O fator Cingapura
O fator Cingapura
Como essa ilhota se transformou em usina de força high-tech em apenas uma geração? Simples: foi tudo planejado.
Por Mark Jacobson
Foto de David McLain
Como essa ilhota se transformou em usina de força high-tech em apenas uma geração? Simples: foi tudo planejado.
Por Mark Jacobson
Foto de David McLain
A imagem de um soldado avulta sobre contingentes militares que ensaiam para o desfile do Dia da Pátria.
Se você quer fazer um cingapuriano interromper sua adorada refeição de cabeça de peixe ao curry ou que um estressado chofer de táxi enfie o pé no breque, basta dizer que você vai entrevistar o "Ministro Mentor" do país, Lee Kuan Yew, e pedir sugestões sobre o que perguntar ao homem. "O MM? Wah lau! Você vai ver o MM?" MM ou LKY, como ele é conhecido em um país maníaco por siglas, é mais que o "pai da nação".
LKY é seu inventor, como se houvesse formulado cientificamente um país juntando porções exatas da República de Platão, do elitismo anglófilo, de um infatigável pragmatismo econômico e de uma repressiva e antiquada mão de ferro.
As pessoas gostam de chamar Cingapura de Suíça do Sudeste Asiático, e quem poderia contestá-las? Essa ilhota situada na ponta da península Malaia conquistou sua independência da Grã-Bretanha em 1963 para, em apenas uma geração, se transformar em um lugar de legendária eficiência, em que a renda per capita de seus 3,7 milhões de cidadãos ultrapassa a de muitos países europeus. Os sistemas de educação e saúde locais rivalizam com os de qualquer país ocidental, e o aparato governamental se acha, em grande medida, livre de corrupção. Cerca de 90% dos lares são casa própria, os impostos são relativamente baixos e as ruas e calçadas são impecáveis, sem mendigos ou favelas à vista.
Se tudo isso, mais uma taxa de desemprego em torno de 3% e uma pilha de dinheiro dos cidadãos guardada no banco graças ao plano oficial de poupança compulsória, não soa como música a seus ouvidos, experimente viajar 950 quilômetros ao sul e tente se virar num favelão de Jacarta, capital da vizinha Indonésia.
Atingir tal estágio demandou delicado e contraditório equilíbrio entre incentivo e punição ou, como os cingapurianos costumam dizer, entre "o longo porrete e a grande cenoura". O que causa admiração, em primeiro lugar, é a cenoura: um vertiginoso crescimento financeiro a sustentar o consumo e o setor imobiliário. O lado B disso é o longo porrete, em geral simbolizado pela infame proibição do chiclete e a aplicação de surras de vara em pichadores. E quanto a situações conturbadoras, como tensões religiosas ou raciais? Elas simplesmente não são permitidas. E mais: ninguém bate a carteira de ninguém.
Cingapura, talvez mais que qualquer outro lugar no mundo, enseja uma questão fundamental: prosperidade e segurança sim, mas a que preço? Será que para obtê-las vale a pena viver em um ambiente que, aos olhos de muita gente, é uma sociedade de proveta, baseada na labuta incessante, numa briga de foice entre workaholics, em que o partido que se autoperpetua no poder impõe leis draconianas (o cartão de entrada ao aeroporto local, por exemplo, informa, em letras vermelhas, que a pena para o tráfico de drogas é simplesmente a "MORTE") e reprime a liberdade de imprensa, oferecendo um nível questionável de transparência financeira?
Dizem que Lee Kuan Yew abrandou com o passar dos anos. Mas, quando ele chega envergando um blusão azul de zíper e um cenho franzido, com pinta de Clint Eastwood em Gran Torino, você percebe que ele não está lá para brincadeiras. Embora não estejam bem claras as funções de um "Ministro Mentor", é difícil encontrar quem não acredite que o Velho ainda é o mandachuva no pedaço. Ao saber que a maioria das perguntas saiu da boca de cingapurianos, MM, de 86 anos, afiado e prático como um canivete suíço, abre seu sorriso "deixa comigo" e diz: "Na minha idade, já me jogaram muito ovo".
Poucos líderes ainda vivos - Fidel Castro, em Cuba, Nelson Mandela, na África do Sul, e Robert Mugabe, no Zimbábue, me vêm à mente - dominaram a crônica histórica de seus países do mesmo jeito que Lee Kuan Yew. Nascido em uma família chinesa abastada, em 1923, sob a profunda influência tanto da sociedade colonial britânica quanto da brutal ocupação japonesa que chacinou algo como 50 mil pessoas na ilha na década de 1940, o outrora chamado "Harry Lee", com seu diploma de Cambridge na mão, começou assumindo proeminência como líder de um movimento anticolonial de tendências esquerdistas nos anos 1950. Vendo se solidificar seu poder pessoal com a ascensão do Partido da Ação Popular, LKY tornou-se o primeiro-ministro inaugural da ilha, posto que ocupou por 26 anos. Depois, foi ministro sênior por mais 15 anos. Seu atual status de Ministro Mentor foi-lhe atribuído quando seu filho, Lee Hsien Loong, assumiu o cargo de primeiro-ministro em 2004.
No início de seu governo, LKY concebeu o celebrado "modelo de Cingapura", que converteu um país de 697 quilômetros quadrados (cerca de 3% da área de Sergipe, o menor estado brasileiro), sem recursos naturais e com uma miscelânea de etnias, numa espécie de "Cingapura S/A". Ao construir uma infraestrutura de transportes e comunicações, atraiu investimentos estrangeiros, ao mesmo tempo que estabelecia o inglês como língua oficial e criava um governo eficiente, com administradores recebendo salários equivalentes aos das empresas privadas. LKY também caiu de pau na corrupção, até extingui-la. Esse modelo - mistura singular de estímulo econômico e estrito controle das liberdades pessoais - inspirou imitações na China, na Rússia e na Europa.
Para liderar uma sociedade, diz LKY em seu inglês vitoriano, "é preciso entender a natureza humana. Sempre achei que a humanidade parecia o mundo animal. A teoria de Confúcio reza que o homem pode ser aperfeiçoado, mas não tenho certeza. O que ele pode é ser disciplinado".
Em Cingapura, isso se traduziu em leis que proíbem jogar lixo e cuspir nas ruas e deixar de dar a descarga nos toaletes públicos, com multas e denúncias nos jornais contra os infratores. Significou também educar o povo, industrioso por natureza, convertendo lojistas em trabalhadores high-tech no espaço de poucas décadas.
Com o tempo, diz o MM, os cingapurianos tornaram-se "menos empenhados, menos obcecados pelo trabalho". Por essa razão, foi uma boa ideia, segundo ele, acolher no país tantos chineses (25% da população atual nasceu no estrangeiro). Ele está ciente de que muitos cingapurianos se mostram descontentes com o afluxo de imigrantes, sobretudo os mais graduados que vêm disputar os empregos mais bem remunerados. No entanto, ele descreve os novos súditos da nação como "famintos por sucesso", com pais que "estimulam ao máximo seus filhos". Se os cidadãos nativos estão ficando para trás é porque "não estão dando no couro" - eis o problema.
Se existe uma palavra para sintetizar a condição existencial de Cingapura, ela é kiasu, termo chinês que significa "medo de perder". Em uma sociedade que começa a monitorar seus estudantes desde os 10 anos de idade, agrupando-os pelos resultados de testes ("especial" e "expresso" estão no topo da lista; "normal" designa aqueles que seguirão como mão de obra para as fábricas e o setor de serviços), o kiasu é internalizado desde cedo, germinando sob a forma de brilhantes alunos de engenharia e de arranha-céus fálicos com uma loja da Bulgari no térreo.
Os cingapurianos são craques em obter o primeiro lugar em tudo, mas, em um mundo regido pelo kiasu, ganhar nunca traz plenitude, pois é uma experiência que carrega com ela o pavor de parar de ganhar. Quando o porto de Cingapura, com o maior tráfego de contêineres no mundo, ficou atrás de Xangai, em 2005, em tonelagem total de carga, foi uma calamidade nacional.
Em um ensaio para as comemorações do Dia da Pátria, presenciei uma espantosa celebração dos valores antifracasso. As Forças Armadas de Cingapura encenaram uma operação para subjugar uma camarilha de terroristas que havia fuzilado meia dúzia de criancinhas em trajes vermelhos de ginasta e portando flores, abandonando-as "mortas" no palco. "Não somos a Coreia do Norte, mas bem que tentamos", diz um observador ao comentar o desfile de tanques, helicópteros Apache e salvas de 21 tiros de canhão. Em todo lugar você ouve alguém dizer que o único jeito de Cingapura sobreviver, rodeada como está de vizinhos peso pesados, é manter-se em constante vigilância. O orçamento militar de 2009 foi de 11,4 bilhões de dólares - 5% do PIB do país, uma das maiores taxas mundiais.
Você nunca sabe de onde virá a ameaça ou que forma ela assumirá. No verão passado todo mundo entrou em pânico por causa da gripe suína. Inspetores usando máscara se posicionaram pela cidade. Num sábado à noite, não havia jeito de entrar em uma das boates do Clarke Quay, o reurbanizado cais do rio Cingapura, sem que uma hostess pressionasse uma pistola-termômetro contra a sua testa. Isso fazia parte do interminável estado de sítio cingapuriano. Muitos dos novos conjuntos habitacionais dispõem de um abrigo antibomba completo, inclusive com porta de aço. Depois de algum tempo, a percepção do perigo e a complacência com as regras são internalizadas pelas pessoas. Uma das coisas que você menos vê em Cingapura é polícia. "O tira está dentro da nossa cabeça", afirma um morador.
A autocensura é feroz. Lidar com os poderes constituídos é "uma dança", comenta Alvin Tan, diretor artístico do Necessary Stage, grupo teatral sem fins lucrativos que já encenou várias peças que abordam temas sensíveis, como pena de morte e sexualidade. Tan gasta muito tempo com os censores do governo. "Você precisa se valer de uma abordagem apropriada", diz. "Se eles dizem ‘sul’, você não deve dizer ‘norte’. Você diz ‘nordeste’. Comece por aí. É uma negociação."
Aqueles que não dançam conforme a música logo se tocam do que está acontecendo. Veja o caso de Siew Kum Hong, um cingapuriano de 35 anos que imaginava estar servindo à causa da liberdade ao assumir o cargo de MNP - ou Membro Nomeado do Parlamento. Com apenas quatro parlamentares de oposição eleitos na história do país, o partido no poder achou que os MNPs emprestariam ao sistema político uma aparência de "estilo mais consensual de governo, em que os pontos de vista são ouvidos, e as dissensões construtivas, acomodadas." Era assim, conta Siew Kum Hong, que ele encarava seu cargo, antes de ser preterido em um novo mandato.
"Eu imaginava estar fazendo um bom trabalho", diz Hong. Mas, quando ele deu seu primeiro voto negativo, relativo a uma resolução que lhe parecia discriminativa contra os gays, seus colegas "permaneceram em absoluto silêncio. Era a primeira vez, desde que entrei para o Parlamento, que alguém votava pelo ‘não’." Quando ele votou negativo pela segunda vez, para uma lei diminuindo o número de pessoas que poderiam se reunir para um protesto, a reação foi igualmente fria. "É assim que eles encaram os pontos de vista alternativos", conclui Hong.
O governo de cingapura não se mostra indiferente às desvantagens de ter uma sociedade sob intenso controle. O Estado empreendeu uma campanha contra a grande conquista linguística de Cingapura, o singlish, um patuá multiculturalista que fusiona malaio, chinês hokkien (falado fora da China por todo o Sudeste Asiático), tâmil e o inglês rueiro. Para quem se senta em um Starbucks e ouve os adolescentes dizendo coisas como "You blur like sotong, lah!" (algo como "Você é mais tonto que uma lula, cara!"), o singlish soa como um veemente ataque subversivo ao espírito de conformidade que o governo tenta superar. Por outro lado, uma das maiores contradições do singlish é a irônica clonagem que ele faz da popularesca e cafona cultura "Ah Beng", trazida pelos imigrantes chineses e seus equivalentes malaios envergando óculos escuros. Logo se vê que isso não tem futuro num ambiente em que o MM vem advogando o "acasalamento seletivo", a ideia de que os universitários deveriam se casar apenas com outros colegas universitários, de maneira a elevar o nível da população.
Talvez o problema mais inquietante com o qual o país se defronta derive de seu programa de controle populacional, de flagrante sucesso, que nos anos 1970 adotou o slogan "Dois é o bastante". Hoje em dia os cingapurianos simplesmente não estão mais se reproduzindo, e a nação depende dos imigrantes para manter a população em crescimento. O governo oferece bônus atrelados aos nascimentos, além de longa licença-maternidade. Mas nada disso vai ajudar muito se os cingapurianos não começarem a fazer mais sexo. Segundo pesquisa encomendada por uma fábrica de preservativos, os habitantes de Cingapura têm menos relações sexuais que qualquer outro povo da Terra. "Nossa população está encolhendo", diz o MM. "Nossa taxa de fertilidade é de 1,29. Esse é um fator preocupante." E poderia ser o erro fatal do modelo de Cingapura: a eventual extinção dos cingapurianos.
Há, contudo, um aspecto positivo nessa engenharia social. Dava para sentir isso durante a produção das atrações no estilo "We are the World" para o show no Dia da Pátria. No palco havia representantes dos grupos étnicos majoritários de Cingapura, chineses, malaios e indianos, todos envergando vestes coloridas. Depois da onda de distúrbios nos anos 1960, o governo instalou um estrito sistema de cotas nos conjuntos habitacionais, de modo a assegurar que os grupos étnicos não viessem a criar seus próprios bairros monolíticos. Tal prática pode ter mais a ver com controle social que com verdadeira harmonia multirracial, mas, durante os ensaios, era difícil deixar de se comover diante do esforçado show de fraternidade. Apesar de toda a artificialidade, existe algo no país que pode ser chamado de cingapuriano para valer. O povo vive reclamando, mas Cingapura é a terra deles e todos a amam, a despeito das mazelas. Isso faz com que você também goste do lugar.
A grande questão é que as coisas estão a ponto de mudar. "Todos sabemos que o MM vai morrer um dia", comenta Calvin Fones, psiquiatra que presta atendimento em uma clínica no Hospital Gleneagles. Fones compara sua pátria a uma família. "Quando o país era jovem, havia a necessidade de supervisão - de mão firme. Agora chegamos à adolescência, que pode ser um período de questionamentos e agitações. Atravessá-lo sem a presença do patriarca será um teste."
O grande motor da mudança cultural, com certeza, é a internet, essa mosca cibernética que posou na sopa autoritária. Lee Kuan Yew reconhece a ameaça. "Banimos a Playboy nos anos 1960, e ela ainda se encontra banida. Mas agora, com a internet, você tem acesso a muito mais." Tentar uma censura à internet, como tem sido feito na China, não teria sentido, afirma LKY, demonstrando peculiar pragmatismo.
Assim, os blogueiros, como o satírico Mr. Brown e o combativo Yawning Bread (Pão Amanhecido), estão liberados para divulgar opiniões que não se encontram nas páginas do jornal pró-governamental Straits Times. Como resultado, os jovens começam a demandar mais liberdade política e menos controles sociais.
Cingapura pode ser um lugar desconcertante, mesmo para os que a chamam de lar, embora ninguém pense em deixá-la. Como diz um morador, "Cingapura é como um banho quente. Você afunda n’água, corta seus pulsos, vê sua vida se escoar em sangue, mas, tudo bem, a água está quentinha". Se for esse o caso, a maioria dos cingapurianos se imagina mergulhando em banheiras enquanto saboreiam caranguejos na pimenta com uns pasteizinhos de frango ao curry para acompanhar. Comer é o verdadeiro passatempo, o refúgio da nação. Digo por mim mesmo: quanto mais me demorava ali, mais eu comia. Chegou a um ponto em que, depois de ficar 20 minutos em uma fila para conseguir saborear um prato no estande da Tian Tian, no Maxwell Road Food Center, apinhado de gente, me vi entrando de novo na fila.
Em meu último dia ali, subi a colina da Reserva Natural de Bukit Timah, próxima ao centro da cidade, o ponto mais elevado da ilha, com seus 163 metros de altura, e o lugar mais parecido com a selva que ela foi um dia. Na inesperada quietude do lugar, lembrei-me do que o MM havia dito sobre a crença confuciana de que "o homem pode ser aperfeiçoado". Isso, dissera o velho ministro depois de exalar um suspiro, não passava de um jeito otimista de encarar a vida. Porque, de fato, as pessoas abusam da liberdade.
Essa é a pinimba que ele tem com os Estados Unidos: os direitos dos indivíduos de fazer o que bem entendem permitem que eles se comportem mal às expensas de uma sociedade ordeira. Como se diz em Cingapura, de que valem todos esses direitos se dá medo de sair à noite?
Quando cheguei ao topo da colina, eu achava que seria recompensado com uma visão panorâmica de toda a cidade-Estado. Mas não havia vista nenhuma - só uma torre de comunicações enferrujada e uma cerca anticiclones, na qual um aviso numa placa alertava "Lugar protegido", perto de um desenho de tipo infantil que mostrava um soldado a apontar um fuzil para um homem com os braços erguidos.
Mais tarde, mencionei esse desenho a Calvin Fones, o psiquiatra. "Veja, isso demonstra o progresso que fizemos", diz ele. "Até alguns anos atrás, o mesmo aviso exibia um cara prostrado no chão, já fuzilado." Em seguida, como bom cingapuriano vivendo uma vida que não imaginava possível em nenhum outro lugar, ele riu.
National Geographic Brasil
Se você quer fazer um cingapuriano interromper sua adorada refeição de cabeça de peixe ao curry ou que um estressado chofer de táxi enfie o pé no breque, basta dizer que você vai entrevistar o "Ministro Mentor" do país, Lee Kuan Yew, e pedir sugestões sobre o que perguntar ao homem. "O MM? Wah lau! Você vai ver o MM?" MM ou LKY, como ele é conhecido em um país maníaco por siglas, é mais que o "pai da nação".
LKY é seu inventor, como se houvesse formulado cientificamente um país juntando porções exatas da República de Platão, do elitismo anglófilo, de um infatigável pragmatismo econômico e de uma repressiva e antiquada mão de ferro.
As pessoas gostam de chamar Cingapura de Suíça do Sudeste Asiático, e quem poderia contestá-las? Essa ilhota situada na ponta da península Malaia conquistou sua independência da Grã-Bretanha em 1963 para, em apenas uma geração, se transformar em um lugar de legendária eficiência, em que a renda per capita de seus 3,7 milhões de cidadãos ultrapassa a de muitos países europeus. Os sistemas de educação e saúde locais rivalizam com os de qualquer país ocidental, e o aparato governamental se acha, em grande medida, livre de corrupção. Cerca de 90% dos lares são casa própria, os impostos são relativamente baixos e as ruas e calçadas são impecáveis, sem mendigos ou favelas à vista.
Se tudo isso, mais uma taxa de desemprego em torno de 3% e uma pilha de dinheiro dos cidadãos guardada no banco graças ao plano oficial de poupança compulsória, não soa como música a seus ouvidos, experimente viajar 950 quilômetros ao sul e tente se virar num favelão de Jacarta, capital da vizinha Indonésia.
Atingir tal estágio demandou delicado e contraditório equilíbrio entre incentivo e punição ou, como os cingapurianos costumam dizer, entre "o longo porrete e a grande cenoura". O que causa admiração, em primeiro lugar, é a cenoura: um vertiginoso crescimento financeiro a sustentar o consumo e o setor imobiliário. O lado B disso é o longo porrete, em geral simbolizado pela infame proibição do chiclete e a aplicação de surras de vara em pichadores. E quanto a situações conturbadoras, como tensões religiosas ou raciais? Elas simplesmente não são permitidas. E mais: ninguém bate a carteira de ninguém.
Cingapura, talvez mais que qualquer outro lugar no mundo, enseja uma questão fundamental: prosperidade e segurança sim, mas a que preço? Será que para obtê-las vale a pena viver em um ambiente que, aos olhos de muita gente, é uma sociedade de proveta, baseada na labuta incessante, numa briga de foice entre workaholics, em que o partido que se autoperpetua no poder impõe leis draconianas (o cartão de entrada ao aeroporto local, por exemplo, informa, em letras vermelhas, que a pena para o tráfico de drogas é simplesmente a "MORTE") e reprime a liberdade de imprensa, oferecendo um nível questionável de transparência financeira?
Dizem que Lee Kuan Yew abrandou com o passar dos anos. Mas, quando ele chega envergando um blusão azul de zíper e um cenho franzido, com pinta de Clint Eastwood em Gran Torino, você percebe que ele não está lá para brincadeiras. Embora não estejam bem claras as funções de um "Ministro Mentor", é difícil encontrar quem não acredite que o Velho ainda é o mandachuva no pedaço. Ao saber que a maioria das perguntas saiu da boca de cingapurianos, MM, de 86 anos, afiado e prático como um canivete suíço, abre seu sorriso "deixa comigo" e diz: "Na minha idade, já me jogaram muito ovo".
Poucos líderes ainda vivos - Fidel Castro, em Cuba, Nelson Mandela, na África do Sul, e Robert Mugabe, no Zimbábue, me vêm à mente - dominaram a crônica histórica de seus países do mesmo jeito que Lee Kuan Yew. Nascido em uma família chinesa abastada, em 1923, sob a profunda influência tanto da sociedade colonial britânica quanto da brutal ocupação japonesa que chacinou algo como 50 mil pessoas na ilha na década de 1940, o outrora chamado "Harry Lee", com seu diploma de Cambridge na mão, começou assumindo proeminência como líder de um movimento anticolonial de tendências esquerdistas nos anos 1950. Vendo se solidificar seu poder pessoal com a ascensão do Partido da Ação Popular, LKY tornou-se o primeiro-ministro inaugural da ilha, posto que ocupou por 26 anos. Depois, foi ministro sênior por mais 15 anos. Seu atual status de Ministro Mentor foi-lhe atribuído quando seu filho, Lee Hsien Loong, assumiu o cargo de primeiro-ministro em 2004.
No início de seu governo, LKY concebeu o celebrado "modelo de Cingapura", que converteu um país de 697 quilômetros quadrados (cerca de 3% da área de Sergipe, o menor estado brasileiro), sem recursos naturais e com uma miscelânea de etnias, numa espécie de "Cingapura S/A". Ao construir uma infraestrutura de transportes e comunicações, atraiu investimentos estrangeiros, ao mesmo tempo que estabelecia o inglês como língua oficial e criava um governo eficiente, com administradores recebendo salários equivalentes aos das empresas privadas. LKY também caiu de pau na corrupção, até extingui-la. Esse modelo - mistura singular de estímulo econômico e estrito controle das liberdades pessoais - inspirou imitações na China, na Rússia e na Europa.
Para liderar uma sociedade, diz LKY em seu inglês vitoriano, "é preciso entender a natureza humana. Sempre achei que a humanidade parecia o mundo animal. A teoria de Confúcio reza que o homem pode ser aperfeiçoado, mas não tenho certeza. O que ele pode é ser disciplinado".
Em Cingapura, isso se traduziu em leis que proíbem jogar lixo e cuspir nas ruas e deixar de dar a descarga nos toaletes públicos, com multas e denúncias nos jornais contra os infratores. Significou também educar o povo, industrioso por natureza, convertendo lojistas em trabalhadores high-tech no espaço de poucas décadas.
Com o tempo, diz o MM, os cingapurianos tornaram-se "menos empenhados, menos obcecados pelo trabalho". Por essa razão, foi uma boa ideia, segundo ele, acolher no país tantos chineses (25% da população atual nasceu no estrangeiro). Ele está ciente de que muitos cingapurianos se mostram descontentes com o afluxo de imigrantes, sobretudo os mais graduados que vêm disputar os empregos mais bem remunerados. No entanto, ele descreve os novos súditos da nação como "famintos por sucesso", com pais que "estimulam ao máximo seus filhos". Se os cidadãos nativos estão ficando para trás é porque "não estão dando no couro" - eis o problema.
Se existe uma palavra para sintetizar a condição existencial de Cingapura, ela é kiasu, termo chinês que significa "medo de perder". Em uma sociedade que começa a monitorar seus estudantes desde os 10 anos de idade, agrupando-os pelos resultados de testes ("especial" e "expresso" estão no topo da lista; "normal" designa aqueles que seguirão como mão de obra para as fábricas e o setor de serviços), o kiasu é internalizado desde cedo, germinando sob a forma de brilhantes alunos de engenharia e de arranha-céus fálicos com uma loja da Bulgari no térreo.
Os cingapurianos são craques em obter o primeiro lugar em tudo, mas, em um mundo regido pelo kiasu, ganhar nunca traz plenitude, pois é uma experiência que carrega com ela o pavor de parar de ganhar. Quando o porto de Cingapura, com o maior tráfego de contêineres no mundo, ficou atrás de Xangai, em 2005, em tonelagem total de carga, foi uma calamidade nacional.
Em um ensaio para as comemorações do Dia da Pátria, presenciei uma espantosa celebração dos valores antifracasso. As Forças Armadas de Cingapura encenaram uma operação para subjugar uma camarilha de terroristas que havia fuzilado meia dúzia de criancinhas em trajes vermelhos de ginasta e portando flores, abandonando-as "mortas" no palco. "Não somos a Coreia do Norte, mas bem que tentamos", diz um observador ao comentar o desfile de tanques, helicópteros Apache e salvas de 21 tiros de canhão. Em todo lugar você ouve alguém dizer que o único jeito de Cingapura sobreviver, rodeada como está de vizinhos peso pesados, é manter-se em constante vigilância. O orçamento militar de 2009 foi de 11,4 bilhões de dólares - 5% do PIB do país, uma das maiores taxas mundiais.
Você nunca sabe de onde virá a ameaça ou que forma ela assumirá. No verão passado todo mundo entrou em pânico por causa da gripe suína. Inspetores usando máscara se posicionaram pela cidade. Num sábado à noite, não havia jeito de entrar em uma das boates do Clarke Quay, o reurbanizado cais do rio Cingapura, sem que uma hostess pressionasse uma pistola-termômetro contra a sua testa. Isso fazia parte do interminável estado de sítio cingapuriano. Muitos dos novos conjuntos habitacionais dispõem de um abrigo antibomba completo, inclusive com porta de aço. Depois de algum tempo, a percepção do perigo e a complacência com as regras são internalizadas pelas pessoas. Uma das coisas que você menos vê em Cingapura é polícia. "O tira está dentro da nossa cabeça", afirma um morador.
A autocensura é feroz. Lidar com os poderes constituídos é "uma dança", comenta Alvin Tan, diretor artístico do Necessary Stage, grupo teatral sem fins lucrativos que já encenou várias peças que abordam temas sensíveis, como pena de morte e sexualidade. Tan gasta muito tempo com os censores do governo. "Você precisa se valer de uma abordagem apropriada", diz. "Se eles dizem ‘sul’, você não deve dizer ‘norte’. Você diz ‘nordeste’. Comece por aí. É uma negociação."
Aqueles que não dançam conforme a música logo se tocam do que está acontecendo. Veja o caso de Siew Kum Hong, um cingapuriano de 35 anos que imaginava estar servindo à causa da liberdade ao assumir o cargo de MNP - ou Membro Nomeado do Parlamento. Com apenas quatro parlamentares de oposição eleitos na história do país, o partido no poder achou que os MNPs emprestariam ao sistema político uma aparência de "estilo mais consensual de governo, em que os pontos de vista são ouvidos, e as dissensões construtivas, acomodadas." Era assim, conta Siew Kum Hong, que ele encarava seu cargo, antes de ser preterido em um novo mandato.
"Eu imaginava estar fazendo um bom trabalho", diz Hong. Mas, quando ele deu seu primeiro voto negativo, relativo a uma resolução que lhe parecia discriminativa contra os gays, seus colegas "permaneceram em absoluto silêncio. Era a primeira vez, desde que entrei para o Parlamento, que alguém votava pelo ‘não’." Quando ele votou negativo pela segunda vez, para uma lei diminuindo o número de pessoas que poderiam se reunir para um protesto, a reação foi igualmente fria. "É assim que eles encaram os pontos de vista alternativos", conclui Hong.
O governo de cingapura não se mostra indiferente às desvantagens de ter uma sociedade sob intenso controle. O Estado empreendeu uma campanha contra a grande conquista linguística de Cingapura, o singlish, um patuá multiculturalista que fusiona malaio, chinês hokkien (falado fora da China por todo o Sudeste Asiático), tâmil e o inglês rueiro. Para quem se senta em um Starbucks e ouve os adolescentes dizendo coisas como "You blur like sotong, lah!" (algo como "Você é mais tonto que uma lula, cara!"), o singlish soa como um veemente ataque subversivo ao espírito de conformidade que o governo tenta superar. Por outro lado, uma das maiores contradições do singlish é a irônica clonagem que ele faz da popularesca e cafona cultura "Ah Beng", trazida pelos imigrantes chineses e seus equivalentes malaios envergando óculos escuros. Logo se vê que isso não tem futuro num ambiente em que o MM vem advogando o "acasalamento seletivo", a ideia de que os universitários deveriam se casar apenas com outros colegas universitários, de maneira a elevar o nível da população.
Talvez o problema mais inquietante com o qual o país se defronta derive de seu programa de controle populacional, de flagrante sucesso, que nos anos 1970 adotou o slogan "Dois é o bastante". Hoje em dia os cingapurianos simplesmente não estão mais se reproduzindo, e a nação depende dos imigrantes para manter a população em crescimento. O governo oferece bônus atrelados aos nascimentos, além de longa licença-maternidade. Mas nada disso vai ajudar muito se os cingapurianos não começarem a fazer mais sexo. Segundo pesquisa encomendada por uma fábrica de preservativos, os habitantes de Cingapura têm menos relações sexuais que qualquer outro povo da Terra. "Nossa população está encolhendo", diz o MM. "Nossa taxa de fertilidade é de 1,29. Esse é um fator preocupante." E poderia ser o erro fatal do modelo de Cingapura: a eventual extinção dos cingapurianos.
Há, contudo, um aspecto positivo nessa engenharia social. Dava para sentir isso durante a produção das atrações no estilo "We are the World" para o show no Dia da Pátria. No palco havia representantes dos grupos étnicos majoritários de Cingapura, chineses, malaios e indianos, todos envergando vestes coloridas. Depois da onda de distúrbios nos anos 1960, o governo instalou um estrito sistema de cotas nos conjuntos habitacionais, de modo a assegurar que os grupos étnicos não viessem a criar seus próprios bairros monolíticos. Tal prática pode ter mais a ver com controle social que com verdadeira harmonia multirracial, mas, durante os ensaios, era difícil deixar de se comover diante do esforçado show de fraternidade. Apesar de toda a artificialidade, existe algo no país que pode ser chamado de cingapuriano para valer. O povo vive reclamando, mas Cingapura é a terra deles e todos a amam, a despeito das mazelas. Isso faz com que você também goste do lugar.
A grande questão é que as coisas estão a ponto de mudar. "Todos sabemos que o MM vai morrer um dia", comenta Calvin Fones, psiquiatra que presta atendimento em uma clínica no Hospital Gleneagles. Fones compara sua pátria a uma família. "Quando o país era jovem, havia a necessidade de supervisão - de mão firme. Agora chegamos à adolescência, que pode ser um período de questionamentos e agitações. Atravessá-lo sem a presença do patriarca será um teste."
O grande motor da mudança cultural, com certeza, é a internet, essa mosca cibernética que posou na sopa autoritária. Lee Kuan Yew reconhece a ameaça. "Banimos a Playboy nos anos 1960, e ela ainda se encontra banida. Mas agora, com a internet, você tem acesso a muito mais." Tentar uma censura à internet, como tem sido feito na China, não teria sentido, afirma LKY, demonstrando peculiar pragmatismo.
Assim, os blogueiros, como o satírico Mr. Brown e o combativo Yawning Bread (Pão Amanhecido), estão liberados para divulgar opiniões que não se encontram nas páginas do jornal pró-governamental Straits Times. Como resultado, os jovens começam a demandar mais liberdade política e menos controles sociais.
Cingapura pode ser um lugar desconcertante, mesmo para os que a chamam de lar, embora ninguém pense em deixá-la. Como diz um morador, "Cingapura é como um banho quente. Você afunda n’água, corta seus pulsos, vê sua vida se escoar em sangue, mas, tudo bem, a água está quentinha". Se for esse o caso, a maioria dos cingapurianos se imagina mergulhando em banheiras enquanto saboreiam caranguejos na pimenta com uns pasteizinhos de frango ao curry para acompanhar. Comer é o verdadeiro passatempo, o refúgio da nação. Digo por mim mesmo: quanto mais me demorava ali, mais eu comia. Chegou a um ponto em que, depois de ficar 20 minutos em uma fila para conseguir saborear um prato no estande da Tian Tian, no Maxwell Road Food Center, apinhado de gente, me vi entrando de novo na fila.
Em meu último dia ali, subi a colina da Reserva Natural de Bukit Timah, próxima ao centro da cidade, o ponto mais elevado da ilha, com seus 163 metros de altura, e o lugar mais parecido com a selva que ela foi um dia. Na inesperada quietude do lugar, lembrei-me do que o MM havia dito sobre a crença confuciana de que "o homem pode ser aperfeiçoado". Isso, dissera o velho ministro depois de exalar um suspiro, não passava de um jeito otimista de encarar a vida. Porque, de fato, as pessoas abusam da liberdade.
Essa é a pinimba que ele tem com os Estados Unidos: os direitos dos indivíduos de fazer o que bem entendem permitem que eles se comportem mal às expensas de uma sociedade ordeira. Como se diz em Cingapura, de que valem todos esses direitos se dá medo de sair à noite?
Quando cheguei ao topo da colina, eu achava que seria recompensado com uma visão panorâmica de toda a cidade-Estado. Mas não havia vista nenhuma - só uma torre de comunicações enferrujada e uma cerca anticiclones, na qual um aviso numa placa alertava "Lugar protegido", perto de um desenho de tipo infantil que mostrava um soldado a apontar um fuzil para um homem com os braços erguidos.
Mais tarde, mencionei esse desenho a Calvin Fones, o psiquiatra. "Veja, isso demonstra o progresso que fizemos", diz ele. "Até alguns anos atrás, o mesmo aviso exibia um cara prostrado no chão, já fuzilado." Em seguida, como bom cingapuriano vivendo uma vida que não imaginava possível em nenhum outro lugar, ele riu.
National Geographic Brasil
A experiência sul-coreana de desenvolvimento estrutural: breves considerações
* Gilberto Tadeu Lima é Professor do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, da Universidade de São Paulo (FEA-USP) [giltadeu@usp.br]; Daniela Corrêa é economista pela FEA-USP e Mestranda em Economia pelo Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE-UFRJ) [daniela_gmc@yahoo.com.br]; Fernanda Cardoso é economista pela FEA-USP e Mestranda em Economia pelo IE-UFRJ [fgc13@uol.com.br].
Introdução
Entre 1961 e 1996, a versão coreana do modelo de crescimento asiático do tipo state-led growth alcançou o que alguns acreditaram ser o maior sucesso em termos de desenvolvimento na história, com o produto real crescendo à média de 8% no período, enquanto o salário real cresceu a uma taxa média anual de 7% (Crotty e Lee, 2002).
No início da década de 60, a Coréia do Sul era um país em desenvolvimento pobre, com uma atividade manufatureira reduzida, e altamente dependente da ajuda externa. Entre 1965 e 1979, porém, o crescimento do produto real do país ocorreu à média de 9% ao ano, com o setor manufatureiro crescendo a quase 20% anuais. As políticas de estímulo ao desenvolvimento industrial, apoiadas em elevadas taxas de endividamento externo, parecem ter contribuído para a forte crise que se abateu sobre a economia do país no início da década de 80. Poucos anos depois, porém, a Coréia do Sul já se mostrava recuperada, e a estratégia de produção voltada para a exportação passou a gerar elevados superávits comerciais, permitindo ao país honrar suas dívidas e recuperar a credibilidade.
Com a crise que se abateu sobre o país em 1980, o declínio do produto real coreano foi de 4,8% e a inflação dobrou, passando de 14,4% em 1978 para 28,7% naquele ano. A proporção dívida/produto saltou de 28% para 45%, e o déficit em conta corrente chegou a 9% do produto. O país parecia necessitar, então, de uma combinação de políticas macroeconômicas de estabilização, liberalização financeira e comercial, e de uma reestruturação econômica. A recuperação foi bastante rápida, e o crescimento econômico real superou os 7% durante 1981-84; em 1984, a inflação já havia caído para 2,3% e o déficit em conta corrente estava abaixo dos 2% do produto (Collins, 1990). O país encerrou a década de 80 com uma taxa média de crescimento anual de cerca de 7,7%.
A década de 90, apesar da crise asiática – que fez o crescimento do produto apresentar um desempenho negativo de quase 7% em 1998 –, terminou com uma taxa média de crescimento anual de aproximadamente 6,3%; entre 2000 e 2004, a despeito das modestas taxas de crescimento do produto mundial, que foram de 2,8%, o país cresceu a uma taxa média de 5,4%, que, apesar de abaixo da média dos anos anteriores, pode ser considerada como bastante satisfatória.
A década que precedeu a crise deflagrada em 1997 foi marcada por fortes pressões externas dos governos do G7 e das firmas e bancos estrangeiros que queriam participar do “milagre” sul-coreano, e por pressões internas dos grandes conglomerados familiares – os chaebols – e indivíduos ricos que queriam se libertar
das restrições governamentais. Naquele ano, o Estado pôs fim ao seu tradicional
controle sobre as decisões de investimento dos chaebols, reduziu substancialmente
a regulação sobre o mercado financeiro doméstico e, de modo crítico, liberalizou
os fluxos de capitais de curto prazo. Essa liberalização rápida e mal delineada
levou a um acelerado influxo de empréstimos de curto prazo de bancos estrangeiros. O crédito externo de curto prazo passou de US$ 12 bilhões em 1993 para US$ 32 bilhões em 1994, US$ 47 bilhões em 1995, e chegou a US$ 67 bilhões em 1996. Esses fundos ajudaram a sustentar um boom de superaquecimento na economia, puxado pelos investimentos, e criou problemas financeiros sérios. Em 1997, depois do início da crise financeira asiática, os bancos estrangeiros exigiram o pagamento imediato dos empréstimos, o que os bancos sul-coreanos, sem liquidez, e as empresas do país, altamente alavancadas, eram incapazes de cumprir. Próximo ao risco de default, o governo aceitou um empréstimo do Fundo Monetário Internacional (FMI) para quitar as dívidas dos bancos e das empresas nacionais, em troca de ceder à instituição o controle da economia do país.
Como será exposto a seguir, a experiência sul-coreana de desenvolvimento estrutural não está associada a nenhum pacote de medidas macroeconômicas concentradas no tempo, mas antes a uma longa história de políticas consistentes, coerentes e estáveis, conforme apresentado no que segue. Cabe esclarecer, porém, que essa apresentação será seletiva e direcionada, prioridade sendo dada aos elementos estruturais da experiência de desenvolvimento do país.
Fatores históricos e sociais
As heranças históricas que estão imbuídas em práticas institucionais e comerciais são os mais importantes determinantes da convergência de produtividade por meio do avanço tecnológico, na medida em que geralmente modelam o ambiente político, e determinam o sucesso ou o fracasso de programas de desenvolvimento subseqüentes. No caso, destacam-se três condições iniciais: a herança colonial da expansão da educação primária de menos de 5% para 30% nos anos 30; uma reforma agrária realizada antes que se formassem grupos de interesse; e a expansão da educação primária a partir da metade da década de 50, sob a influência do sistema de educação de massa norte-americano. São considerados ainda de fundamental importância os significativos episódios de mudança e de convergência de produtividade, e a capacidade social de transformar uma economia baseada na agricultura em uma economia industrial em estágio inicial, e de uma indústria intensiva em mão-de-obra para uma indústria intensiva em capital e tecnologia (Pyo e Ha, 2005).
De acordo com um estudo do Banco Mundial (World Bank, 2004), a educação ocupa uma posição de destaque na cultura sul-coreana. A ética confuciana prevalecente no país fortaleceu o valor da educação. A expansão continuada do sistema educacional, especialmente nos níveis secundário e terciário, forneceu a possibilidade de mobilidade social até para as classes mais desfavorecidas. Esse processo também dotou o país de uma mão-de-obra mais produtiva e tornou-o apto a tirar vantagem de oportunidades de exportação.
Investimento e produtividade
Entre as muitas razões sugeridas para explicar o sucesso dos países do leste asiático, a taxa de investimento e a orientação para a exportação dessas economias desfrutam de menção privilegiada, e são chamadas de “motores do crescimento”, na medida em que sua força parece impulsionar a economia como um todo. Tal visão é baseada tanto no argumento empírico quanto no teórico. O argumento empírico é o de que a maior parte dos países do leste asiático que apresentaram elevadas taxas de crescimento também desfrutaram de taxas expressivas de investimento e são exportadores bem-sucedidos. O argumento teórico em relação ao investimento é o de que a alta taxa de investimento aumenta o estoque de capital e pode alimentar de forma permanente a taxa de crescimento, por meio de economias de escala e outros efeitos indiretos benéficos. No caso das exportações, o argumento teórico é o de que a orientação para a atividade exportadora aumenta a abertura da economia e, por expô-la à tecnologia e à competição externas, facilita a ocorrência de uma taxa de progresso tecnológico mais elevada.
Um aspecto que distingue o ajuste sul-coreano da experiência da maioria dos países latino-americanos, de acordo com Crotty e Lee (2002), é que o país manteve altas taxas de investimento. Tal investimento, concentrado nas indústrias de exportação, ajudou no grande crescimento dos anos 60 e 70 e na recuperação rápida dos anos 80.
Antes da crise asiática, a versão coreana do modelo econômico guiado pelo governo era universalmente admirada pelas taxas de crescimento recordes de longo prazo alcançadas pelo país. No tradicional modelo econômico, a política industrial governamental guiou o processo de desenvolvimento. Os governantes coreanos, em conjunto com os líderes empresariais, identificavam o degrau tecnológico seguinte a ser escalado para se desenvolver satisfatoriamente, e ajudavam firmas selecionadas a entrarem e prosperarem nas indústrias desejadas, através da alocação de crédito a taxas menores do que as de mercado, de pesquisa e de assistência no desenvolvimento, e proteção temporária tanto da competição doméstica quanto da externa (Crotty e Lee, 2002).
Para assegurar a realização eficiente de investimento em termos de montante e setores beneficiados, o governo regulou e coordenou cuidadosamente os planos de investimento dos conglomerados altamente diversificados controlados por famílias – os chaebols. O governo controlava tanto o sistema bancário doméstico quanto os fluxos de capital para o exterior a fim de regular os gastos com investimento dos chaebols1. Os controles sobre os fluxos de capitais foram necessários nas primeiras décadas, para que o Estado pudesse alocar os empréstimos estrangeiros requeridos para financiar o investimento que excedia a poupança doméstica. Nos últimos anos, eles foram requeridos para evitar a saída de capital e, ao fazer isso, mantiveram o volume crescente de poupança nacional dentro do sistema financeiro doméstico e asseguraram que os chaebols não pudessem escapar do controle estatal pela utilização de fundos externos (Crotty e Lee, 2002).
A rápida evolução da taxa de acumulação de capital, que foi a base do sucesso da industrialização, exigiu que os bancos controlados pelo Estado fornecessem crédito liberal para chaebols selecionados, de modo que eles pudessem investir mais do que seus ganhos retidos. Até a eclosão da crise asiática, o governo estava apto a blindar o altamente alavancado setor real da economia do severo aperto financeiro através do seu controle sobre os fluxos de capitais, mesmo em face de grandes choques externos (Crotty e Lee, 2002).
Pyo e Ha (2005) afirmam que a experiência sul-coreana de rápido crescimento da produtividade pode ser explicada em três estágios. Durante o primeiro estágio de desenvolvimento econômico (1962-1976), o governo adotou uma estratégia de desenvolvimento baseada no excedente de mão-de-obra. Esse excedente de trabalho, ajudado pela rápida expansão da educação primária, dominou o cenário no primeiro período. Também nesse estágio, a mudança do peso do setor primário para o secundário foi possibilitada pela migração do campo para a cidade. No segundo estágio (1977-1986), a economia sofreu os efeitos da segunda crise do petróleo, e teve de realizar uma reestruturação dos investimentos em indústrias pesadas e químicas realizados no fim dos anos 70. Nesse segundo período, então, ocorreu uma maior mudança intra-industrial
orientada por iniciativas governamentais. O terceiro estágio (1987-2003) é caracterizado por uma transição turbulenta de um regime autoritário para um mais democrático. Este é o período em que a Coréia do Sul instituiu a liberalização da importação e a abertura ao mercado de capital, ao aderir à Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e à Organização Mundial do Comércio (OMC). Nesse estágio, conforme a economia se movia para uma estrutura mais intensiva em tecnologia e informação, e mais orientada para o setor de serviços, a qualidade do trabalho se tornava mais importante do que antes. Para Pyo e Ha (2005), o episódio da rápida ampliação de produtividade foi possibilitado por uma interação bem sucedida entre as forças de mercado e a intervenção governamental.
Eficiência e credibilidade das políticas públicas públicas2
O sucesso do país em combinar um rápido crescimento econômico com uma significativa redução nos níveis de pobreza é algo compartilhado por poucos países. No início do seu processo de desenvolvimento, a pobreza no país era um problema tão grande quanto para a maioria dos outros países em desenvolvimento. O que é notável no caso sul-coreano, entretanto, é a velocidade e o grau com que foi superado o problema. O esforço de redução dos índices de pobreza obteve sucesso no fim dos anos 80. Em 1997/98, por conta da crise asiática, os níveis de pobreza aumentaram, mas essa tendência foi rapidamente revertida e a taxa de pobreza voltou a declinar.
Nos anos 90, o produto real cresceu mais de 5% por ano, com exceção de 1998. O desemprego estava em níveis baixos antes da crise de 1997-98. Em resposta à crise, o governo implementou drásticas reformas para corrigir a debilidade estrutural na sua economia. A reestruturação ocorreu nos setores corporativo, financeiro e trabalhista a fim de promover transparência, eficiência e flexibilidade. A partir de 1999, a economia mostrou uma rápida recuperação. A taxa de pobreza absoluta apresentou um declínio acelerado no período entre 1975-2001. A pobreza absoluta foi aliviada pelo rápido crescimento da renda, apesar da piora em termos de pobreza relativa.
O aspecto básico para a rápida redução da pobreza foi a aceleração na taxa de crescimento do produto. A estratégia de alto crescimento foi adotada, reconhecendo-se que ela requereria um substancial aumento na taxa de investimento. Entretanto, como a Coréia do Sul prescindia dos recursos para financiar esses investimentos, eles deveriam ser emprestados do exterior. Porém, como os recursos externos emprestados devem ser pagos em moeda estrangeira, fez-se necessário um programa de incentivo às exportações, como meio de obter a moeda de câmbio necessária, o dólar. O corolário lógico para a estratégia de alto crescimento residia extensivamente, portanto, na expansão das exportações. Além disso, a estratégia de “olhar para fora”, segundo a qual o país deveria competir de maneira vigorosa no mercado internacional, forçou-o a empreender esforços continuados para a mobilização de recursos de maneira eficiente e para o crescimento de sua produtividade.
Um fator chave para o sucesso coreano foi o comprometimento das autoridades com o mais alto nível de desenvolvimento econômico, e a forte convicção de que as políticas anunciadas tinham de ser implementadas. A capacidade do país de implementar planos e projetos prontamente, e dentro dos custos orçados, deriva da estrutura de tomada de decisão econômica e da qualidade dos serviços administrativos que sustentam tais políticas. A implementação de políticas foi realizada por meio de uma rigorosa estrutura de recompensas e punições. O resultado disso foi um considerável crescimento na percepção pública de que o governo realmente era capaz de cumprir o que prometia.
O crescimento rápido, baseado em uma rápida expansão das exportações em adição aos recursos gerados, alterou a estrutura da produção na direção da vantagem comparativa. A competição no âmbito da economia mundial também forçou o país a atentar continuamente para assuntos relacionados à qualidade dos recursos humanos e à produtividade.
Três grupos de fatores explicam o bom desempenho exportador sul-coreano:(i) as decisões do governo e os processos de implementação de liberalização comercial e redução de tarifas (comprometimento do governo de aumentar as exportações; o aprofundamento do processo de industrialização, que deveria ser amplamente baseado em importações, seria financiado pelo saldo das exportações – “exports first”); (ii) uma série de incentivos à exportação (por exemplo, exportadores que atingissem suas metas de exportação tinham garantido acesso facilitado ao crédito, entre outros benefícios, e reuniões constantes entre governo e empresários para discutir estratégias e eliminar barreiras às exportações); e (iii) a habilidade em tomar vantagens táticas das oportunidades oferecidas pelo ambiente internacional (sobretudo por causa de suas ligações históricas com o Japão, a Coréia do Sul manteve uma forte relação comercial com aquele país, que também serviu como fonte de boa parte da tecnologia do país).
A habilidade de competir internacionalmente em itens altamente sofisticados indica a boa qualificação da mão-de-obra. O investimento em recursos humanos, portanto, é outro ingrediente importante do sucesso sulcoreano. Uma das mais importantes conquistas do país durante os anos 50 foi a erradicação do analfabetismo por meio de uma rápida expansão das instituições educacionais. Outro importante incentivo ao alívio da pobreza, particularmente nas áreas rurais, veio da reforma agrária. A estratégia de rápido crescimento incluía o setor agrícola e logo mudou o cenário nas áreas rurais.
Em relação ao investimento direto estrangeiro (IDE), a política havia sido passiva até os anos 80. Entretanto, a liberalização que começou no princípio dos anos 90 fez com que o nível de IDE alcançasse, nos últimos anos, níveis de países da OCDE. O comércio externo e os fluxos de capitais também foram gradualmente liberalizados nos anos 90, sendo a liberalização acelerada com a introdução de um sistema de câmbio flexível, em resposta à crise de 1997.
Segundo Hattori e Sato (1997), pode-se descrever o desenvolvimento da economia sul-coreana como conseqüência da industrialização conduzida pelas exportações, com acentuada dependência em relação aos EUA e ao Japão. Ou seja, a Coréia do Sul alcançou um alto nível de crescimento primeiramente por importar bens de capital e bens intermediários do Japão, processando-os pela utilização de fontes ricas de mão-de-obra barata, pela capacidade de absorver grandes quantidades de mão-de-obra desqualificada no processo de produção, o que resultou em melhoras na distribuição de renda. E, apesar da convergência dos padrões industriais para padrões intensivos em capital e tecnologia, a dependência com relação à importação da maioria dos bens de capital e bens intermediários, especialmente do Japão, permanece tão forte quanto antes, e os mercados para os bens produzidos continuam sendo predominantemente externos, com destaque para os EUA.
A reestruturação neoliberal e a participação estrangeira
Na década que precedeu 1997, as estruturas características da economia guiada pelo Estado foram desmanteladas, sob a pressão dos governos do G7, das firmas e bancos estrangeiros que queriam compartilhar do “milagre” sul-coreano, e das pressões internas dos grandes conglomerados familiares – os chaebols –, além da classe rica, que queria liberdade em relação às restrições governamentais. O Estado acabou com seu tradicional controle sobre as decisões de investimentos dos chaebols, reduziu substancialmente a regulação dos mercados financeiros domésticos, e atenuou os controles sobre o capital estrangeiro, com agressiva desregulamentação dos fluxos de capital de curto-prazo (Crotty e Lee, 2005).
O capital estrangeiro de curto prazo, cujo montante somava US$ 12 bilhões em 1993, aumentou para US$ 32 bilhões no ano seguinte, US$ 47 bilhões em 1995 e US$ 67 bilhões em 1996. Esses fundos ajudaram a criar um boom investidor e um superaquecimento, criando uma séria fragilidade financeira na economia. Em 1997, depois da eclosão da crise financeira asiática, os bancos estrangeiros recusaram-se a renovar os empréstimos de curto prazo, requisitando seus pagamentos. Os bancos coreanos, sem liquidez, e as firmas endividadas ficaram à beira do default, e o governo do país aceitou o empréstimo do FMI para pagar os credores internacionais. Em troca, o FMI obteve o efetivo controle da economia sul-coreana.
Na análise de Crotty e Lee (2005), o desempenho da economia coreana pós-intervenção do FMI está muito abaixo daquele verificado nos anos anteriores: a taxa média de crescimento anual do produto entre 1998 e 2004 ficou em 4,2%, bem abaixo dos 8% de todo o período pré-crise e abaixo também do crescimento entre 1993 e 1997, que ficou em 7,1% ao ano. O consumo, que cresceu a uma taxa anual média de 6,5% ao ano entre 1993 e 1997, despencou para uma taxa de crescimento de 2,3% ao ano entre 1997 e 2004. Segundo os autores, o FMI reconhecia que em 1997 a Coréia do Sul enfrentava apenas uma crise de liquidez, e não uma falência generalizada no sistema. Porém, o empréstimo oferecido, na condição de “extrema condicionalidade estrutural”, deu à instituição as condições de impor seu objetivo de longo prazo em relação ao país: a destruição do modelo econômico tradicional, com forte intervenção do Estado. As reformas estruturais exigidas incluíram a necessidade de ruptura dos laços entre governo e empresas, a garantia da integração da economia nacional aos mercados financeiros internacionais, o aumento da participação estrangeira no sistema financeiro doméstico, e a remoção de barreiras ao crescimento, como os monopólios (materializados nos chaebols).
Em janeiro de 1998, o recém-estabelecido governo Kim Dae Jung anunciou os cinco princípios da reestruturação corporativa, cuja proposta era acabar com a dominância tradicional dos grandes conglomerados chaebols, introduzir uma maior pressão competitiva sobre essas firmas e aumentar a eficiência produtiva.
Os princípios eram os seguintes: (i) maior transparência; (ii) o fim das garantias sobre o débito externo dos conglomerados; (iii) uma drástica e imediata redução da alavancagem corporativa; (iv) concentração dos chaebols nos setores chave; e (v) uma tentativa de enfraquecer o controle familiar e se mover em direção ao capitalismo acionário global, com maior responsabilidade administrativa para acionistas minoritários. Outros objetivos adicionados em 1999 incluíam uma reduzida influência dos chaebols nos mercados financeiros e a diminuição da participação cruzada entre os chaebols. O objetivo, por conseguinte, era transformar os chaebols em empresas mais especializadas, com governança corporativa eficiente e com uma alavancagem muito menor (Crotty e Lee, 2002).
Crotty e Lee (2005) afirmam que os gastos com investimentos no pós-crise estagnaram: o investimento bruto, que ficava entre 35% e 40% do produto entre 1990-97, a partir deste último ano ficou entre 25% e 31%, o que coloca uma séria ameaça à prosperidade futura. Na nova economia coreana, os lucros são crescentemente utilizados para aumentar os dividendos, comprar participações e criar estoques de moeda, em vez de financiar investimentos. Os bancos controlados por capital externo realizaram uma mudança no perfil de seus empréstimos, que passaram de empréstimos para corporações para empréstimos pessoais, o que secou a principal fonte de financiamento de investimentos.
As políticas neoliberais explicitaram a fragmentação da economia e da sociedade coreana. A lacuna entre os grandes chaebols no setor exportador e as pequenas e médias firmas no setor doméstico aumentou nos últimos anos (Crotty e Lee, 2005). A participação dos trabalhadores no mercado informal – caracterizado pelas piores condições de trabalho e de remuneração –, incluindo trabalhadores com contratos temporários e de meio-período, chegou aos 56%, o maior índice entre os países da OCDE. A participação dos trabalhadores na renda caiu significativamente, de 62,3% em 1997 para 58,8% em 2004, fato que se mostra ainda mais grave quando se constata que a participação de indivíduos caracterizados como “trabalhadores” aumentou de 61,7% em 1998 para 66% em 2004. Os índices de pobreza e de desigualdade também evoluíram negativamente entre o período pré e pós-adoção das reformas liberalizantes.
A liberalização da conta de capital foi uma das principais causas da crise3. Em maio de 1998, o governo aboliu os limites na participação acionária das empresas que o capital estrangeiro poderia ter, facilitando a agressiva onda de fusões e aquisições que começara em 1997. O governo também concentrou esforços na venda de importantes instituições financeiras para compradores estrangeiros e liberalizou as restrições em relação aos empréstimos no exterior.
O fluxo de capitais aumentou consideravelmente em conseqüência dessas medidas liberalizantes, e iniciou-se uma onda de IDE no país. Com a forte desvalorização da moeda local, o won, entre o fim de 1997 e o início de 1998, os ativos coreanos praticamente entraram em uma “liquidação” que não estava aberta para os agentes domésticos. Encorajados pela desregulamentação, pela queda no preço dos ativos e pela forte desvalorização da moeda, os fluxos de IDE acumulados entre 1998 e 2000 foram dois terços maiores do que o total de IDE recebido entre 1962 e 1997 (Crotty e Lee, 2005).
Segundo Chang, Park e Yoo (1998), a decisão de liberalização da conta capital foi, de certa forma, uma conseqüência do sucesso econômico. Até o ano de 1986, a economia havia apresentado déficits crônicos na conta corrente, algo que motivou o – e permitiu ao – governo a adotar controles de capitais estritos.
Porém, os amplos superávits comerciais entre 1986 e 1989 produziram um excesso de liquidez no sistema, com que o governo se viu estimulado a relaxar os controles. Embora os superávits comerciais tenham desaparecido logo em seguida, o influxo de capitais que o substituiu no início dos anos 90 seguiu estimulando o governo a relaxar os controles de capitais, que se viram reduzidos praticamente à insignificância em 1995. Com a redução expressiva nas restrições ao endividamento externo, este teve uma explosão nos anos seguintes. De fato, a dívida externa quase triplicou de US$ 44 bilhões em 1993 para US$ 120 bilhões em setembro de 1997. Embora como proporção do produto não fosse elevada4, a dívida externa coreana tinha uma característica bastante indesejável, sua curta maturidade. De fato, a parcela de dívida externa de curto prazo (menos de um ano de maturidade) no total subiu de um nível – já elevado – de 43,7% em 1993 para um nível ainda mais expressivo de 58,3% no fim de 1996.
Segundo Mah (2006), as políticas adotadas a partir da crise econômica em 1997, tais como a promoção dos fluxos de IDE, refletiram a filosofia econômica do presidente Kim Dae Jung, em conformidade com o pacote de políticas proposto pelo FMI. A partir de então, o governo coreano passou a trabalhar ativamente na implementação das condicionalidades do FMI, que incluíam diversas reformas estruturais. As reformas nos setores financeiro e corporativo contribuíram para o fortalecimento dos setores bancário e corporativo (chaebols), atraindo os fluxos de IDE.
Os problemas mais sérios criados pelo aumento da propriedade estrangeira na economia foram sentidos, sobretudo, no setor financeiro. A abertura dos mercados financeiros foi um componente central da estratégia oficial de transição rápida de um sistema financeiro altamente regulado e “reprimido” para outro com menor nível de regulação e globalmente mais aberto. As instituições
estrangeiras foram vistas como uma solução rápida para a mudança da estrutura e maior eficiência dos mercados financeiros do país. Os bancos domésticos seriam forçados a competir com as instituições estrangeiras, ou sair do mercado. Dado que o governo havia nacionalizado muitas instituições financeiras do país, no processo de absorção de suas dívidas, ele se encontrava em posição de vender essas firmas para quem escolhesse, e a preferência foi dada para os compradores estrangeiros (Crotty e Lee, 2005).
A participação estrangeira nos grandes bancos comerciais aumentou significativamente a partir da crise, e gigantes mundiais do setor bancário começaram a entrar no mercado local. A participação estrangeira nos oito principais bancos privados do país cresceu de 12% em 1998 para 64% em 2004.
O aumento na participação estrangeira no mercado bancário coincidiu com uma forte queda no financiamento de investimentos. De acordo com um estudo de 2003 do Banco da Coréia do Sul, entre 1998 e 2003 os bancos estrangeiros reduziram os empréstimos às corporações em 33% em relação ao total, enquanto os bancos domésticos reduziram tais empréstimos em 25%. Os bancos estrangeiros também reduziram mais profundamente os empréstimos às pequenas e médias empresas do que os bancos nacionais. A participação dos empréstimos a corporações no total de empréstimos bancários concedidos caiu de 75% em 1996 para 43,5% em 2004.
Para Chang (2003), a crise financeira coreana de 1997 deveu-se à inércia dos chaebols e do governo coreano, que não realizaram as adaptações necessárias para responder às mudanças no cenário externo. Uma vez abandonado o modelo de planejamento central pelo governo, a transição para a liberalização econômica na década de 80 criou um vácuo sob o qual nem o governo e tampouco o mercado conseguiam monitorar as atividades de investimento dos chaebols. A rede intrincada de shareholdings cruzadas, garantia de dívidas e integração vertical resultou em uma extensiva rede de subsídios cruzados e manteve os chaebols como negócios lucrativos. A intervenção contínua do governo nas práticas de empréstimos bancários criou um problema de “risco moral” tanto para os chaebols quanto para os próprios bancos. De acordo com o autor, a estrutura dos chaebols inibiu as adaptações necessárias, e, para quase todos os propósitos práticos, tornouse quase disfuncional.
Chang, Park e Yoo (1998), por sua vez, creditam a origem da crise na Coréia do Sul ao desmantelamento dos mecanismos tradicionais de política industrial e regulação financeira, e não à perpetuação do regime tradicional. Os autores acreditam que a crise coreana não foi resultado da intervenção excessiva do governo, que teria encorajado o “risco moral”; para eles, a crise é o resultado da realização de investimentos excessivos e descoordenados por parte do setor privado, financiado por dívida externa de curto prazo, cuja contração foi possível pela acelerada e mal-desenhada liberalização financeira (especialmente a liberalização da conta de capital).
O desmantelamento dos mecanismos tradicionais de geração e coordenação dos investimentos de longo prazo teriam tornado a dívida corporativa e as situações de empréstimo mais difíceis, ainda que não a ponto de detonar uma crise. Para esses autores, o resultado final não pode ser explicado sem referência ao pânico que acabou atacando os mercados financeiros após a crise no Sudeste Asiático, e à falência de grandes corporações financeiras (como Kia e Hanbo). Se é verdade que havia certas forças estruturais e externas às quais era difícil de se resistir (como o crescimento do poder dos conglomerados, o aumento das pressões dos EUA pela abertura do mercado etc.), falhas na condução das políticas, sob os auspícios do FMI, teriam grande parcela de responsabilidade na crise.
Considerações finais: lições e perspectivas
As grandes lições que podem ser tiradas a partir da experiência sul-coreana são as seguintes: um ambiente político estável fornece um estágio sólido para o ajustamento a choques internos e externos e o investimento, tanto em capital físico quanto humano, é fundamental para o crescimento econômico (Collins, 1990). Com relação às perspectivas futuras, Pyo e Ha (2005) argumentam que, para que a Coréia mantenha o crescimento sustentável e renove a convergência de produtividade, é necessário que o país encontre um novo paradigma de avanço tecnológico e um sistema de crescimento orientado sob um ambiente de mudanças sociais e políticas bastante significativas.
Crotty e Lee (2005), por sua vez, acreditam que a redução nos gastos com investimentos no pós-crise coloca uma séria ameaça à prosperidade futura da economia do país, na medida em que na sua nova economia os lucros são crescentemente utilizados para aumentar os dividendos, comprar participações e criar estoques de moeda, em vez de financiar investimentos produtivos. Os bancos controlados por capital externo também conduziram uma mudança no perfil de seus empréstimos, o que secou a principal fonte de financiamento de investimentos.
Outro aspecto relevante da experiência coreana foi a capacidade de conciliar o rápido crescimento econômico com uma significativa redução nos níveis de pobreza. O esforço de redução dos índices de pobreza já alcançava sucesso no fim dos anos 80. Em 1997/98, por conta da crise asiática, os níveis de pobreza aumentaram, mas essa tendência foi rapidamente revertida e a taxa de pobreza voltou a declinar. O desemprego estava em níveis baixos antes da crise de 1997-98, e em resposta a ela o governo coreano implementou drásticas reformas para corrigir a fraqueza estrutural na sua economia. A reestruturação ocorreu nos setores corporativo, financeiro e trabalhista a fim de promover transparência, eficiência e flexibilidade. A partir de 1999, a economia coreana mostrou uma rápida recuperação.
Destaca-se ainda o comprometimento das autoridades com o mais alto nível de desenvolvimento econômico e a convicção de que as políticas anunciadas tinham de ser implementadas. Assim, a implementação de políticas planejadas foi realizada por meio de uma rigorosa estrutura de recompensas e punições, cujo resultado foi um considerável crescimento na percepção pública de que o governo realmente é capaz de cumprir o que promete.
As medidas adotadas a partir da crise tiveram êxito na reversão das condições econômicas. Porém, muitos indicadores recentes revelam uma piora na distribuição de renda e nas condições do trabalho e sua seguridade, o que, segundo Mah (2006), é um fenômeno preocupante para uma economia marcada pela baixa mobilidade de trabalho.
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4 De fato, a razão entre a dívida externa e o produto era de apenas 22% em 1996, não passando de 25% no auge da crise financeira do ano seguinte. Os números correspondentes de fim de 1995 eram 70% para o México, 57% para a Indonésia, 35% para a Tailândia, 33% para a Argentina e 24% para o Brasil. Além disso, em outro indicador de vulnerabilidade externa tradicionalmente utilizado, a razão entre o serviço do endividamento e as exportações, o desempenho coreano também era bastante razoável. Com efeito, essa razão era de 5,4% em 1995 e de 5,8% em 1996, enquanto os níveis correspondentes de fim de 1995 eram de 24,2% para o México, 30,9% para a Indonésia, 10,2% para a Tailândia e 37,9% para o Brasil.
Revista de Economia e Relações Internacionais - FAAP
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