quarta-feira, 17 de julho de 2013

CORDILHEIRA DOS ANDES

As montanhas sagradas

As montanhas sagradas

A vida nos vales e picos nevados dos Andes peruanos é quase a mesma do tempo dos incas. Mas tudo pode mudar com o aquecimento global

Texto: Maria Emília Coelho

Passo lento e respiração profunda. Em meio ao ar rarefeito e à cegueira branca de uma nevasca, surge Nicolasa. A menina caminha firme atrás da vaca desgarrada do rebanho. Acredita que os apus, ou os espíritos das montanhas, encontram-se a seu lado e vão ajudá-la a recuperar o animal perdido. Estamos a 5 mil metros de altitude, a caminho de Ausangate, um dos picos nevados da Cordilheira Vilcanota, uma das zonas mais inóspitas dos andes peruanos. Justamente por isso, é um lugar onde as comunidades rurais experimentam poucas mudanças nos costumes ancestrais. As formações gigantes, imponentes e disformes, respeitosamente chamadas de apus, ocupam o topo do panteão das divindades incas. Aqui, são as montanhas que mandam, logo descubro, enquanto o ar penosamente enche meus pulmões.
Nossa caminhada por esse solo sagrado começou na tarde anterior. Depois de três horas de ônibus a partir de Cuzco (a antiga capital inca), colocamos o pé no chão quando alcançamos o vale de Pitumarca. A partir desse ponto, são cinco dias sem energia elétrica, banho quente e comunicação com o resto do planeta. Nosso objetivo é percorrer uma rota ainda pouco conhecida de 52 quilômetros de subidas e descidas, entre comunidades indígenas e picos nevados, até o topo, pela face sudeste do apu.
Além de ostentar o título de maior montanha do sul do Peru, com 6.384 metros, Ausangate é sagrada para os descendentes dos incas. Trata-se de uma espécie de chefe dos apus, uma autoridade suprema entre todas as montanhas. Não é pouca coisa. Na comunidade de Chillca, a 4.300 metros de altitude, os nativos contam que o apu todo-poderoso chegou a decidir batalhas para os incas diante dos invasores espanhóis. Certa vez, teria lançado uma tempestade de granizo vermelho e de relâmpagos sobre os soldados, enquanto o povo se escondia da fúria de suas armas. “Graças ao apu, nossos cultivos e animais estão bonitos e saudáveis”, declara o músico Orlando Garcia, líder da comunidade.

Berço de lhamas e alpacas
Ao longo do caminho, enquanto avançamos pela planície alta do vale de Pampa Uyuni, bando de lhamas e alpacas aparecem para compor o cenário. Diz a lenda que as lagoas da região são o berço sagrado desses animais, símbolos maiores dos andes. Os pastores de Ausangate estão entre os pioneiros na domesticação dos camelídeos. A atividade, que rende lã e carne, é a principal fonte de renda da população local. No entanto, está sendo abandonada pelos jovens. Ao pararmos para conversar com uma família isolada nas alturas, o patriarca explica que os mais novos preferem arriscar a vida em cidades como Cuzco e Lima em busca de trabalho e de uma vida com mais “comodidades”.
A vida nessas alturas é de fato difícil. À medida que subimos, o clima fica mais frio e o ar mais rarefeito. A respiração parece falhar na óbvia tarefa de levar ar aos pulmões. As nuvens ganham espaço e o azul do céu pouco a pouco vira cinza. É possível sentir grau a grau a temperatura cair até o tempo fechar de vez. Os vapores de água da atmosfera se congelam e a neve vem abaixo. O frio vence as roupas, a pele, a carne e chega aos ossos. O fôlego some a cada passo, mas a beleza do lugar faz esquecer o cansaço. Tudo para chegar a Machucaray, a 4.800 metros de altura, ao pé do poderoso nevado.
A paisagem branca do Quelccaya, o nevado de 5.470 metros que avistamos, me faz lembrar do documentário Uma Verdade Inconveniente, do ex-vice-presidente dos Estados Unidos Al Gore, vencedor do Oscar. A montanha, considerada o maior glaciar tropical do mundo, é um exemplo dos estragos decorrentes do processo de aquecimento global, provocado pela crescente emissão de gases de efeito estufa na atmosfera. Segundo os cientistas, o ritmo de derretimento do Quelccaya aumentou dez vezes nos últimos 15 anos. Estudos do geólogo americano Lonney Thompson, que investiga o fenômeno no Peru desde 1974, apontam que, a longo prazo, o degelo afetará o clima e o abastecimento de água para 70% da população do país.

A ameaça ao gelo das montanhas

Para os nativos da região, no entanto, os efeitos das mudanças climáticas provocadas pelo homem já batem à porta. “Estamos preocupados”, conta Orlando, diante de uma pequena lagoa formada há poucos anos pelo derretimento do gelo. “Antigamente havia mais picos nevados. Em algumas montanhas, as neves eternas estão desaparecendo.”
Parece não restar dúvida de que os apus terão muito trabalho para manter geladas as montanhas peruanas. Pensando nisso, acompanho a oferenda à Mãe Terra (Pachamama) protagonizada pelos moradores da montanha. O ritual típico do universo religioso andino consiste em presentear a natureza com vinhos, sementes e folhas de coca, enquanto o xamã ora em quíchua. Nas primeiras horas da manhã, as montanhas se colorem de tons ocres – do amarelo ao vermelho, com pitadas de cinza e verde, refletindo o relevo policromático das for mações geológicas de 250 milhões de anos. Avistamos as vicunhas, espécie não domesticada de camelídeo andino – uma manada de 21 indivíduos, entre adultos e jovens, dá uma amostra da vida silvestre. A pelagem fina do animal tem alto valor comercial. Por décadas, esteve à beira da extinção por culpa de caçadores ilegais em busca de lã. Uma iniciativa do governo peruano em parceria com as populações indígenas mudou este cenário e a população de vicunhas cresce, em média, 8% ao ano.

O espírito dos valentes

Quando os lhamas aparecem, as vicunhas fogem, assustadas. Nossos olhos então são atraídos por uma formação sedimentária em tons vermelhos, amarelos e cinzas. São pedras gigantes nas quais é possível imaginar, sem muita alucinação, rostos humanos esculpidos. Conta a mitologia inca que o deus sol converteu essas montanhas em soldados, chamados de pururaucas, para defender Cuzco durante a invasão do reino Chanca, antes da chegada dos espanhóis. Segundo a lenda, os guerreiros de pedra representam o espírito dos valentes.
Nosso destino é ainda mais além: a comunidade de Osefina, a 4.600 metros. Ali, as mulheres usam técnicas imemoriais para produzir tecidos de lã de alpaca. Vivem, praticamente, sem contato com o modo de vida moderno e falam apenas o quíchua. “Gosto quando gente de fora vem conhecer nossa arte”, conta Eulogia Antaccasa, coordenadora da Associação das Tecelãs de Huayna Anta. A ideia do grupo é capacitar suas artesãs para que tecidos tingidos com plantas locais sejam comercializados mundo afora.
Na caminhada de volta ao vale de Pitumarca, seguimos o curso das águas presenteadas pelos apus. Elas cortam os andes e formam o rio Vilcanota, que mais adiante se transforma em Urubamba para se encontrar com o Apurimac e formar o Ucayalli. Este flui no sentido norte até se juntar ao Marañon e dar origem ao nosso rio Amazonas, nas proximidades de Iquitos. O destino das águas – das alturas andinas até as terras baixas da Amazônia – é motivo suficiente para saudarmos o Ausangate. Mas a última saudação vem à tona quando fico sabendo que, para os descendentes dos incas, essas águas retornam todas as noites aos andes pela Via Láctea, conhecida ali como rio das Estrelas.

Revista Horizonte Geográfico
FOTOS:
FOTO: MJF/ A magia dos Andes...
Machu Picchu em primeiro plano e Wayna Picchu ao fundo - www.niloborriello.com.br
O Planalto Marcahuasi - Andes - www.lonewolfadventure.net

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