralela, visível e clara tendência perpendicular à tese bolivariana de partido único apregoada há tempos por Chávez. A exemplo de Castro, transmitida em seus contumazes arroubos midiáticos que penalizam as mentes de diferentes gerações por mais de nove horas dominicais consecutivas para todos os umbrais venezuelanos.

A recente renúncia do vice-presidente da República, coronel Ramón Carrizález, também ministro da Defesa, nomeado por Chávez para ambas as funções teria o efeito multiplicador ao alcançar a esposa, a ministra do Meio Ambiente, Yubirí Ortega e o presidente do Banco da Venezuela, Eugenio Vázquez Orellana. Aos efeitos das renúncias no primeiro escalão político foi adicionado o descontentamento de jovens oficiais das forças armadas pela integração de oficiais cubanos às Forças Armadas Venezuelanas em um processo de decisão vertical, dando margem a novos e crescentes segmentos de interpretação da crise interna sob a ótica militar, cujos impactos já se fazem sentir na redução de ímpetos nos combates à oposição, que com isso, organiza-se e planeja ocupar espaços vazios dos partidos políticos progressivamente marginalizados.

O quadro político retrata a governabilidade confusa, descarrilada, sem bússola, mas não insolúvel para o contexto político latino-americano vigente, considerando-se que Caracas não alcançou ainda as fronteiras do isolamento e da institucionalização do desgoverno. A crise ainda não é global, pois se centra na esfera midiática contra os meios de comunicação privados, também oligopolizados, mas que não apóiam as tendências, ações e praticas governamentais, contrárias às praticadas nos mercados.

As dissociações políticas causadas pelos sucessivos embates entre as formas ou expressões de poder têm conduzido a Venezuela à fragmentação macroeconômica. Esta, por sua vez, trouxe desvios que vão desde os objetivos das políticas públicas à crescente perda da capacidade para importar, à fuga de recursos externos, ao desencadeamento da cadeia produtiva e, até à descabida utilização do poder militar para corrigir as falhas dos regimes de mercados. Neste caso, as leis que disciplinam os mercado tendem a ser substituídas por mecanismos unilaterais que são paradoxais às estruturas de preços, salários e contratos, que disciplinam a interação entre governo, agentes e mercados.

Produção, comercialização, distribuição de ganhos e, inclusive, o relacionamento com outros Estados com objetivos múltiplos de integração e complementaridade econômica, bem como de ações de fortalecimento de alianças para o progresso social tornam-se comprometidos com o distanciamento da liberdade dos capitais e da mobilidade dos recursos produtivos disponíveis, diante da vigência do autoritarismo.

A comunicação estatal na Venezuela é um segmento deveras expressivo e atuante para as dimensões e extratos sócio-econômicos do país. Engloba atualmente 34 empresas de TV, 500 estações de rádios comunitárias, diversos jornais de circulação regional e nacional e pequenas agências de notícias espalhadas pelo território. Trata-se de um notório oligopólio estatal de comunicações capaz de concorrer com o oligopólio privado que vem atuando com regularidade como um partido oposicionista no espaço sua ausência oficial no Parlamento. Observa-se, portanto, um choque de concentrações de mercado de igual significação, porém, com intensidades diferentes, não obstante atuarem em um mesmo espaço com clientelas idênticas e fins também análogos, porém, com mecanismos diferenciados.

Os mecanismos utilizados pelo governo no conflito são a nacionalização, o confisco e o monopólio político que visa o fim dos partidos políticos rivais. Busca-se assim a hegemonia de partido único, representativo do Estado e da revolução que, ao ultrapassar as fronteiras midiáticas, é vista como uma metamorfose à la cubana. Mas, o que se vê, de fato, não é uma revolução contra o capitalismo ou contra qualquer outro sistema ou regimes de mercado, mas apenas uma revolução midiática contra o desmanche de conquistas parciais num quadro social instável, onde as possibilidades de retorno ou de correção de curso estão cada dia mais distantes da realidade atual.

Ainda que não sejam distintos os hemisférios político e econômico na crise venezuelana, governo e mercado disputam suas respectivas hegemonias; decretos e mecanismos de preços contrapõem-se em espaços diminutos e em momentos nada oportunos. As perdas não são recíprocas, mas o povo é o maior perdedor. Cada agente age à sua maneira. O Estado com o poder de polícia, a intimidação e tentativas de descaracterização das instituições nacionais. O mercado, com a escassez, aumento geral dos preços domésticos e queda do bem-estar geral. Em ambas as situações prevalece a identidade do agente responsável em disputas silenciosas, onde cada qual busca a liderança, independentemente de mecanismos e objetivos.

O Estado e o mercado são exclusivos. A exemplo do que ocorreu no Leste europeu, Estado não deve substituir o mercado e este não deve, ainda que de maneira temporária, assumir funções estatais, como se pretende na Venezuela, onde nem o Estado e nem o mercado têm perfis definidos. O que se vislumbra é um jogo de intervenções de agentes contra agentes e de agentes contra consumidores e, em alguns casos, com convocações das Forças Armadas para garantir o abastecimento interno. Isso, sem qualquer sombra de dúvida é um atestado de indefinição de regime político, totalmente aleatório e agressivo ao clima reinante no MERCOSUL. Por outro lado, um leitmotiv aos agentes internacionais redirecionarem seus capitais compensatórios para outras praças captadoras, com sérios prejuízos para os programas sociais em vigor, além da manutenção da atual infra-estrutura básica que, há tempos, já emite sinais de deterioração. Em resumo, são primárias as características bolivarianas.

O atual nível de deterioração político-econômica que caracteriza o Estado venezuelano o coloca num prisma indefinido: nem capitalista, nem socialista e ainda um tanto longe de ser considerado politicamente organizado para ser visto como detentor de instituições democráticas. Trata-se de um Estado híbrido, um mix de autoritarismo – dependente de relações de intercâmbio nem sempre favoráveis – e de instituições compostas de forças minoritárias, sem expressão política, ou seja, forças autárquicas que internamente se limitam – independentemente da representatividade – a sempre referendar um processo decisório unilateral. Essa esfera de poder, entretanto, quando contrariada, provoca mutações na imagem representativa do Estado, fazendo prevalecer sempre o que mais representa o autoritarismo político sem a devida contrapartida conciliadora no âmbito interno, ou diplomática, com ênfase, na ótica externa.

Estaria, de fato, o atual Estado venezuelano sob a governabilidade de Chávez apto para ingressar no MERCOSUL, mantendo-se, a exemplo dos demais parceiros, sob a esfera democrática? O bloco arcaria com a responsabilidade de manter em seus limites um regime não democrático, assimétrico e comprometedor das instituições livres e mantenedoras de decisões políticas comuns ao bloco, com possibilidades de rupturas? Tais questionamentos retratam um elenco coletivo de preocupações, mantidas pelos responsáveis pela trajetória, há tempos, assumida pelo MERCOSUL.

Numa visão estritamente política e racional, o problema não parece ser a Venezuela, mas sim, a governabilidade de Chávez que tende a diferenciar-se, cada vez mais, da dos demais parceiros, limitando os avanços já alcançados para a integração política, econômica do bloco. Em uma etapa posterior, porém não conclusiva – com uma possível anuência extra-bloco e participação majoritária do Brasil – a integração energética do bloco poderia se tornar em uma utopia, apenas adicional ao elenco bolivariano de idéias, cada vez menos contributivo à política latino-americana.

O Protocolo de Ushuaia, parte integrante do Tratado de Assunção (1991), que criou MERCOSUL, destaca que a plena vigência das instituições democráticas é condição essencial para o implementação das ações de integração do bloco. Em caso de descumprimento das cláusulas democráticas, um país pode sofrer retaliação. O que se pode observar atualmente, é que a Venezuela se apresenta como uma democracia formal, com um governo autoritário, o que torna a sua governabilidade além de dual, híbrida em termos de representatividade, no concerto internacional.

A inserção da Venezuela no MERCOSUL numa situação de normalidade democrática, o bloco poderia sair ganhando politicamente, pois se tornaria mais coeso, mais consistente, tendo em vista a extensão da identidade geopolítica entre os demais parceiros. Entretanto, a rivalidade entre a Venezuela e a Colômbia e os EUA, além do aliciamento da Bolívia e do Equador, poderiam neutralizar as demais vantagens naturais de coesão, ao serem vistas apenas como fortes possibilidades de aumento de influência de Chávez na região. Também, bases para novos cânones disciplinadores do relacionamento comercial na região, acima de tudo, contestatórios à política externa dos EUA.

Mantido o discurso antiamericano de Chávez, sua contrapartida poderia, além de prejudicar as relações do bloco com os EUA e áreas de influência, postergar o desejado acordo de livre comércio entre o MERCOSUL e a UE. Negociações multilaterais antecipadas – vistas como preparatórias – seriam propícias e oportunas nessa fase de adormecimento da ALCA (Aliança de Livre Comércio das Américas) e de letargia da ALBA (Aliança Bolivariana para as Américas) e UNASUL (União de Nações Sul-Americanas). Seus efeitos poderiam salvaguardar os países do MERCOSUL da forma concorrencial distinta entre as tendências desses blocos – capaz de restringir externalidades advindas do progresso técnico do comércio internacional, ainda que crescentes, dispersas na região.

A entrada da Venezuela no MERCOSUL – mantendo-se o clima ideológico apregoado por Chávez – poderia se tornar numa arena para novos confrontos dogmáticos que certamente poderiam conduzir os representantes a exacerbações substitutivas dos debates econômicos, com sérios prejuízos aos países-membros.

A posse de grandes reservas petrolíferas e a localização estratégica na Bacia Amazônica, além das da ampliação de possibilidades de integração política e geoeconômica da América Latina, poderiam, em situação regular de governabilidade, creditar à Venezuela uma séria contribuição ao MERCOSUL, mediante a aproximação de novas fronteiras naturais, da incorporação de novos espaços políticos e de mercado para os países que o integram.

Existe ainda a possibilidade da entrance ser utilizada como mecanismo de defesa da candidatura da Venezuela ao Conselho de Segurança da ONU, além de se tornar subsídio para a ALCA e ALBA, onde os horizontes não ultrapassam as fronteiras das limitações naturais e demonstram o encolhimento de perspectivas contributivas do novo parceiro, cujos projetos econômicos não vão além dos da sobrevivência política.

Em síntese pode-se admitir que o socialismo para o século XXI proposto por Chávez – que agora insiste em representar o papel de um connétable bolivarien du Sud – deverá ser transferido para outra centúria temporal, não obstante o alargamento político da Venezuela no concerto externo, porém, com paradigmas sob questionamentos de outras nações politicamente organizadas.

José Ribeiro Machado Neto é pesquisador colaborador e coordenador de extensão e ensino do Centro Integrado de Ordenamento Territorial (CIORD), da Universidade de Brasília – UnB (jrmn1789@gmail.com).

Boletim de Relações Internacionais da UNB
Maridiano 47

UE recebe a "leprosa da Europa" em seu meio


UE recebe a "leprosa da Europa" em seu meio
Walter MayrDesde 19 de dezembro, os sérvios podem ingressar na União Européia sem visto. Contudo, a nova liberdade de viajar gera temores que imigrantes ilegais usarão o país, que já faz parte de uma rota comum de tráfico humano, como trampolim para a UE.

O marco de fronteira 501 separa a Sérvia da União Européia, ou da "Europa", como dizem as pessoas daqui. As luzes da aldeia húngara de Röszke piscam ali perto. Do lado sérvio, as botas de Aleksandar Jelenkovic fazem barulho enquanto caminha pela neve congelada.

Jelenkovic, policial da força de fronteira de Belgrado que faz patrulha noturna aqui, viu suas responsabilidades mudarem a partir de meia noite, quando as novas regras entraram em vigor, permitindo que cidadãos da Sérvia, Macedônia e Montenegro entrem na "Europa" sem visto. O presente diplomático da UE aos moradores dos Bálcãs ocidentais que detêm passaportes à prova de fraude chegou bem a tempo das festividades ortodoxas de São Nicolau.

"Nicolau é o patrono dos viajantes, e meu filho, nascido há quatro anos hoje, recebeu este nome", diz Jelenkovic. O guarda de fronteira tem 27 anos e nunca deixou o território da antiga Iugoslávia. "Para minha geração, viajar era virtualmente impossível até hoje", diz.

Desde que o ex-presidente iugoslavo Slodoban Milosevic deu início às guerras iugoslavas nos anos 90, a Sérvia vem sendo tratada como a "leprosa" da Europa, submetida a sanções, bombardeada pela Otan e separada da Hungria, România e Bulgária pela fronteira externa da UE. Por esta razão, diz o primeiro-ministro vice Bozidar Djelic, a suspensão dos requerimentos de visto é comparável à "queda da Bastilha" para seu povo. Em um discurso na fronteira no dia 19 de dezembro, o ministro de relações exteriores Vuk Jeremic falou do atraso em se fazer justiça, dizendo: "Finalmente, as mesmas regras que se aplicam aos outros se aplicam a nós".

Suas palavras carregam o excesso de confiança e orgulho ferido que frequentemente se ouve dos diplomatas de Belgrado. Na verdade, "as mesmas regras" não se aplicam a todos na periferia da UE. Cidadãos da Bósnia-Herzegovina, Albânia e da ex-província sérvia de Kosovo, assim como da Ucrânia e Belarus, continuam sofrendo as restrições de visita aos países da UE.

Tentando a sorteOs guardas do Ministério do Interior que patrulham a fronteira norte da Sérvia vivenciam as consequências dessas restrições todos os dias. Muitas das pessoas que precisam de visto para entrar em território da UE tentam a sorte nas fronteiras rurais, a pé, preferencialmente sob a cobertura da noite.

Depois de retirar seu exército da fronteira de 627 quilômetros de seu país com a Hungria e România há três anos, Belgrado enviou a polícia. Os homens, que recebem salários mensais de 350 euros (em torno de R$ 900), enfrentam uma batalha inglória. Em todo o país, há apenas cinco veículos com tração nas quatro rodas equipados com câmeras de infravermelho. Além disso, a quantidade de gasolina que os guardas da fronteira recebem para seus Ladas, que usam para ir da base de Martonos para o marco 501, só é suficiente para rodar 30 km por dia.

Essa restrição os força a patrulhar a fronteira a pé, no frio de gelar os ossos, armados de pistolas de nove milímetros e carregando aparelhos de visão noturna fabricados na Rússia. Eles andam ao longo da linha de trem que vai da aldeia sérvia de Horgos pela fronteira com a Hungria, por clareiras cortadas nas florestas dos dois lados do cruzamento bem iluminado na estrada para a cidade húngara de Szeged.

Pela fronteira com mapas do Google
"Os albaneses de Kosovo, em geral, chegam em grupos e são organizados. Eles têm facilitadores nos dois lados da fronteira", dizem os guardas sérvios. "Os afegãos, por outro lado, simplesmente digitam seu destino no Google Maps e começam a caminhar."

As imagens assustadoras transmitidas pelas câmeras de infravermelho para dois monitores no veículo de tração nas quatro rodas da equipe móvel de proteção de fronteira são dramáticas: um afegão solitário é visto caminhando para uma terra de ninguém com um guarda-chuva aberto - "como Mary Poppins", diz, zombando, o guarda de fronteira. Outras imagens mostram três albaneses de Kosovo que tentam desesperadamente se esconder deitados de barriga para baixo no meio do capim na altura da cintura antes de serem descobertos e levados.

Os sérvios documentaram 1.147 "apreensões" em sua fronteira Norte no período de janeiro a novembro de 2009. Seus colegas húngaros, melhor equipados, registraram 1.817 prisões de imigrantes ilegais até o final de agosto. Quando esses números são extrapolados para o ano todo, estima-se que 4.000 imigrantes terão sido impedidos de cruzar por esta seção da fronteira externa da UE. Levando em conta o número estimado de casos não identificados, entre 15.000 e 40.000 pessoas devem ter conseguido entrar na Europa Ocidental via Hungria nos últimos 12 meses.

Esperando a ajuda da sorte
Os policiais do posto de comando da patrulha da fronteira em Subotica conhecem sua clientela. Dos presos, 70% são albaneses de Kosovo, seguidos de afegãos, iraquianos e africanos sub-saarianos. A maior parte segue a rota clássica pelos Bálcãs, que vai da Turquia por Kosovo e Sérvia para o Ocidente. Para os imigrantes ilegais, a cidade de Subotica, localizada próxima à fronteira húngara, é um ponto de encontro e trampolim para a boa vida.

A cidade de 100.000 habitantes, que foi parte do Império Austro-Húngaro e conhecida como Maria-Theresiopolis até 1918, oferece uma rede interconectada de serviços para imigrantes ilegais do mundo todo. Do terminal de ônibus, onde os viajantes chegam de Belgrado e de outras cidades nos Bálcãs, taxistas levam seus passageiros à sua próxima parada, seja o último posto de gasolina antes da fronteira húngara ou instalações modestas como o Hotel Zimmer. Este oferece diárias por 10 euros (em torno de R$ 25) por pessoa, e foi a residência privada de um tal Sr.Varga, na rua Vladimir Danic.

Nesta noite, enquanto o portão da Europa está prestes a se abrir para cidadãos sérvios, jovens determinados a fazer o que for necessário para alcançar a UE estão sentados juntos em camas e sofás no Hotel Zimmer. Alguns colocaram seu destino nas mãos de traficantes, a quem pagaram largas somas de dinheiro, enquanto outros pretendem tentar a sorte sem ajuda. Independentemente do método, todos esperam um golpe de sorte.

Rota muito viajadaNo segundo andar, cinco jovens curdos magros de Sanliurfa, no sudeste da Turquia, estão agachados próximos uns aos outros comendo uma bisnaga de pão e uma panela de ovos mexidos. Seu líder, Mahmud, entrou na Alemanha pedindo asilo e depois administrou restaurantes com seus irmãos na cidade de Schwerin, no Norte do país. Durante uma viagem à Noruega, envolveu-se em uma briga e foi preso e deportado à Turquia.

Mahmud descreve a rota que leva da Turquia de volta para o território da UE. Começa no bazar do bairro de Aksaray em Istambul, onde um traficante albanês chamado Naim coleta 5.000 euros por pessoa (R$ 12.500). A viagem continua por ar até a capital albanesa de Tirana, depois de ônibus para Prístina em Kosovo. Dali, outro traficante leva sua turma para Rozaj, nas montanhas de Montenegro, de onde eles viajam de carro para a fronteira rural livre com a Sérvia e, em 20 minutos, andam para o país vizinho. Um guia local depois dá as direções para um ônibus para Belgrado e depois para Subotica.

Tudo tinha funcionado bem até ali, disse Mahmud. Mas agora, no 36º dia desde o início da viagem, ele e quatro outros curdos ainda estão na fronteira húngara, onde os guias albaneses os mantiveram trancados em um barraco até Mahmud notificar a polícia.

Foi então que ele e seus companheiros conheceram a prisão sérvia. Agora que foram liberados, suas permissões de estadia na Sérvia expiraram e o dinheiro que pegaram emprestado com seus familiares para a viagem na Turquia está acabando.

É obvio, olhando cada um dos homens no grupo, que estão ansiosos com a perspectiva de terem que voltar para casa sem terem conseguido chegar no Ocidente dourado. Só de pensar nisso, o mais jovem na sala começa a chorar. Os cinco têm pedaços de papel com endereços de contato para usarem quando chegarem a seus destinos. Dois vão para a Itália, um para a Alemanha, um para a França e um para a Polônia.

Apesar de nenhum deles dizê-lo abertamente, está claro que esses jovens curdos têm um plano: não vão deixar Subotica sem tentar a sorte em cruzar a fronteira ilegalmente.

Fazendo vista grossa
No andar térreo do Hotel Zimmer, Ljuzim e Sami ainda estão na cama, apesar de ser quase meio dia. Os dois albaneses de Kosovo, que estão em Subotica há dois dias, alegam estar procurando trabalho como motoristas de caminhão. O mais falante dos dois admite que trabalhou ilegalmente como eletricista na Itália. Ele diz que quando entrou no país no porto italiano de Bari, as autoridades fizeram vista grossa em troca de 1.400 euros (aproximadamente R$ 3.500).

E se não houver trabalho em Subotica para caminhoneiros que não falam uma palavra de sérvio? A Itália voltaria a ser uma opção? "Mi piacerebbe", diz o albanês baixinho. "Gostaria disso".

Em Subotica, fica abundantemente claro que as paredes externas da fortaleza da afluente Europa podem ser novamente movidas como resultado das novas regras de viagem. Mesmo as mudanças mais sutis na tectônica geopolítica podem abrir profundas valas no sudeste europeu. Enquanto isso, Belgrado também entrou com pedido para ingressar na UE na terça-feira passada.

Estratégia dissimulada
Os albaneses de Kosovo, que celebraram freneticamente sua independência da Sérvia em 2008, agora estão tentando se inscrever como moradores do enclave albanês em torno de Preservo, no Sul da Sérvia, na esperança de assim adquirir um passaporte sérvio e portanto viajar sem restrições dentro da UE. Muitos outros se dirigem diretamente para a fronteira húngara para tentar a sorte ali. Enquanto Belgrado se recusar a reconhecer a secessão de Kosovo, as autoridades sérvias não podem impedi-los disso; somente os húngaros podem deportá-los.

Até agora, as novas regras sobre a eliminação de exigência de visto somente foram aplicáveis para moradores da própria Sérvia. Mas é comum a diplomacia européia usar uma estratégia dissimulada em suas relações com os Bálcãs. Assim, Belgrado provavelmente será forçada a pagar o preço pela suspensão dos vistos no futuro próximo - na forma de controles mais rígidos em sua fronteira sudoeste.

A maior parte dos imigrantes ilegais vêm de Kosovo por essa fronteira. Para evitar isso, a Sérvia terá que construir uma barreira protetora. Quando tal barreira for erguida, a Sérvia estará a um passo de reconhecer a independência de Kosovo. Para os albaneses de Kosovo representaria o obstáculo final na tentativa de alcançar a liberdade de viagem.

Bljerim Rama não teve paciência de esperar tanto. Com sua esposa, duas crianças pequenas e 14 outros albaneses de Kosovo, lotaram um barco no lado sérvio do rio Tisza em outubro, com o lado húngaro à vista. O barco virou, e apenas Rama e seus filhos sobreviveram. Onze corpos, inclusive o da mulher dele, apareceram nos dois lados do rio. Quatro pessoas continuam desaparecidas.

Três barcos de madeira ainda estão amarrados na cena da tragédia, em uma seção tranquila da margem do Tisza cercada de árvores.

O local, apesar de parecer remoto, fica bem ao lado da Europa.

Tradução: Deborah Weinberg

Der Spiegel

Os Dez anos do Euro: Passado de orgulho, Futuro de Incertezas


Os Dez anos do Euro: Passado de orgulho, Futuro de Incertezas
Patrícia Nasser de Carvalho & Elói Martins Senhoras
A criação de um espaço monetário único entre Estados soberanos e politicamente independentes é um fenômeno com poucos paralelos históricos, o que torna os dez anos de surgimento doeuro em um marco significativo nos processos de integração regional. O surgimento da moeda única chamada euro nada mais foi que um dos pilares econômicos dentro de uma trajetória maior de convergência e cooperação entre os países europeus desde o final da Segunda Grande Mundial no multifacetado processo de integração regional que hoje consubstancia a União Européia.

Firmado por chefes europeus de Estado em 1992, o Tratado de Maastricht transformou-se em um ponto decisivo para a estratégia de integração monetária através de um enfoque gradualista de transição rumo a uma zona monetária. Na primeira etapa, os países do Sistema Monetário Europeu (SME) aboliram todos os controles de capitais que ainda persistiam, e foi aumentado o grau de cooperação entre os Bancos Centrais. Na segunda etapa foi criado o Instituto Monetário Europeu (IME), precursor do Banco Central Europeu (BCE), que tinha por funções o reforço da cooperação dos Bancos Centrais Nacionais. Na terceira etapa foram fixados os câmbios entre as distintas moedas nacionais de forma irrevogável e o BCE começou a operar, emitindo a moeda européia, que se convertiria em uma divisa de pleno direito.

Em 1999, na terceira etapa, a transição para a moeda única foi realizada inicialmente por 11 países que a utilizavam apenas na contabilidade empresarial como uma divisa virtual de referência durante os dois primeiros anos.

O euro somente entrou em circulação enquanto papel moeda e moedas metálicas a partir de 2001, e desde então, a União Européia se expandiu por meio de adesões principalmente originadas da Europa Oriental. Dos 27 países-membros que aderiram ao processo de integração regional da União Européia, 16 aderiram ao euro, conformando assim uma zona monetária única.

A formação desta zona monetária única trouxe uma representativa inflexão geopolítica para o continente europeu desde a derrubada do Muro de Berlim e do fim da União Soviética, uma vez que estes eventos trouxeram a desmontagem de estruturas do passado, enquanto que o euro engendrou uma ousada aposta no futuro que têm sido importante junto a outras políticas para retirar o continente de uma situação de perda de dinamismo econômico desde os anos 1980 conhecida comoeuroesclerosis.

Passados dez anos desde o seu surgimento, a centralidade do euro como divisa nas relações econômicas internacionais atesta para um sucesso de empreendimento para sair da crise européia,que se via com cautela em 1999, pois de fato, a moeda comum tornou-se a expressão máxima do desdobramento histórico da cooperação européia, cujo processo gerou a superação de divergências e obstáculos de toda ordem à integração por mais de cinqüenta anos. Este desempenho afirmativo vai em desencontro às previsões dos economistas mais céticos, especialmente da Inglaterra e dos Estados Unidos à época do lançamento do euro, que não estavam convencidos de que a moeda única conseguiria vingar ou, mesmo se conseguisse, não perduraria.

Os dez anos do euro mostram que gradativamente os representantes dos Bancos Centrais dos Estados membros conseguiram superar os prognósticos mais sombrios, diagnóstico este que também contradiz a crença dos cidadãos europeus quanto ao futuro da participação do euro no sistema monetário internacional à época de seu lançamento.

O mérito da moeda única está ainda no fato de que, no início do século XXI, o euro se transformou rapidamente na segunda moeda de referência do Sistema Monetário Internacional e alcançou alto valor no mercado financeiro. Aos dez anos,o euro é capaz de proporcionar menores riscos aos investimentos e maior estabilidade monetária em função dos mecanismos de coordenação cambial nas economias européias em relação a períodos anteriores.

A despeito do sucesso relativo do euro ao longo destes 10 anos, a adesão de países com características distintas na União Européia complexifica a zona monetária do euro e por isso torna menos clara a capacidade amortecedora frente às crises, demonstrando que apesar dos sinais positivos da união monetária é necessário uma boa dose de sobriedade, por dois motivos.

Em primeiro lugar, se nominalmente no campo monetário-financeiro o êxito do euro é evidente, na economia real o seu desempenho se apresenta mais preocupante uma vez que a moeda única ainda não resultou em um crescimento econômico mais efetivo nos países que a adotaram. Por um lado, a valorização do eurotrouxe o fortalecimento no âmbito do Sistema Monetário Internacional nos últimos anos, embora, por outro, tenha provocado efeitos negativos para o comércio internacional de muitos Estados membros da União Européia, com grande impacto na demanda por exportações, componente importante para o crescimento de uma economia.

Em segundo lugar, a coincidência do aniversário dos dez anos do euro com os sinais da crise financeira internacional fez arrefecer as celebrações do aniversário de 10 anos uma vez que desde o colapso do banco norte-americano Lehman Brothers, em setembro de 2008, que transbordou as fronteiras norte-americanas, os países europeus passaram a sofrer com as tempestades financeiras, embora em menor medida do que a economia estadunidense.

A situação de incertezas em que se encontra a União Européia a “divide” em dois grupos nesse momento: de um lado, os Estados fundadores que questionam, cada vez mais, a eficiência do fragmentado sistema comunitário de regulação financeira e, até mesmo, se a associação ao euro realmente vale à pena, tendo em vista os riscos que oferecem as economias orientais. De outro, os países da Europa Central e Oriental, tradicionalmente mais instáveis, em degradante situação macroeconômica, tanto do setor pública, quanto do privado.

O decenário é um momento impar na história do euro pois ao demarcar uma celebração de sucesso atesta o que pode ser considerado o maior desafio desde o seu lançamento: enfrentar a crise internacional e, ao mesmo tempo, balancear necessidades tão distintas dos Estados membros, por meio de uma política monetária comum, semtornar o continente europeu em uma colcha de retalhos.

Patrícia Nasser de Carvalho é Economista e doutoranda pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP (patinasser@yahoo.com.br).

Elói Martins Senhoras é Professor assistente do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de Roraima – UFRR (eloi@dri.ufrr.br).

Boletim Meridiano 47

O Mercosul naufraga por boas razões


O Mercosul naufraga por boas razões
Escrito por Andres Malamud
01-Out-2008
O Mercosul tem duas faces: a do discurso oficial e a da política real. Enquanto o discurso é ideológico, a política é pragmática. Por esta razão, os governos dos quatro países-membros declaram o seu apoio à integração regional, mas as suas acções pouco fazem para a promover.

Esta duplicidade não é, contudo, um mero acaso, dado que a integração, que foi benéfica durante grande parte da década de 1990, já não o é. Os governos compreenderam este facto e agiram em consequência; no entanto, as palavras continuam a circular com a lógica do afecto e da popularidade, e não a da eficácia ou do realismo.

Quando a Argentina e o Brasil fortaleceram a sua reaproximação em 1985, os objectivos eram a consolidação das suas democracias e o desenvolvimento das suas economias através de efeitos de escala e de complementaridade produtiva. Aquando da assinatura do tratado fundador do Mercosul, em 1991, e embora as democracias destes países já fossem bastante sólidas, as suas economias não o eram. Nos anos que se seguiram, planos bem sucedidos de estabilização monetária expuseram a fórmula orientadora deste bloco de países: o Brasil procurava apoio regional para sustentar as suas aspirações políticas internacionais e a Argentina tirava proveito dos benefícios económicos que o mercado brasileiro lhe oferecia. Enquanto a Argentina ganhava dinheiro e o Brasil aumentava o seu prestígio, o Mercosul ia crescendo. No entanto, a partir de 1999, quando os rendimentos decrescentes se tornaram evidentes e às crises internas derivaram no desalinhamento das políticas externas, o bloco estagnou. E quando, no momento do colapso argentino de 2001, a fórmula cessou de funcionar, os governos levaram a cabo uma fuga para a frente: mais instituições formais e mais ideologia integracionista. Contudo, por detrás das aparências, o bloco regional continuou a perder peso relativo e as fronteiras internas tornaram-se se mais rígidas.

Apesar do mercado brasileiro continuar a ser importante para a Argentina, é menos que durante a década de 90. Durante o período da Convertibilidade, o saldo comercial da Argentina só era positivo com o Brasil; actualmente, é positivo com todos os seus parceiros com a excepção do Brasil. Por outro lado, os governantes brasileiros estão a começar a compreender que a Argentina nunca acompanhá-los-á no que diz respeito aos seus objectivos internacionais mais ambiciosos, tais como o lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU. Por esta razão, iniciaram uma estratégia de inserção mundial que relativiza o apoio da América do Sul: o Brasil está associado à Índia e à África do Sul na IBSA, é líder do G20 na Organização Mundial do Comércio, participa em reuniões laterais do G8 (o G5) e foi convidado a participar numa parceria estratégica com a União Europeia. Neste sentido, a relação com a Argentina, embora continue a ser relevante, já deixou de ser central para o Brasil.

À medida que os prejuízos trazidos pelo Mercosul se forem tornando mais importantes relativamente aos benefícios – nomeadamente em termos de impedimentos para assinar tratados comerciais, disputas comerciais desgastantes e implementação problemática de acordos – os seus membros irão procurando outros caminhos. A aproximação do Uruguai e do Paraguai aos Estados Unidos – e eventualmente à China – é uma manifestação clara desta tendência. A Argentina continua a apostar no bloco e procura até que a Venezuela passe a integrá-lo. Contudo, o Mercosul que a Argentina tem em mente já não é o mesmo que o do Brasil. O discurso favorável à integração vai sem dúvida continuar: falar positivamente da unidade latino-americana não provoca danos; pelo contrário, apenas gera simpatia popular. Promovê-la, no entanto, já acarreta custos concretos. Os governos estão conscientes deste facto e procuram actuar com uma lógica instrumental: dizem o que seduz, mas fazem o que mais convêm. Desta forma, o Mercosul continuará a ser pouco mais do que um bonito discurso, não devido à negligência dos seus membros mas à sua racionalidade. E esta, afinal de contas, não é uma razão assim tão má no continente do realismo mágico.
O Mercosul naufraga por boas razões
01-Out-2008 © 2008 - Revista Autor


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Fonte:
http://revistaautor.com/index.php?option=com_content&task=view&id=282&Itemid=50

Tratado de Roma


Assinatura do Tratado de Roma


por Maria Izabel Mallmann

A trajetória da integração européia dos últimos cinqüenta anos demonstrou que as fronteiras políticas podem deixar de ser obstáculos intransponíveis para consecução dos ideais de progresso material e realização conjunta dos povos, em contraposição a séculos de embates sangrentos. A Europa que, no século XX, protagonizou duas guerras mundiais, encontrou, na segunda metade desse século, um modus vivendi que proscreveu a violência como forma de realização dos interesses nacionais e, desde então, inspira o mundo para a paz. Para tanto, foram decisivos episódios bélicos traumáticos capazes de fragilizar as lealdades nacionais e semear a aspiração por uma forma de convivência pacífica fundamentada em valores e objetivos comuns. Espera-se que tais episódios, fundamentais no caso da União Européia, não sejam incontornáveis, para o bem do restante do mundo que aspira a um ideal de paz e prosperidade semelhante.

O aprofundamento da integração européia é pontuado por quatro tratados constitutivos que ligam cinco décadas de negociações em prol da superação dos limites impostos pelas diferenças nacionais à paz duradoura e à prosperidade. Ao instituir a exploração conjunta do carvão e do aço, o tratado que institui a Comunidade Européia do Carvão e do Aço (CECA), de 1951, comprometeu mutuamente seis países europeus (França, Itália, República Federal da Alemanha, Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo) de modo a, na melhor tradição funcionalista, promover interesses compartidos que minimizassem a possibilidade de guerra. A frustração da projetada Comunidade Européia de Defesa (CED) no início da década de 1950, que implicaria também na criação de uma Comunidade Política Européia expôs as resistências de então, sobretudo da França sob De Gaulle, a iniciativas que implicassem alienação de soberania. A integração setorial firmou-se como a via mais promissora face às resistências às estratégias federalistas. Pela via funcionalista, foi possível criar e desenvolver compromissos mútuos, arrefecer as resistências nacionalistas e projetar nas sociedades a idéia de uma Europa unificada.

Persistir apesar das oposições e obstáculos parece ter sido a marca fundamental da trajetória da União Européia desde seus primórdios, até porque havia crescente consenso quanto à idéia de que as possíveis alternativas ao projeto de integração não assegurariam a paz recém conquistada. Assim, em 1957, dois novos tratados foram firmados. Um, instituindo a Comunidade Européia de Energia Atômica (EURATOM) e outro, a Comunidade Econômica Européia (CEE). Esta, propunha o estabelecimento de uma união aduaneira no prazo de doze anos. Apesar dessas novas frentes de integração estarem conforme o espírito funcionalista de integração setorial, foram tomadas precauções adicionais, como a formação prévia das opiniões dos públicos concernidos e o estabelecimento de mecanismos intergovernamentais de controle, para evitar resistências nacionais.

Gradualmente e não sem dificuldades, a integração européia tanto foi aprofundada quanto alargada de acordo com o que fora acordado pela Conferência de Cúpula de Haia, realizada em 1969. Após longo período de dificuldades, estabeleceu-se, naquela ocasião, as metas de atingir a união econômica e monetária, a união política e de obter a adesão de novos membros à comunidade. Desde então, o alargamento abriu espaço para mais vinte e seis países (Dinamarca, Reino Unido, Irlanda, Grécia, Espanha, Portugal, Áustria, Finlândia, Suécia, Estônia, Letônia, Lituânia, Polônia, República Eslovaca, Eslovênia, República Checa, Hungria, Malta, Chipre, Bulgária e Romênia), doze dos quais ingressaram após o fim da Guerra Fria, de acordo com a estratégia de evitar que países ex-socialistas passassem a outra esfera de influência que não a européia.

Quando, em 1992, é firmado o Tratado da União Européia que consolida os avanços obtidos, adapta o bloco às transformações internacionais do pós Guerra Fria e encaminha seu aprofundamento, os obstáculos iniciais haviam sido superados e novos desafios colocavam-se ao seguimento do empreendimento europeu, advindos tanto da velocidade do processo, do caráter dos avanços operados quanto das diferenças introduzidas pelo alargamento do bloco que, apesar de reunir países com profundas diferenças quanto à cultura, à língua e às tradições, os fez aderir a um mesmo modelo econômico e a valores da democracia liberal e do estado de direito. Mesmo assim, os novos membros introduzem questões econômicas, sociais e financeiras até então desconhecidas e para cuja solução as instituições deverão ser adequadas e montantes consideráveis de recursos destinados. Tanta diferença torna todos os processos decisórios mais complexos e sua celeridade introduz, no seio da própria União, temores quanto a desdobramentos futuros e renova insatisfações em relação à burocratização e à precária participação dos cidadãos nos processos decisórios, o chamado déficit democrático. Os últimos avanços da integração européia tanto de aprofundamento do processo quanto de alargamento requerem um tempo para maturação de modo a que as sociedades assimilem os impactos e respondam positivamente às diferenças introduzidas, de forma a reverter o estado de ânimo político observado atualmente que tem resultado em absenteísmo eleitoral e na resistência em corroborar novos passos rumo à consolidação das instituições européias.

A construção européia longe de ser um processo tranqüilo foi marcada por muitas e graves dificuldades, que poderiam questionar sua viabilidade. Basta lembrar, nesse sentido, os longos anos de governo gaullista na França que interpôs enormes obstáculos ao avanço comunitário logo em seus primeiros anos, devidos tanto ao nacionalismo quanto a animosidades em relação ao Reino Unido. Outro exemplo é a crise desencadeada pelas controvérsias entre os membros sobre o financiamento das políticas e estruturas européias e sobre o controle parlamentar sobre as decisões. Da mesma forma, as crises externas perturbaram fortemente o processo. No entanto, ao sair desses embates, a potência Europa aparece, aos olhos do mundo, mais fortalecida e, face às dificuldades, os avanços revestem-se de maior importância.

As conquistas desse processo são inestimáveis, para a Europa e para a humanidade. A demonstração cabal de que chegamos a um tempo em que é possível realizar os interesses nacionais pela via da cooperação constitui um passo decisivo rumo à realização dos ideais de paz que animaram os debates sobre a construção da Europa desde tempos pretéritos. A União Européia representa hoje um modelo de relações internacionais eminentemente pacíficas, fruto de muitas guerras e de um enorme esforço de cooperação que rivaliza com outro modus operandi em de relações internacionais, amplamente vigente, que valoriza o uso da força na resolução das controvérsias. Resta avaliar as chances que a grande maioria dos povos tem para escolher entre uma e outra via.

Maria Izabel Mallmann é Professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC-RS (izabel.mallmann@pucrs.br).

http://meridiano47.info/2007/05/05/tratado-de-roma-50-anos/#more-194

Condicionantes dos processos de integração: Europa e América Latina


Maria Izabel Mallmann

Neste ano o Tratado de Roma que instituiu a Comunidade Econômica Européia, em 1957, completa cinqüenta anos amplamente festejados inclusive pela comunidade internacional que tem buscado inspiração no processo de integração europeu para a superação de suas limitações nessa área.
A idéia de uma Europa unida e pacificada é tão antiga quanto as guerras naquele continente. Sobretudo nos séculos XVII e XVIII houve intensa produção intelectual nesse sentido com vistas a encontrar uma solução para os freqüentes embates bélicos da época. Um período de convivência relativamente pacífica foi viabilizado sob a hegemonia britânica durante a maior parte do século XIX, violentamente encerrado pela primeira guerra mundial. Sob a ordem bipolar, descortinou-se novo período propício à paz entre as nações européias, mesmo que cindidas que pela clivagem leste-oeste. Após a segunda Guerra Mundial, criara-se finalmente consenso interno em torno da incontornável necessidade de busca conjunta de formas de convivência pacífica e surgiram condições externas essenciais a tal empreendimento.
Não é possível negligenciar a importância para a integração européia do que, sob uma perspectiva realista, denomina-se federador externo. Ou seja, todo e qualquer fator que se afigure como um constrangimento externo ao conjunto de atores considerados, que os congrega e os faz reagir coordenadamente. É preciso lembrar que, sob esse enfoque, um dos principais fatores que levaram à consolidação das complexas unidades políticas que são os Estados foi a existência de um inimigo externo contra o qual reagir conjuntamente. Absolutamente reais ou em grande medida imaginados, tais fatores com potencial federador foram recorrentemente evocados para evitar a desagregação política e social dos Estados, como um recurso para preservar a soberania interna. A magnitude e o peso relativo desses fatores são outros quando concorrem para a superação das soberanias nacionais. Nesses casos, a real ou suposta “ameaça externa” assume tal dimensão em relação à qual é impossível fazer face isoladamente. Isso, combinado com a debilitação da coesão interna que no caso europeu deveu-se à percepção acerca da mútua capacidade de destruição das potências européias, predispõe as sociedades para a superação das instituições existentes. Os passos para tanto seguem a correlação de forças.
Pelo menos dois fatores externos de magnitude ímpar compuseram o contexto externo que conformou a ação política dos seis países que iniciaram o empreendimento europeu. De um lado, a possibilidade de expansão comunista contra a qual fez-se necessário opor um projeto alternativo e, de outro lado, o apoio a tal empreendimento da maior potência de então, os Estados Unidos, via Plano Marshall. Esses dois fatores muito contribuíram para que a reconstrução do ocidente da Europa fosse fundamentada em valores da democracia representativa e da economia de mercado. Os próprios desdobramentos iniciais da Guerra Fria revigoraram essa ordem de constrangimento externo à integração européia. Quando ocorre a distensão, os ganhos do processo já asseguravam em grande medida sua continuidade. Sob a proteção americana, a Europa ocidental pode investir em outras frentes que não a militar e de defesa, minimizando os atritos intra-regionais que iniciativas nessa área necessariamente provocariam e pode sofisticar os mecanismos de integração econômica, imprescindíveis para a manutenção da coesão interna.
Contrariamente, na América Latina ao longo da segunda metade do século XX contou-se apenas com a intenção de reproduzir a façanha européia, faltaram tanto os fatores nacionais e regionais favoráveis quanto os decisivos condicionantes externos. Abstraída a condição periférica e subdesenvolvida comum, as sociedades latino-americanas careciam de níveis de interdependência necessários para balizar, pelo bem ou pelo mal, um projeto comum. As relações rarefeitas e focadas nos centros mundiais de poder não apenas minimizaram as guerras como inviabilizaram a intensificação de trocas positivas. Nesses termos a integração regional jamais se afigurou como uma solução viável aos problemas regionais. As tentativas realizadas logo esbarraram em obstáculos decorrentes da frágil interdependência regional. Isso, somado à ausência de grandes condicionantes externos que compelissem os países a buscar saídas conjuntas, fez com que a região chegasse ao século XXI com muita retórica integracionista e poucos avanços concretos nesse sentido. Não houve no caso latino-americano uma ameaça externa comum combinada com importante apoio externo à integração. Ao contrário disso, os fatores externos, que variaram de natureza e intensidade, foram sempre mais dissuasivos do que incentivadores da integração. As rivalidades regionais sempre foram habilmente trabalhadas pelas potências mundiais de modo a produzir mais divisões do que coesão. Da mesma forma, os programas de cooperação propostos pelos Estados Unidos produziram mais competição por recursos e atenções escassos do que aproximação entre as partes.
A partir das últimas décadas do século XX, os fenômenos da globalização levaram os Estados a reagirem pela via da regionalização. Isso não foi diferente na América Latina golpeada pelos limites da via de desenvolvimento até então vigente. A incontornável necessidade de integrar-se à economia global altamente competitiva afigurou-se como um importante fator externo a favorecer a integração. Por si só, no entanto, esse condicionante de natureza econômica pode operar em qualquer sentido. Para que o faça favoravelmente à integração é necessário que se combine com decisões políticas nesse sentido. Estas, apesar de existirem, respondem a limitações estruturais de natureza interna e também relativas à heterogeneidade dos países envolvidos, o que faz com que a integração, além de errática, se seja pouco institucionalizada.
Apesar de os esforços latino-americanos de integração serem mais ou menos contemporâneos dos primeiros passos da integração européia, repousam sobre trajetórias e condições históricas completamente diferentes, tanto em termos das motivações internas quanto dos condicionantes externos. Isso, somado à convicção de que crescentes índices de interdependência, como os que se observam nas últimas décadas, favorecem a integração, leva à expectativa de que a América latina, longe de estar tendo seu processo de integração frustrado se comparado ao europeu, está apenas lançando as bases em termos de dependência mútua,via integração física e energética, do que será a demanda por integração futura.

Maria Izabel Mallmann é Professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC-RS (izabel.mallmann@pucrs.br).

http://meridiano47.info/2007/04/05/condicionantes-dos-processos-de-integracao-europa-e-america-latina/

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