quarta-feira, 17 de julho de 2013

CAPITALISMO

Para superar o subdesenvolvimento

O desenvolvimento capitalista se impõe historicamente por meio do processo de constante incorporação e propagação do progresso técnico capaz de elevar a produção e lucros crescentes. Sem isso, as condições de manifestação do subdesenvolvimento estão dadas, com a escassa e desigual difusão de novas técnicas de produção.
Por Marcio Pochmann
O desenvolvimento capitalista se impõe historicamente por meio do processo de constante incorporação e propagação do progresso técnico capaz de elevar a produção e, sobretudo, os ganhos de produtividade com lucros crescentes. Sem isso, as condições de manifestação do subdesenvolvimento estão dadas, com a escassa e desigual difusão de novas técnicas de produção que amplia a heterogeneidade estrutural por meio da produtividade setorial e regional.
Em síntese, constata-se que a dinâmica capitalista de apropriação de lucros acontece sob comando diferenciado. Nos países desenvolvidos, o avanço e a difusão do progresso técnico tendem a definir o ritmo de expansão da produção, enquanto nas nações subdesenvolvidas o comportamento da demanda (interna e externa) tende a estabelecer o ritmo e o sentido do crescimento da economia nacional. Isso porque a baixa capacidade de endogeneização do progresso técnico pelo processo de industrialização tardia termina por tornar a estrutura produtiva nacional desprovida de surtos de inovação tecnológica, bem como dependente da importação ou da presença crescente de corporações transnacionais na internalização do progresso técnico.
O resultado final passa a ser a limitada e heterogênea propagação das novas técnicas de produção, com crescimento diferenciado da produtividade pelo sistema econômico e, ainda, o seu desigual repasse para os salários dos trabalhadores e os preços finais dos produtos, que geram elevadas margens de lucro para os setores monopolistas. A escassez de condições internas para a autodeterminação demarca a produção da desigualdade pelo subdesenvolvimento e desvalorização do trabalho. Em virtude disso, o comportamento da produtividade tende a indicar se há ou não redução da heterogeneidade no interior do setor econômico.
Quando se analisam as informações relativas à indústria de transformação, observa-se que a produtividade (Valor da Transformação Industrial por ocupado) seguiu trajetórias distintas nas duas últimas décadas no Brasil. Durante a última década do século passado, por exemplo, o crescimento da produtividade na indústria de transformação brasileira de 4,5% ao ano, em média, ocorreu de modo extremamente desigual. Nas empresas com 500 e mais ocupados, a produtividade aumentou 8,4% em média ao ano, enquanto nas indústrias com menos de 50 ocupados não houve expansão da produtividade. Nas empresas industriais de 10 a 249 ocupados houve queda de quase 1% ao ano para o período de 1996 a 2001. Para o período mais recente, os ganhos de produtividade foram menores e de menor desigualdade segundo o tamanho dos estabelecimentos industriais. Para uma elevação média anual de 3,8% entre 2002 e 2007 na indústria de transformação, as empresas com até 29 ocupados tiveram ganhos de 4,5% em média ao ano, bem superior à expansão do conjunto das empresas com 500 e mais ocupados (2,8% ao ano).
Diferentemente dos anos 90, a produtividade na primeira década de 2000 ocorreu com forte expansão da produção e, por consequência, do emprego industrial, cujo ritmo de expansão médio anual foi de 4,2%. Entre 1996 e 2001, praticamente não houve crescimento importante da produção e do emprego, cuja variação média anual foi de apenas 0,8%. Ademais, percebe-se que no mesmo período de tempo as empresas com 500 e mais ocupados registraram redução do nível ocupacional de 0,8% ao ano, enquanto nas empresas de 5 a 29 ocupados o crescimento dos postos de trabalho foi de 4,1% ao ano.
Em pleno ambiente econômico gerado pela adoção de políticas neoliberais, o avanço da produtividade não se deu fundamentalmente pela expansão do valor da produção, mas pela contenção dos postos de trabalho motivada pela implementação dos procedimentos de terceirização da mão de obra ao longo da década de 1990. No período subsequente ocorreu, pelo contrário, forte elevação do crescimento do emprego industrial em todas as empresas, independentemente do tamanho do estabelecimento. As maiores empresas, inclusive, foram as que tiveram maior ritmo de expansão da ocupação (4,3% para empresas com 500 e mais trabalhadores, e 3,6% para empresas de 5 a 29 ocupados).
Da mesma forma que se analisa a evolução da produtividade intra-indústria de transformação por tamanho do estabelecimento, pode-se compará-la com o comportamento da produtividade industrial das empresas dos EUA. Entre 1996 a 2001, o ritmo de expansão da produtividade na indústria de transformação brasileira foi 8,2% inferior à verificada pela indústria dos Estados Unidos, mesmo tendo havido a queda de mais de 2/3 no custo do trabalho industrial do Brasil em relação ao da indústria de manufatura dos Estados Unidos. Entre os anos de 2002 e 2007, o crescimento da produtividade industrial nacional foi 2,7% maior que a estadunidense.
Neste mesmo período de tempo, o custo do trabalho na indústria de transformação do Brasil cresceu quase 110% em relação ao norte-americano. Com isso, parece não haver dúvidas que houve uma redução no grau de heterogeneidade no setor industrial, tendo em vista que a elevação da produtividade transcorreu com o crescimento do nível ocupacional e ampliação do custo de trabalho (indicador de repasse de produtividade para os salários). A elevação real do salário mínimo, com a ampliação das negociações coletivas de trabalho pelos sindicatos e o crescimento do emprego formal, contribuiu decisivamente para a redução da desigualdade intersalarial, bem como a elevação da participação do rendimento do trabalho na renda nacional.
Essas indicações de redução da heterogeneidade no interior do setor parecem expressar as opções governamentais mais recentes, de abandono das políticas neoliberais. A implantação de política voltada ao desenvolvimento produtivo e de formação de grandes grupos industriais tendeu a favorecer a geração de empregos internos, assim como impactou positivamente no avanço da produtividade das empresas de menor tamanho no Brasil. A manutenção desta política permite ao Brasil avançar em termos de superação de seu subdesenvolvimento.

Estratégia operária e neocapitalismo


Estratégia operária e neocapitalismo

Working-class strategy and neocapitalism
Iram Jácome Rodrigues

Professor livre-docente do Departamento de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo e pesquisador do CNPq. E-mail: ijrodrig@usp.br

I
Entre as questões suscitadas por Gorz, em seu livro Estratégia operária e neocapitalismo, há um tema que se sobressai: o local de produção como locus privilegiado do conflito entre capital e trabalho e das consequências organizativas propostas por este autor no que viria a ser uma nova estratégia de setores do movimento operário e do sindicalismo para os tempos de Welfare State.

Gorz inicia este seu trabalho contextualizando os aspectos mais gerais da relação entre socialismo e necessidade, e analisando as mudanças nas condições do capitalismo nos países centrais. Além disso, aponta que nesses países a extrema pobreza representaria apenas 20% da população. Com isto, tenta mostrar que ocorreu uma mudança fundamental naqueles países capitalistas mais desenvolvidos e, por essa razão, seria necessário repensar a estratégia do movimento operário e do sindicalismo nessas sociedades.

O socialismo nunca foi uma necessidade que se impusesse às massas com uma evidência fulgurante. Da revolta primitiva à vontade consciente de modificar a sociedade, nunca houve uma passagem imediata. O descontentamento dos trabalhadores, mesmo poderosamente organizados, a respeito de sua condição, nunca foi ultrapassado espontaneamente, visando uma colocação em questão daquilo que, na organização geral da sociedade, tornava sua condição insuportável (Gorz, 1968, p. 9).

O autor faz, nesse estudo, uma reflexão sobre as transformações ocorridas no capitalismo pós-Segunda Guerra Mundial, notadamente nos anos de 1950 e início da década de 1960, no que diz respeito ao advento das novas condições em que se estruturava a produção capitalista.

Nesse sentido, esse movimento, que alguns convencionaram chamar de fordismo, foi um arranjo institucional estabelecido entre atores sociais diversos: as grandes empresas, os grandes sindicatos de trabalhadores e o Estado, com vistas a manter uma política econômica de tipo intervencionista (keynesiana) de proteção do mercado interno, alguma redistribuição da renda no âmbito desses países e uma atenuação, em um primeiro momento, do conflito capital/trabalho, se comparado com os conflitos de classe do século XIX até os anos de 1930.

Por isso,

[...] a recusa da sociedade perdeu, nos países capitalistas avançados, sua base natural. Enquanto a miséria - isto é, a privação do que é necessário para viver - era a condição da maioria, a necessidade de um desabamento revolucionário da sociedade podia vir automaticamente. Proletários e camponeses miseráveis não tinham necessidade, para se erguerem contra a ordem existente, de saber que outra sociedade pretendiam construir: o pior era o presente; não tinham nada a perder" (Idem).

Já nas condições desse novo capitalismo, mesmo subsistindo, a miséria não afetaria mais do que 20% de seus habitantes. Além disso, "esta população, além do mais, não é homogênea; está concentrada em certas regiões, em certas camadas que não são representativas de sua classe: pequenos camponeses de regiões [distantes], anciãos, desempregados, operários sem qualificação etc. Essas camadas são incapazes de se tornarem a agrupar para exercer uma ação decisiva sobre a sociedade e o Estado. Elas têm necessidades comuns, mas não um projeto referente às condições satisfatórias. Aí está uma primeira razão pela qual a miséria não pode mais servir de fundamento à luta pelo socialismo" (Idem).

O que está sendo mostrado por André Gorz é que as condições tanto sociais como políticas e econômicas se modificaram com o advento do Estado de Bem-Estar Social. Assim, o sistema econômico-político-social que emergiu após 1945, e que perdurou até inícios dos anos de 1970, em grande parte da Europa Ocidental, Estados Unidos e Japão, foi responsável por uma estabilidade que representou um incremento do bem-estar e aumento da riqueza em todos esses países. Nesse período, além desses aspectos e das altas taxas de crescimento econômico, a democracia e o Estado de Bem-Estar foram consolidados. Além disso, o Estado estimulou o desenvolvimento da atividade produtiva por meio de empréstimos e investimentos de longo prazo (cf. Rodrigues, 2006, p. 205).

Esses investimentos, em cada país, coordenados pelos Estados nacionais, embora assumissem alguns aspectos mais específicos, tinham como principal característica o processo de regulação do Estado no que tange à política macroeconômica, ou seja, uma decisiva intervenção do Estado na economia, com o objetivo de garantir o equilíbrio no campo econômico e a paz social no terreno político. Essas singularidades manifestavam-se em diferenças no padrão dos gastos públicos, na organização do sistema de bem-estar social e na presença maior ou menor do Estado nas decisões econômicas.

Desse modo, o conjunto de arranjos institucionais e corporativos constituiu-se na essência do que veio a ser denominado compromisso fordista e foi o principal ponto de apoio de sua estruturação. Vale dizer, Estado, grandes corporações e sindicatos passaram a ser a nova base desse regime de acumulação, cuja característica era a produção em massa de bens padronizados e em série.

Nesse aspecto, o fordismo representou um aprofundamento e ampliação do taylorismo na medida em que relacionou diretamente as mudanças que estariam ocorrendo no trabalho com transformações nas condições gerais de existência do trabalho assalariado. O conjunto dessas transformações, entre outros aspectos, levou à institucionalização das relações capital/trabalho por meio de processos de negociação na empresa, nos setores econômicos e no plano nacional (cf. Aglietta, 1991).

Esse é o pano de fundo das reflexões de Gorz com relação às novas questões surgidas com o advento do Estado Social e, diante desses temas, seria importante repensar a estratégia operária. Como observa Queiroz (2006, p. 65), "a reflexão desenvolvida por Gorz nas décadas de 1950 e 1960 esteve intimamente vinculada a um objetivo específico: pensar as características que o capitalismo assumia e propor novas alternativas de luta à classe trabalhadora. Para isso, o que mostra que recusava as usuais e dogmáticas concepções que eram naquele momento predominantes na esquerda marxista, analisou as várias esferas para, daí, mostrar que modificações o capitalismo pós-guerra trazia consigo. Este confronto ocorria também em relação às tradicionais formulações táticas e estratégicas do movimento dos trabalhadores, o qual se encontrava ainda fortemente influenciado pela perspectiva da III Internacional"1.

É nessa perspectiva que Gorz abordará a questão de uma nova estratégia para o movimento operário que parte, principalmente, das "reformas não reformistas". Assim, "esta luta não faz depender, de critérios capitalistas de racionalidade, a validade e o direito tradicionalmente consagrado pela necessidade" (Gorz, 1968, pp. 13-14). No entanto, Gorz assinala que para uma mudança na direção dessa estratégia seria necessária também outra correlação de forças. Os trabalhadores teriam que conquistar poderes ou afirmar poderes. Em outras palavras, seriam necessárias reformas de estruturas.



II

Refletindo sobre um momento histórico de grandes transformações no capitalismo contemporâneo, o período que vai do final da Segunda Guerra Mundial até meados dos anos de 1960, Gorz explicita a demanda de controle do processo de trabalho que desempenha um papel central para seus argumentos. Pois essa demanda "adquire uma crescente significância em relação às lutas em torno dos salários e das horas de trabalho [...]. Enquanto a velha estratégia estava preocupada com demandas quantitativas, as demandas da nova estratégia são de natureza mais qualitativa. Ou seja, embora as demandas quantitativas ainda façam parte das principais preocupações da nova estratégia, sua importância parece diminuir à medida que o problema do controle operário se torna o núcleo das preocupações" (Silva, 2002, p. 104).

Assim, o tema do controle operário da produção, do controle do processo de trabalho, transforma-se para Gorz no cerne das mudanças necessárias para pensar a nova estratégia operária. Nesse aspecto, no contexto dos problemas tratados, o autor privilegia a questão do poder dos trabalhadores no âmbito da produção, do local de trabalho como central para a nova estratégia operária. Gorz observa que o proletariado, para que possa manter

[...] sua vocação de classe dirigente, deve primeiramente atacar a condição operária nos locais de trabalho porque é lá que, através das alienações mais diretas do trabalhador, como produtor e cidadão, a sociedade capitalista pode ser indiretamente contestada. E também porque é unicamente através da recusa consciente das relações opressivas de trabalho, através de uma ação consciente para submetê-las ao controle dos trabalhadores associados, através de uma vontade ininterrupta de autodeterminação independente das condições de trabalho, que a classe operária pode conservar ou afirmar permanentemente a autonomia de sua consciência de classe, a emancipação humana do trabalho como finalidade suprema" (Gorz, 1968, p. 46).

Neste caso, uma das questões subjacentes ao pensamento gorziano é trazer o local de trabalho para o centro da política. Na verdade, a "nova estratégia operária" vislumbrada por Gorz representa, ao mesmo tempo, uma crítica contundente à esquerda tradicional e, em certa medida, uma volta às raízes do movimento operário quando a questão do controle operário da produção, do trabalhador como produtor, estava em tela. Para Offe (1989, p. 176), por exemplo, "a unidade e coerência do trabalho" expressar-se-ia também no "orgulho coletivo dos produtores, uma consciência que reflexivamente expressa a teoria do valor do trabalho e o coloca (nas palavras da Crítica do Programa de Gotha) como 'a fonte de toda a riqueza e de toda a cultura'".

O tema da organização dos trabalhadores em seus locais de trabalho está presente desde o início do movimento operário. O que leva à organização no interior das empresas é uma tendência generalizada por parte da mão de obra no sentido de adquirir algum poder de controle sobre as condições de trabalho. De outra parte, representa, também, um aspecto da resistência do operariado diante da organização capitalista do trabalho, bem como expressa o forte conflito entre capital e trabalho nos albores do capitalismo em decorrência, entre outros aspectos, das condições draconianas, à época, do trabalho fabril.

Segundo Sturmthal, do ponto de vista histórico, a organização operária no interior da empresa frequentemente precedeu o nascimento do sindicato como instrumento de negociação entre capital e trabalho. Ainda de acordo com esse autor, nos anos de 1848-1849, em decorrência da revolução na Alemanha, "uma das instituições propostas foi a formação de conselhos operários" que tinham como principal objetivo, entre outros aspectos, a resolução das disputas e reclamações internas, a regulamentação das relações entre capital e trabalho na empresa e a criação de organismos de bem-estar social (cf. Sturmthal, 1971, pp. 33 e 111).

Esses aspectos podem nos ajudar a entender a recorrência às formas de organização de base quando de conflitos entre patrões e empregados. Na luta por seus direitos no interior do estabelecimento industrial, os trabalhadores procuram se organizar em seus locais de trabalho, nascendo assim a representação trabalhista nas empresas. Vale dizer, há uma tendência visível entre os assalariados, no bojo de grandes movimentos grevistas ou mesmo em greves isoladas, quando a questão já está disseminada na prática cotidiana das lutas operárias, de recorrer às organizações dos empregados nos locais de produção: chamem-se comissões de fábrica, comissões de empresa, conselhos operários etc.

Desse ponto de vista, quando Gorz enfatiza o tema do poder operário, significa, como observa Silva, a capacidade dos trabalhadores nas empresas de questionar mediante o controle operário da produção "as premissas [da] política de gestão da economia e das empresas capitalistas através do controle sobre os meios e as condições de sua formulação" (2002, p. 116).

Por isso, para que fosse possível construir essa nova estratégia seria necessário, segundo Gorz , relacionar as questões da produção, do cotidiano operário e da fábrica com o conjunto da sociedade:

A possibilidade de reunir em uma mesma perspectiva a condição operária no seio do processamento produtivo e no seio da sociedade, a possibilidade de fornecer dialeticamente motivos imediatos de descontentamento por razões profundas, inerentes às relações sociais e ao poder econômico e político, tal possibilidade surgiu de maneira mais ou menos explícita durante o desenrolar de todas as ações de massa do passado próximo. [...] Espontâneas ou demoradamente preparadas, todas essas ações punham em questão, de maneira explícita ou implícita, muitos outros problemas além do nível salarial. E demonstraram, cada uma a sua maneira, que, limitada unicamente ao aspecto salarial, a luta operária é imediatamente absorvida pela ondulação tática do patronato e do Estado; corre o perigo de atolar-se nas reivindicações de categorias e corporativas; mesmo vitoriosas sob este aspecto, arrisca-se a liquidar-se por uma derrota estratégica (Gorz, 1968, p. 38).

É fundamental, de acordo com Gorz,

[...] unir, na estratégia reivindicativa, a condição dos trabalhadores em seus locais de trabalho à sua condição no seio da sociedade. [...] Essa possibilidade é dada pela estreita conexão existente, na vida de todo trabalhador, entre as três dimensões essenciais de sua força de trabalho: 1. As relações de trabalho: isto é, a formação, a avaliação e a utilização da força de trabalho na empresa; 2. A finalidade do trabalho: isto é, as finalidades (ou produções) para as quais a força de trabalho é utilizada na sociedade; 3. A reprodução da força de trabalho: isto é, a maneira e o local de vida do trabalhador, a maneira pela qual pode satisfazer suas necessidades naturais, profissionais, humanas (Idem, p. 39)2.

Gorz está valorizando, assim, a apreensão da realidade do mundo do trabalho por meio do cotidiano operário no interior da empresa, no contexto do espaço da fábrica, a partir das formas de controle que são exercidas sobre a força de trabalho, de um lado, e da resistência e/ou integração ao controle capitalista pelos trabalhadores, de outro; ao mesmo tempo buscando captar o movimento da classe, suas formas de organização, tanto formais quanto informais, e observando como realmente se dá o conflito no interior da empresa. Em outras palavras, como os trabalhadores enfrentam as condições vivenciadas dentro da fábrica, como se dá a sua experiência no local de produção, bem como as estratégias que podem ser utilizadas pelo operariado na relação com o patronato.

No entanto, ao mesmo em que tempo que o estudo da vivência na fábrica é fundamental para compreendermos a classe operária em seu movimento, é importante ver também a relação dessa classe com outras classes, ou seja, a sua relação com a sociedade, fora dos muros das fábricas.

Vale dizer, para apreendermos o cotidiano operário é necessário vê-lo tanto dentro como fora da fábrica. Thompson, analisando a formação da classe operária inglesa, diz que

[...] as pressões em favor da disciplina e da ordem partiram das fábricas, por um lado, e das escolas dominicais, por outro, estendendo-se a todos os demais aspectos da vida: o lazer, as relações pessoais, a conversação e a conduta. Juntamente com os instrumentos disciplinares das fábricas, das igrejas, das escolas, dos magistrados e dos militares, havia outros meios semioficiais para se impor um comportamento moralizado e disciplinado" (Thompson, 1987, p. 292).

O cotidiano operário é permeado principalmente pela vida na fábrica, em seu local de trabalho. Para grande parte do operariado, o não trabalho, por exemplo, não representa necessariamente o momento do lazer. Esse tempo livre é utilizado principalmente para reorganizar as forças físicas para enfrentar o novo dia de trabalho. O tempo do não trabalho é o mesmo dedicado ao descanso físico. "A vida cotidiana é, em grande medida, heterogênea; e isso sob vários aspectos, sobretudo no que se refere ao conteúdo e à significação ou importância de nossos tipos de atividade. São partes orgânicas da vida cotidiana: a organização do trabalho e da vida privada, os lazeres e o descanso" (Heller, 1972, p. 18). Ainda, segundo a autora, na época pré-histórica, "o trabalho ocupou um lugar dominante nessa hierarquia; e, para determinadas classes trabalhadoras (para os servos, por exemplo), essa hierarquia se manteve, ainda, durante muito tempo; toda a vida cotidiana se constituía em torno da organização do trabalho. À qual se subordinavam todas as demais formas de atividade" (Idem).

O operário fabril de nossos dias, assim como o servo exemplificado por Heller, também vive seu cotidiano profundamente absorvido "pela organização do trabalho", à qual todas as outras atividades estão subordinadas.

A contradição entre tempo livre e trabalho, a oposição entre trabalho e vida foi criada com o advento do capitalismo, mais precisamente com a industrialização. A noção do tempo é completamente modificada com o surgimento da sociedade capitalista. Segundo Thompson, as sociedades industriais distinguem-se como tais em função da maneira como administram o tempo e pela divisão entre trabalho e vida (cf. Thompson, 1979, p. 288).

Referindo-se ainda à questão do tempo, esse autor afirma:

[...] os patrões ensinaram à primeira geração de operários industriais a importância do tempo; a segunda geração formou comitês de jornada curta no movimento pelas dez horas; a terceira fez greves para conseguir horas extras e jornada e meia. Aceitaram as categorias de seus patrões e aprenderam muito bem a lição de que o tempo é ouro" (Idem, pp. 279-280).

Esse processo, no entanto, não se deu sem resistências da classe operária que estava se formando:

[...] a este novo ritmo imposto à vida ordenado pelos patrões, senhores dos relógios [...], o escravo da fábrica reagia nas horas de folga, vivendo na caótica irregularidade que caracterizava os cortiços encharcados de gim dos bairros pobres do início da Era Industrial do século XIX. Os homens se refugiavam no mundo sem hora marcada da bebida ou do culto metodista. Mais aos poucos, a ideia de regularidade espalhou-se, chegando aos operários" (Woodcock, 1998, p. 125).

De certa forma, o itinerário gorziano de volta às origens do movimento operário - na década de 1960 - está permeado pelas questões acima sublinhadas.

Não existe uma crise do movimento operário, mas há uma crise da teoria do movimento operário. Esta crise (no sentido de reexame, crítica, ampliação do pensamento estratégico) é devida, principalmente, ao fato de que a reivindicação econômica imediata não mais basta para expressar e concretizar o antagonismo radical da classe operária diante do capitalismo; e de que esta luta, por mais árdua que seja, não é mais suficiente para colocar a sociedade capitalista em crise nem afirmar a autonomia da classe operária frente à sociedade na qual se insere" (Gorz, 1968, p. 28).

Para o autor, naquele momento a questão central era a ruptura com o sistema capitalista.

Ao longo do século XX, nos países centrais, a atividade do movimento operário e do sindicalismo guardou estreita relação com o desenvolvimento do capitalismo. As estratégias dos atores do mundo do trabalho estiveram associadas às ações levadas adiante pelo capital, em cada situação concreta. Nos primeiros tempos um embate duro, de classes. De um lado, os setores que buscavam sua inclusão na sociedade da época e, de outro, aqueles que desejavam manter os privilégios, o status quo. Mesmo com diferenças nacionais esse processo, de certa forma, ocorreu até o final dos anos de 1930 e 1940; um segundo momento, em linhas gerais, estendeu-se do final da Segunda Guerra Mundial até início dos anos de 1970. É o período de construção do Estado de Bem-Estar Social, que expressava uma aliança "tácita" entre três setores importantes: as grandes empresas, o governo e as centrais sindicais e/ou grandes sindicatos de trabalhadores.

Nesse caso, houve uma ampliação dos direitos sociais, da cidadania, e a real inclusão das classes trabalhadoras na sociedade como um todo, em particular na sociedade de consumo. É o período em que grande parte dos países europeus acompanha a chegada ao poder dos partidos socialdemocratas que possuíam, à época, ampla base de apoio junto ao operariado.

Os anos de 1970, no entanto, desestruturam parte do arcabouço anterior do contrato social e mudaram a configuração na qual os atores sociais atuavam. Essas transformações resultaram no aparecimento de novas formas de organização da produção nas empresas e mudanças substanciais na composição das classes trabalhadoras, e trouxeram impactos relevantes para as relações de trabalho: os sindicatos perderam, em termos relativos e absolutos, um número significativo de aderentes e, de outra parte, houve uma acentuada diminuição do conflito industrial nos países capitalistas centrais.

O mundo do trabalho está vivendo uma profunda transformação nestes últimos quarenta anos. É possível que estejamos assistindo a uma mutação tão significativa quanto aquela que foi palco o século XIX, com os impactos trazidos pela Revolução Industrial (cf. Munck, 2002; Waterman, 1999; Castells, 2000). E, por essa razão, as questões presentes na ação do movimento operário e do sindicalismo, atualmente, são distintas dos temas que se apresentavam para a ação do trabalho organizado no pós-guerra.



III

Uma primeira meta das alternativas políticas a ser liberada será destruir o muro que separa o produtor de seu produto e leva o trabalhador, como consumidor mistificado, à contradição consigo mesmo, como produtor alienado. As reivindicações imediatas dos trabalhadores referentes aos salários, horários, ritmos e qualificações, oferecem aos sindicatos, e sobretudo às seções de empresa dos partidos da classe operária, ocasião de indagar sobre o problema da utilidade social e individual de produções às quais o trabalho está vinculado (Gorz, 1968, p. 81).

Esta passagem de Gorz, de certa forma, resume o espírito de seu livro. Uma crítica contundente à sociedade capitalista e uma tentativa de construir uma alternativa a esta. Projeto que passaria por "alcançar a constituição de um poder operário no nível das empresas, dos ramos e, finalmente, da própria economia nacional" (Idem). Neste caso, as premissas presentes em seu trabalho são aquelas que dão conta do fetichismo da mercadoria, do estranhamento, da alienação como analisados na obra de Marx.

Naquele momento, diante das novas configurações do capitalismo que Gorz chama de neocapitalismo, expressão do arranjo sociopolítico-econômico que desembocou, de um lado, no Estado Social e, de outro, em um corporativismo societário (cf. Schmitter, 1992), particularmente na Europa Ocidental, André Gorz constrói uma saída para as classes trabalhadoras que tem como pressuposto a emancipação pelo trabalho, a partir do local de produção, com vistas a alcançar uma sociedade em que não mais existisse a exploração do homem pelo homem. Qualquer proposta que não levasse em conta a autogestão da produção pelos próprios trabalhadores não teria como resolver o problema da alienação no capitalismo. Nesse período, Gorz "considera o problema do controle operário dos processos de trabalho como um ponto de partida necessário para uma estratégia revolucionária preocupada com o problema da alienação do trabalho" (Silva, 2002, p. 115). Isso porque, ainda que a questão da alienação não estivesse limitada ao local de produção, "é nele que residem suas raízes mais profundas" (Idem).

A proposta apresentada por Gorz em Estratégia operária e neocapitalismo,de reformas revolucionárias ou reformas de estruturas, é uma construção analítica que pressupõe a empresa como o centro do embate entre capital e trabalho e como base da sociabilidade e identidade operárias. A luta por essas reformas

[...] deve aparecer, em todos os níveis, como uma possibilidade concreta e positiva, realizável sob a pressão das massas: no nível da oficina, pela conquista de um poder operário sobre a organização e relações de trabalho, no nível da empresa, pela conquista de um contrapoder operário concernente à taxa de lucro, o volume e a orientação dos investimentos, a evolução e o nível tecnológico" (Gorz, 1968, p. 68).

Essa visão estava baseada na ideia do trabalho e do mundo do trabalho como categoria explicativa fundamental para as sociedades contemporâneas. É, no entanto, esse arcabouço mais geral, no qual estava baseada a teoria e que tinha o trabalho assalariado e suas contradições como tema central para a compreensão do mundo em que vivemos, que nos dias atuais se tornou sociologicamente problemático e que, de certa forma, foi colocado em xeque pelas transformações ocorridas nos últimos decênios (cf. Offe, 1989).

É verdade que o sindicalismo, mesmo vivendo mundialmente uma situação defensiva, bem diferente daquela que era a norma até meados dos anos de 1970, no nível da empresa, dadas certas condições, discute/negocia o tema da participação nos lucros e nos resultados, nas orientações dos investimentos, em alguns casos, notadamente no âmbito da cidade ou da região onde o sindicato está estabelecido, bem como o tema da tecnologia. No entanto, no horizonte do movimento operário ou do sindicalismo - atualmente - o móvel de sua luta é menos a busca pelo controle da produção e pela emancipação socialista a partir do local de trabalho e mais a tentativa de inclusão na chamada sociedade de consumo.

As reflexões trazidas por André Gorz em seu livro Estratégia operária e neocapitalismo retratam aquele momento, os anos de 1950 e 1960, quando os sindicatos nos países centrais são institucionalizados e legitimados no bojo de um arranjo político que tem como premissa o aumento do poder e a consolidação das representações trabalhistas e, como consequência, o Estado Social. Isso tudo, em larga medida, é passado: nas últimas décadas, as grandes organizações industriais, que representavam a força do trabalho organizado, foram aos poucos perdendo força, enfraquecendo sua capacidade de confrontação, de negociação com o capital. Competição global, recessão e incertezas econômicas crescentes trouxeram resultados devastadores para a instituição sindical (cf. Martins Rodrigues, 1999; Western, 1999).

Fica então imediatamente evidente que lutar para que a vida conserve um sentido é lutar contra o poder do capital, e que essa luta deve passar, sem solução de continuidade, do plano da empresa para o plano da sociedade, do plano sindical para o plano político, do plano técnico para o plano cultural. Cabe então ao movimento socialista tomar fôlego e situar o combate no seu verdadeiro terreno: a luta pelo poder. Tudo a partir de então é posto em jogo: os empregos, os salários, as carreiras, a cidade, a região, a ciência, a cultura, a possibilidade de desenvolver as capacidades dos indivíduos [...]. Tudo isso só pode ser salvaguardado ou reconquistado se o poder de decisão passar das mãos do capital para as mãos dos trabalhadores (Gorz, 1968, p. 111).

O mundo do trabalho nos dias de hoje guarda uma considerável distância das principais teses expostas por Gorz em Estratégia operária.Ainda que existam setores no interior do movimento dos trabalhadores que mantenham "a chama acesa" dos temas propostos por Gorz, em sua esmagadora maioria, no entanto, o movimento sindical e parcelas ponderáveis das tendências políticas com alguma ligação com as classes trabalhadoras - na sociedade contemporânea - parecem preferir, para parafrasear Gramsci, a guerra de trincheiras à tomada do Palácio do Inverno; a defesa dos direitos já adquiridos nos países de capitalismo maduro e que foram solapados pelos ventos neoliberais nos anos de 1970 e na década de 1980 à luta pela defesa do "poder operário". Não vivemos mais os tempos da Guerra Fria, do mundo bipolar, das certezas incontestes. Tudo isso ficou pelo caminho. O que se assiste hoje é um processo irreversível de transformações nos âmbitos político, social e econômico, que deitou por terra o arcabouço institucional que fora criado com o fim da Segunda Guerra Mundial e que colocou em xeque o chamado compromisso fordista. Outros são os tempos, outras são as questões. Nesse sentido, é possível dizer que este livro de André Gorz é uma obra que caracteriza uma abordagem sociopolítica que se fazia presente em amplos setores da esquerda revolucionária à época, e que mobilizou corações e mentes, atingindo seu ápice no maio francês de 1968.

É importante, no entanto, situar o livro no âmbito do debate intelectual da década de 1960. O próprio autor modifica completamente sua análise sobre a classe operária, a sociedade capitalista e as possibilidades de uma revolução socialista no modelo em que havia sido pensado em Estratégia operária e neocapitalismo quando escreve Adeus ao proletariado.Aqui, já é outro momento histórico, em que a tecnologia da informação parecia ser a miríade do futuro. Além disso, diante das profundas mudanças ocorridas na sociedade capitalista, Gorz já não vislumbra a estratégia socialista de reformas revolucionárias que tinha como agentes o operário no local de trabalho, o partido e o sindicato. Nesse caso, a inflexão do pensamento do autor vai levá-lo a recontextualizar o lugar da política e, nesse novo espaço, o proletariado já não seria o portador do futuro, o agente fundamental da transformação social, o sujeito da emancipação. Mas isso já é outra história.
Versão Completa http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-20702009000100004&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
1Para esta questão, ver também Amorim (2006).
2Ver também Silva (2002, pp. 104-105).
Revista Tempo Social

A perda do mundo


A perda do mundo

Autor: José Arthur Gianotti
RESUMO
Estamos diante de um paradoxo: vivemos num mundo globalizado, em que os acontecimentos podem ser apresentados em tempo real, mas não logram se armar numa imagem de mundo que nos conduza a ele como nossa morada. Neste artigo, pergunta-se se haveria algum rebatimento entre o funcionamento atual do sistema capitalista e essa experiência de falta do mundo que nos persegue no cotidiano.
PALAVRAS-CHAVE: capitalismo; filosofia; lógica; globalização.

Nos meados do século XIX, quando ciência e tecnologia iniciaram seu desenvolvimento exponencial, ainda era impossível imaginar as transformações que elas provocariam no pensamento, na vida cotidiana e nas condições de nossa sobrevivência. Inclusive
que a distância entre elas se estreitasse de tal maneira que já se fala em tecnociência, porquanto certos resultados tecnológicos às vezes são tão surpreendentes que exigem novas teorias para serem entendidos.
Muitas vezes hoje ciências parecem ficções científicas, diferentes, porém, dos romances de Júlio Verne, que são dos anos 60 e 70 do Oitocentos. Nestes descrevem-se viagens que se tornam extraordinárias na medida em que seus personagens passam a ter à disposição máquinas fabulosas, as quais, contudo, a despeito de toda sofisticação, continuam sendo balões, submarinos etc.; em resumo, objetos do cotidiano que teriam sido construídos com a ajuda de procedimentos técnicos apenas mais sofisticados e potentes daqueles já conhecidos. Refletiam, em suma, a fase da manufatura do desenvolvimento tecnológico. Hoje, em contrapartida, não tem cabimento afirmar que a Demoiselle de Santos Dumont seja um objeto da mesma espécie que uma nave espacial.
Ainda que ambos conservem o nome comum de nave, eles voam graças a princípios radicalmente diversos, um é objeto mecânico engenhoso, outro é eletrônico, cibernético, tendo suas partes articuladas por redes de informação.
Mas aquilo que parecia destinado a transformar unicamente pedaços do mundo cotidiano mudou completamente nossa experiência de mundo. Alteraram-se as relações que mantemos conosco, com os outros e com a natureza. Nesse plano o desencantamento foi profundo.
Se a psicanálise ainda recorre a procedimentos simbólicos, hoje preferimos controlar nossos corpos e nossas mentes mediante pílulas, exames sofisticadíssimos e aparelhos extraordinários. Tratamos quimicamente nossas depressões, nossas angústias, nossas perdas, as ansiedades da espera. Além do mais, tanto os lazeres individuais
como os coletivos são mediados por aparelhos sofisticados. A internet nos conecta com pessoas as mais diversas, distribuídas nas mais longínquas partes do globo e coloca à nossa disposição informações e conhecimentos de toda espécie. Por fim, se, de um lado, a natureza opõe seus limites à devastadora exploração capitalista, de outro, ela surge como fonte de tecnologias prontas, como mostra a importância da biodiversidade para a descoberta de novas drogas.
Matéria Completa
http://novosestudos.uol.com.br/acervo/acervo_artigo.asp?idMateria=1302
Novos Estudos

Terceiro setor: solução para o desemprego ou efeito curativo?

Embora impreciso e problemático, o uso do conceito de terceiro setor tem crescido como consequência das perversas políticas neoliberais que ocasionam desemprego, precariedade do trabalho, pobreza e indigência
por FELIPE LUIZ GOMES E SILVA

FELIPE LUIZ GOMES E SILVA é professor aposentado de Gestão, Políticas Públicas e Terceiro Setor para os cursos de Ciências Sociais, Economia e Administração Pública da Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, campus de Araraquara. Autor do livro A fábrica como agência educativa (Editora Cultura Acadêmica, Unesp - Araraquara, 2001). E-mail: felipeluizgomes@terra.com.br

O que é "terceiro setor" afinal? Para Fernandes (1997), é uma expressão de linguagem que foi traduzida da língua inglesa, sendo "portadora de uma ambiciosa mensagem: além do Estado e do mercado há um terceiro personagem". Ao lado dos sindicatos e de várias associações profissionais há outros recortes associativos que não se estruturam segundo a clássica divisão capital versus trabalho. Segundo Coelho (2000), esta expressão foi usada pela primeira vez na década de 1970 por pesquisadores estadunidenses. No entanto, há indicações de que o termo tenha surgido, inicialmente, como uma referência feita pelo magnata John Rockfeller à vitalidade da comunidade estadunidense (LANDIM, 1999).

Sabemos que qualquer conceito é apenas uma aproximação da realidade, a qual pode se manifestar de variadas formas. Dependendo do contexto histórico, social e político, do tempo e do lugar; a palavra é um instrumento ideológico por excelência (BAKHTIN, 1997). Veja quadro Definição de setores.

Como exemplos de instituições que pertencem ao "terceiro setor" podemos citar a Fundação Abrinq (São Paulo), o Projeto Axé de Educação Infantil e Adolescente (Salvador), o Orfanato Renascer (Araraquara), o Instituto Ethos (São Paulo) e também todo um conjunto de entidades assistenciais e caritativas que compete entre si na busca de recursos financeiros e de parcerias no mercado solidário.

Em razão da diversidade de instituições e de objetivos, a noção de "terceiro setor" é imprecisa e problemática. Para nós, a questão não se resume a uma mera dificuldade formal de classificação, como já apontamos anteriormente, resulta de seu "caráter eminentemente ideológico"; no sentido de ocultar a realidade concreta, ou seja, a não superação do mundo da aparência.

As organizações abrangidas por essa noção são diversas e diferenciadas, heterogêneas e até contraditórias. Apresentam diferenças em suas origens históricas, em suas finalidades, em suas maneiras de se relacionar com o Estado, com a sociedade e com o mercado. De modo geral, têm seu campo de trabalho limitado e condicionado pelas fontes de financiamento e pelo nível de pobreza presente nas diversas nações e regiões (SILVA, 2004).

Os donos do capital deverão reduzir a jornada de trabalho e investir em ações comunitárias solidárias

DE ACORDO COM Oliveira (1995), as Organizações Não Governamentais, por exemplo, "são importantes elementos de ativação da sociedade em geral, quando fazem o trabalho de passagem das carências para os direitos".

Indagamos: quantas organizações, de fato, superam o assistencialismo, realizam os direitos sociais e ultrapassam a filantropia e/ou mero gerenciamento da pobreza? Ressaltemos que, para Fernandes (1994), o "terceiro setor" não pretende substituir a ação do Estado, a sua dinâmica deve ser complementar; é fruto das insuficiências e dos limites da atuação do mercado.

Mas independentemente da vontade e das boas ações humanas, o denominado "terceiro setor" tem, na realidade, crescido em consequência das perversas políticas neoliberais. Com a "crise" do Estado de Bem- Estar Social (nos países centrais) e do Estado Desenvolvimentista (nos países periféricos), a ideologia do "terceiro setor" passa a ser funcional/ operacional às políticas do capitalismo neoliberal, ocultando as raízes estruturais do desemprego, da precariedade do trabalho, da pobreza e da indigência (MONTÃNO, 2002; SILVA, 2004, 2006).Os voluntários que atuam no denominado "terceiro setor" contra a fome e a miséria, só na aparência são livres cidadãos.

A questão fundamental é: sem romper com o modo de produção capitalista, será possível combater a indigência e construir uma nova sociabilidade humana por meio das ações do primeiro, segundo e terceiro setores?

Para Claus Off e a resposta é positiva. Uma nova sociabilidade será construída mediante uma sintonia fina entre o primeiro, segundo e terceiro setores. Atores coletivos da sociedade civil demarcarão as fronteiras e a relação entre o Estado, o mercado e o "terceiro setor". Todos comporão, de forma harmônica, um arranjo social novo e superior. Grande parte dos desempregados será cuidada pela solidariedade religiosa (1999, apud SILVA, 2006).

O estadunidense J. Rifkin também defende a tese da possibilidade de humanizar o capitalismo por meio da articulação dos três setores. Os donos do capital, as corporações, deverão reduzir a jornada do trabalho e investir em ações comunitárias solidárias. Para ele, com o crescimento do desemprego estrutural e da miséria, estamos diante de dois riscos: o crescimento da população carcerária e a emergência de ideologias políticas extremistas.

Só as ações do "terceiro setor" salvarão o capitalismo e a democracia (RIFKIN,1997). Como é evidente, o acelerado crescimento do chamado "terceiro setor" é fruto da lógica da acumulação ampliada do capital, do aumento da população que vive no inferno da indigência e que constitui o peso morto do exército de reserva - que, segundo R. Castel (1998), são os supranumerários, os não empregáveis considerados inúteis para o mundo.

Em 1988, na França, somente um estagiário em quatro, e um trabalhador precário em três encontraram um emprego estável ao final de um ano. Sendo assim, a expressão "interino permanente" não é um jogo de palavras.

Os Estados Unidos apresentam a vigésima taxa de mortalidade infantil do mundo e 5 milhões de sem-teto

No Brasil, por exemplo, são gastos R$ 7 bilhões com 11,1 milhões de famílias integradas no Programa Bolsa Família, enquanto R$ 110 bilhões remuneram os poderosos detentores dos títulos da dívida pública. Entre janeiro de 2003 e outubro de 2006, as empresas transnacionais, sediadas no País, repatriaram nada menos do que US$ 18,9 bilhões, 112% a mais do que a era Fernando Henrique Cardoso (1998-2002).

O pauperismo e a indigência (superpopulação supérflua) da América Latina e do "terceiro-mundo" somente serão superados com a construção de uma nova sociabilidade humana livre da lógica da acumulação, do desenvolvimento das forças destrutivas e da dependência do capital mundial.

O assistencialismo, a mera caridade legal e a filantropia,práticas inerentes ao chamado "terceiro setor" e às políticas "pseudoliberais" (SARTRE, 1987) talvez possam, por algum tempo, "animar" parte da sociedade e amenizar o sofrimento humano como simples efeito curativo (KURZ, 1997).

Definição dos setores

O pesquisador Rubem C. Fernandes (1994) assim demarca as fronteiras entre o "Primeiro, Segundo e Terceiro Setores":
Como podemos observar, definido pelos seus fins, o denominado "terceiro setor" é composto por agentes privados que buscam a realização de objetivos coletivos e/ou públicos. Desta forma, há, segundo esse autor, clara coincidência com os objetivos do Estado.

O segundo setor é organicamente composto por agentes que buscam objetivos privados, ou seja, orienta-se, primariamente, pelos interesses do mercado, pauta-se pela competição e pelos lucros. Quando os agentes estatais buscam fins privados encontram-se no espaço da corrupção. Dito de outra forma, as condutas pautam-se pelas "políticas de favores", pelo clientelismo, nepotismo e personalismo.

Afirma Fernandes (1994) que o "terceiro setor" denota um conjunto de organizações e iniciativas privadas que visam à produção de bens e serviços públicos. Este é o sentido positivo da expressão. Bens e serviços públicos, neste caso, implicam uma dupla qualifi- cação: não geram lucros e respondem a necessidades coletivas. "O conceito é certamente amplo e passível de qualificações sob diversos aspectos. As variações ocorrem, e os casos fronteiriços suscitam disputas polêmicas, como acontece com qualquer classificação".
As pesquisas do Observatório Urbano das Nações Unidas (ONU) alertam que, em 2020, a pobreza no mundo atingirá 45% do total de habitantes das cidades
MAS NEM COMO efeito curativo tem cumprido sua promessa de incluir no mercado formal os desempregados. A produção em escala de trabalhadores precários no terceiro-mundo e na América Latina tem sido acelerada pela aplicação dos Planos de Ajustes Estruturais (superávit fiscal, redução do déficit da balança comercial, desmontagem da previdência, liberalização financeira e comercial, [des] regulamentação dos mercados e a privatização das empresas estatais) "recomendados" pelo Banco Mundial. As pesquisas do Observatório Urbano das Nações Unidas (ONU) alertam que, em 2020, a pobreza no mundo atingirá cerca de 45% do total de habitantes das cidades.

Em Lagos, Nigéria, a classe média desapareceu, o lixo produzido pelos poucos e cada vez mais ricos compõe a cesta de alimentos que frequenta a mesa dos trabalhadores pobres. No Brasil, o denominado mercado informal já atinge mais de 51% da população, na América Latina, 57% e na África, 95% (DAVIS, 2004).

Dificilmente os agentes e os pesquisadores universitários que apoiam as ações do "terceiro setor" perguntam quais são as origens históricas e estruturais da pobreza e da miséria dos países dependentes. É preciso não abandonar a visão de totalidade social e considerar que o local não pode ser entendido como divorciado do mundial e, principalmente, da livre presença das transnacionais e das transações financeiras globais que, junto com os Programas de Ajuste Estrutural (PAEs), recomendados pelo Banco Mundial, provocam devastadores ciclones sociais (DAVIS, 2004; MÉSZÁ- ROS, 2006).

Muitas empresas praticam o denominado "marketing do bem" e a "solidariedade que aparece"

Atualmente, cerca de 180 milhões de pessoas estão em evidente situação de desemprego aberto. Mesmo nos Estados Unidos da América, lócus privilegiado das ações ditas solidárias, o "terceiro setor" não superou os problemas sociais: hoje, eles possuem a 20ª taxa de mortalidade infantil do mundo, 1/3 das crianças em idade escolar está sem vacinas básicas, 31 milhões de seres humanos não têm cobertura de saúde, há 5 milhões de sem-tetos, etc. (PETRAS,1996).

As ações locais, com ou sem apoio das corporações e do Banco Mundial, são limitadas e não questionam as raízes estruturais do desemprego, da pobreza e da precariedade do trabalho. Muitas empresas, na realidade, enquanto praticam o denominado"marketing do bem" e a "solidariedade que aparece" (BUCCI, 2004), exploram ao máximo os seres humanos e os recursos naturais da América Latina e do terceiro-mundo.

Muitas destas ações corporativas têm por objetivos claros "educar" lideranças rebeldes e prevenir a emergência de lutas sociais radicais. "São proponentes de novos contratos que restabelecem vínculos de solidariedade transclassistas e comunidades pensadas com inteira abstração dos "novos" dispositivos de exploração do trabalho (NETTO, 2005), a "flexploração" e a terceirização dos operários (SILVA, 2004). Será possível realizar, no século XXI, a utopia da cidadania plena - igualdade, fraternidade e liberdade - no interior da ordem social capitalista contemporânea?

Revista Sociologia

Tempo é Dinheiro

Tempo é Dinheiro
Como o tempo passou de unidade orgânica a organizador da produção e do consumo no capitalismo, modifi cando o cotidiano e a ordem das cidades

HELENA LADEIRA WERNECK

Nas suas primeiras noções, a contagem do tempo estava mais associada à periodicidade do poder e da finitude da existência humana. Isso levava a uma casta de sacerdotes à sua manifestação e até mesmo à sua manipulação. Os gregos, mestres em uma explicação romântica do universo, apresentam o tempo como um deus – Cronos – que, casado com a deusa Terra – Géia – termina por devorar todos os seus filhos. Géia, cansada de ver desaparecer toda a sua prole, engana o deus jogando em sua boca uma pedra em vez do seu filho Zeus. Com o tempo, Zeus cresceu, matou o pai e tornou-se o patriarca de uma raça de deuses que venceu a mortalidade.

Durante a maior parte do tempo de sua existência na face terrestre, prevaleceu no seio da população a necessidade da separação entre os dias, identificando os períodos de claridade e de escuridão. Nesse sentido, o dia tornou-se a base de todas as medidas de tempo, sendo medido, em algumas culturas, a partir do nascer do sol e, para outras, a partir do pôr-dosol. A prática da adoção da contagem diária a partir da meia-noite tem origem nos tempos modernos.

A NECESSIDADE DE IDENTIFICAÇÃO DO CLARO E DO ESCURO
Os primeiros fazendeiros constataram que o caminho percorrido pela sombra de um objeto sob o sol indicava o tempo disponível para o trabalho com a agricultura. Desse modo, mediam a hora necessária para o retorno seguro do abrigo.

Coube aos chineses a primeira formatação do relógio de sol, substituindo, com sucesso, a sombra de pedras e de árvores por uma haste fincada em um plano, a partir da qual se traçavam riscos. A partir dessa subdivisão, surgiram os agrupamentos de minutos, divididos em quatro: do nascer do sol às 9:00 horas, das 9:00 horas até as 12:00 horas, das 12:00 horas às 15:00 e das 15:00 às 18:00, contando-se o período da escuridão entre o pôr-do-sol e o seu nascimento.

Ao mesmo tempo que se sentia a necessidade de controlar o tempo de luz, o imaginário popular temia o período da escuridão. Mais uma vez são os gregos que materializam essa inquietude que a ausência do sol implica: para gregos e romanos, a noite era filha do Caos, sendo esposa e irmã de Érebo – a personificação das trevas infernais. Seus filhos confirmavam a mesma tendência – Moira, o destino, Átropos, a morte, Hipnos, o sono, a Miséria, as Parcas, que regem os destinos humanos, as Hespérides, guerreiras, Nêmesis, a justiça, Apaté, a fraude, a Concupiscência, a Velhice e a Discórdia.

A Lua, e como conseqüência, o luar, compunha outro poder, quase paralelo ao da luz. No ideário humano e em diversas culturas, apresentava-se como divindades distintas, talvez por representar o conhecimento de que são responsáveis por ciclos diferentes.

O ciclo lunar guiou o primeiro conjunto de dias, juntados que foram pela regularidade do seu ciclo – de sete em sete dias, daí derivando o termo septimana, ou semana.
Quadro A mutilação de Urano por Saturno, feita por Giorgio Vasari e Gherardi Christofano no século XVI. Cronos (Saturno) derrota seu próprio pai, o deus grego do céu


TRANSFORMAÇÕES MEDIEVAIS E A PERMANÊNCIA DO PENSAMENTO CLÁSSICO
Por mais que a crise romana impusesse modifi- cações muito grandes ao inteiro contexto do Império, nenhuma se igualou à adoção da religião cristã pelo Imperador Constantino, que promoveu a cristianização do Estado depois da sua conversão e de sua vitória sobre Maxêncio na ponte Mílvia, em 312 d.C. Segundo Perry Anderson (1992:87), “caracteristicamente, a nova religião oriental somente conquistou o Império depois de adotada por um César no Ocidente. Foi um exército marchando da Gália que impôs um credo originado na Palestina, acidente significativo e paradoxal, ou um sintoma, da dominância política da pátria latina do sistema imperial romano”.

A Idade Média é tida pela maioria da população como período de trevas, do esquecimento do conhecimento. O século XVI foi o responsável pela criação desta figura, que se transformou em preconceito. Segundo Franco Júnior (1986:19), “o termo expressava um desprezo indisfarçado pelos séculos localizados entre a Antiguidade Clássica e o próprio século XVI. Este se via como o Renascimento da civilização grecolatina, e, portanto, tudo o que estivesse entre esses picos de criatividade artístico-literária não passaria de um hiato, de um intervalo. Logo, de um tempo intermediário, de uma idade média”.

A respeito da herança cultural da Idade Média e o papel da Igreja Católica, Anderson afirmou: “civilização da Antiguidade Clássica foi definida pelo desenvolvimento de superestruturas de sofisticação e complexidade sem precedentes sobre estruturas materiais de uma relativa rusticidade e simplicidade; existe sempre uma desproporção dramática no mundo greco-romano entre o exagerado firmamento intelectual e político e o acanhado mundo econômico que lhe era subjacente. Quando chegou o colapso final, nada era mais óbvio que o fato de que essa herança superestrutural – agora impossivelmente distanciada das realidades sociais imediatas – iria sobreviver a ela, embora de forma comprometida. Era necessário um recipiente específico para isso, suficientemente distanciado das instituições clássicas da antiguidade e ainda assim moldado por elas, e por isso capaz de fugir ao desmoronamento geral para transmitir as misteriosas mensagens do passado ao futuro próximo. A Igreja desempenhou objetivamente esse papel”.

O termo “idade média” expressava o desprezo dos renascentistas
pelos séculos localizados entre a Antiguidade e seu tempo

Um clássico de Giotto di Bondone (1266-1337) feito no ano de 1305, traz Cristo sendo velado, e se encontra hoje na Capella dell’Arena, em Pádua, Itália
No entanto, a Idade Média serviu de berço à civilização ocidental, ofertando uma cultura que se denominou de moderna e que se apoiou nos termos da urbanização-industrialização e, por que não dizer, no capitalismo. Esse complexo entrecruzar de conceitos só foi possível pela intervenção continuada da Igreja Católica.

Segundo o historiador francês Jacques Le Goff , a população que se juntou em várias partes do continente europeu a partir do século X não pensava, quando obtinha a independência dos senhores feudais – os forais – em criar uma cidade. Pensavam em formar uma comunidade capaz de fazer frente aos senhores, mas ainda sem nome próprio, usando várias denominações tais como cives, hospites, oppidani, qual seja cidadãos, hóspedes, habitantes de uma praça forte, ou ainda habitores, habitantes, ou mesmo incolae ou homines.

Le Goff ainda explica: “O nome que esses beneficiários dos privilégios urbanos vão usar de preferência, burgueses, apenas continuará designando uma parte da população das cidades, mas a palavra francesa que o traduz, borjois, batizará uma classe social, a burguesia, que triunfará no século XIX com o capitalismo e uma nova revolução urbana, a da cidade nascida da revolução industrial”.

A REVOLUÇÃO COMERCIAL E O TEMPO

Essa imagem do século XVII representa Constantino presenciando a aparição da cruz. Gaius Flavius Valerius Aurelius Constantinus governou uma porção crescente do Império Romano, até sua morte
A sociedade que se forma nas bases urbanas recebe todos os cidadãos indistintamente, divide os custos pela manutenção das estruturas comuns e, já a partir dos séculos XI e XII, a erigir e identificar os seus espaços e a construir os seus monumentos. Com o crescente desenvolvimento econômico e a introdução de novas atividades urbanas, como o ensino – universitas – e a burocracia administrativa e financeira, o burgo se transforma em um motor cultural para a transmissão da nova formação social.

Le Goff assim descreve esse período: “o domínio artístico essencial da Idade Média, o dos edifícios religiosos, ela criou uma arte urbana logo duplamente encarnada em produções sagradas e em produções profanas: a arte gótica. Pensou a si mesma como um lugar a ser construído e embelezado em harmonia com sua personalidade e seus valores, e produziu um urbanismo original e cada vez mais seguro de si”.

E o valor que predomina é o dinheiro e suas representações, que tanto podem ser objetos de arte, artistas, construções e mesmo adereços. Deixada a penúria dos primeiros tempos da Idade Média, agora o luxo e a aparência predominavam.

Agora o tempo passa a ter uma nova singularidade. Não é mais o tempo da religião, marcado pela presença dos sinos nos campanários, nem ao menos o tempo do agricultor, marcado pelo nascer e o pôrdo- sol. É o tempo de se produzirem mercadorias, gerar dinheiro e acumular bens. Ainda segundo Le Goff , “ o movimento urbano não se acomoda a esse tempo. Ele não se adapta nem à faina da cidade, nem ao ritmo de seu tempo passional, nem à satisfação de suas liberdades. A nova regularidade do trabalho urbano não é a dos camponeses conciliados com a natureza e as estações, mas a de artesãos e operários assalariados cujo labor mensurável em dinheiro deve sê-lo também em tempo, um tempo não mais natural, mas tecnológico”.


A HERANÇA PRÉ-RELIGIOSA DA DENOMINAÇÃO DOS DIASApesar de s Idade Média representar um período intermediário entre o conhecimento clássico e a modernidade, alguns elementos persistem na cultura ocidental – a denominação dos dias da semana, sabidamente uma das características pagãs mais evidentemente preservadas. O primeiro dia do agrupamento da semana foi dedicado ao Sol, patrocinador da luz, do calor e da vida. Para os romanos, era o dia dedicado às oferendas e homenagens. Passou somente a ser denominado de Dies Dominica por São Justino, fundador da primeira escola cristã em Roma no ano de 165. O segundo, à Lua, por sua influência sobre os meios líquidos e pela continuidade das suas transformações, por meio da sua presença benéfica, sendo representada pela melancólica rainha dos infernos – Presérpina – e pela solitária deusa Diana (Ártemis para os gregos).

Dedicou-se ao deus Marte, o deus das guerras, o terceiro dia da semana. Em Roma, onde lhe deram um mês inteiro (março), esse deus era invocado quando havia a necessidade de se decidirem guerras e para o qual se ofereciam sacrifícios após jornadas vencedoras. Conta a mitologia que o rei Numa depositou aos pés de Marte os destinos da cidade e instituiu um corpo de sacerdotes – os sálios – para honrarem o poderoso guia da vitória humana. Tamanha honra impressionou o deus, que fez cair um escudo de bronze aos pés do rei quando este orava, dando a entender que a cidade sobreviveria tanto quanto o escudo. Entre outras medidas, o rei dedicou-lhe as preces desse dia.

O quarto dia tem um caráter ambíguo. Tanto corresponde o respeito aos mercadores, quanto aos ladrões. Corresponde ao caráter eminentemente dual representado pelas práticas comerciais, denominadas, em latim, de mercarii . Assim, Mercúrio, arauto de Júpiter, protegia os negociantes e os seus negócios, figuras também muito importantes no mundo clássico.

Ao pai de todos os deuses – Júpiter, comandante dos ventos e das tempestades, cujas mãos dirigiam os raios e os trovões – foi dedicado o quinto dia. A necessidade de se prestar homenagem a poderes tão fortes também se manteve na representação simbólica dos povos do norte, onde Thor (Thursday) adquire as mesmas funções que o figurativo greco-romano.

O sexto dia da semana ficou consagrado a Vênus. Como as homenagens humanas foram dedicadas aos grandes poderes presentes nas sociedades humanas, não se faz necessária a explicação do porquê das homenagens à deusa do Amor, desde sempre considerado uma das mais fortes emoções humanas.

A Saturno ou Cronos, pai do tempo, ficou destinado o sétimo dia. Segundo o mito, após destronado por Júpiter ou Zeus, foi exilado para o Lácio, na Itália (a origem da palavra deriva de latere que significa esconder-se, ocultar-se), onde dedicou-se à agricultura e ao pastoreio, dando início a uma fase de grande prosperidade. Por essas qualidades era bastante apreciado nos cultos latinos, especialmente em solo italiano. Mesmo o nome que posteriormente denominará a inteira península é decorrente da sua presença – Saturnia Tellus.


TEMPO MECÂNICO, CALENDÁRIO MERCANTILO avanço tecnológico, no entanto, veio dos árabes. Eles criaram um tipo de aparelho no qual eram mantidos o quadrante, o ponteiro e as rodas dentadas. O movimento, porém, já não era dado pela água ou pela areia, mas por um peso que vencia pouco a pouco, em um tempo mais ou menos igual, a resistência dos vários dentes das inúmeras rodas. Consta que o califa Harun-Al-Rachid mandou para Carlos Magno um maravilhoso relógio em que a marcação das horas era dada por bolas de ferro que caíam em um gongo enquanto soldados miniaturizados desfilavam.

A racionalidade exigida pelas atividades mercantis fez com que a adoção desse novo tempo tomasse duas formas distintas: a primeira com a adoção de relógios, mais precisos, que mostrassem o correto transcurso das horas. O segundo foi a necessidade de reformulação do calendário. A partir do momento em que o contexto deixava de ser religioso e rural, obter uma contagem e disposição melhor dos dias se fazia urgente. Um calendário regulado por festas de datas móveis era eminentemente inadequado para os negociantes. O ano religioso começava numa data variável entre 22 de março e 25 de abril. Os mercadores tinham necessidade de pontos de partida, referências fixas para seus cálculos e para estabelecer seus orçamentos.
Pintura de São Gregório, datada de 1370, feita pelo artista Meister Theoderich von Prag Title, importante pintor gótico. Encontra-se na Galeria Nacional de Praga


Na análise de Le Goff , a Igreja também determinara as horas de acordo com as estações do ano e suas respectivas preces: matinas, primas e ângelus. Regulavam-se pelo Sol e variavam ao longo do ano. Os sinos respondiam aos quadrantes solares. Os mercadores tinham necessidade de um quadrante racional, dividido em 12 ou 24 partes iguais. Foi a necessidade comercial que impôs a presença do relógio nas principais áreas centrais das cidades. Florença teve esse relógio em 1325, Pádua em 1334, Milão em 1335, Gênova em 1353.

Todas as demais cidades promoveram verdadeira corrida para a colocação de seus relógios. O mais famoso deste período foi o relógio de Estrasburgo, que causou admiração em toda a Europa por séculos. Chamava-se “Relógio dos três reis” e media 12 metros de altura, e foi construído junto com a catedral em 1352.

Com relação ao calendário, sua reforma definitiva vai ocorrer em 1577 quando o papa Gregório XIII convoca o monge Dionísio, o pequeno, para conduzir as adequações necessárias ao calendário a partir das novas descobertas astronômicas. Suas conclusões ganharam personalidade jurídica mediante bula pontifícia em 24 de fevereiro de 1582.

A ASCENSÃO DA CIDADE MEDIEVALA partir do século IX, o comércio volta a animar as antigas rotas de transporte, tendo como motor deste acontecimento, o comércio das cidades italianas, que para tal não só desobedeciam a ordens superiores – o Papa e o Imperador – ,como também tinham conseguido se afirmar no mar mediterrâneo por meio de acordos e de combates. Segundo o historiador belga Henry Pirenne (1862–1935), o progresso econômico de Veneza fará com que as principais famílias detentoras do poder se enriqueçam sobremaneira: “Essa riqueza se desenvolveu segundo um movimento ininterrupto. Por todos os meios ao seu alcance, a cidade dos canais trata com uma energia e uma atividade surpreendentes de impulsionar esse comércio marítimo, que é a condição essencial de sua existência”.

O segundo grande passo dado pelos nascentes agrupamentos urbanos foi o de sua separação física com a área rural, ou seja, o da construção de muralhas. Essa separação formal, no entanto, não chegou a abolir a atividade rural. Em muitos casos, da mesma maneira das cidades fortificadas da Antiguidade, a muralha preservava uma série de áreas com atividades rurais como forma de sobrevivência em caso de sítios prolongados. No entanto, ainda que com a presença de áreas não edificadas, o clima manifesto na área urbana era de liberdade e predomínio de atividades não rurais, ou, para ser mais claro, de atividades comerciais.

Segundo Le Goff , “a cidade medieval permanece mesclada de campo, deixando fora de suas muralhas subúrbios e um arrabalde plantados no campo, acolhendo no interior de seus muros, em compensação, pedaços de campo, terrenos cultivados, prados, espaços vazios e, ocasionalmente, camponeses refugiados”.


Foi a necessidade comercial que impôs a presença do relógio nas áreas centrais das cidades
Como o erro comprovado nas contagens anteriores era de dez dias de atraso em relação ao Sol, tornava- se necessário que todos os países cristãos se pusessem atualizados a um só tempo. Assim, marcou-se o dia 4 de outubro para que os homens acertassem o passo com o Sol, bastando para tal a retirada de dez dias da folhinha, a partir do dia 4, quando o dia seguinte não seria o dia 5 e sim, o 15. Isto foi feito na maioria dos países cristãos e na totalidade dos Estados católicos.

Gravura intitulada Scriptorium, faz parte de um manuscrito medieval e traz a imagem de um monge, Dionysius Exiguus, que desenvolveu o sistema do Anno Domini com base em seus cálculos sobre a Páscoa

A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL, A INDÚSTRIA E O CAPITALISMO
Nenhum uso não rural marcou tanto a paisagem urbana e alterou os hábitos de vida da população mundial quanto a introdução da indústria nas cidades. Inicialmente, dando seqüência ao processo de esvaziamento do campo, promoveu um adensamento nunca visto na história das cidades.

O processo de urbanização, se por um lado explodiu os mecanismos de vivência da cidade medieval, também proporcionou um avanço tecnológico na arte de morar em grupo, que, se não ocorreu ao mesmo tempo, ficou pouco a dever ao ritmo de crescimento das cidades. Data desse período a redescoberta dos sistemas de transporte de água e de coleta de esgotos e de lixo.

Nesse sentido, a paisagem urbana marcada pelas chaminés industriais se torna o perfil dominante na maior parte das cidades inglesas e, a partir daí, se espraia para todo o globo.

No caso do Brasil, onde sempre houve a necessidade de mão-de-obra para o desenvolvimento das atividades econômicas, a marca da ocupação industrial se dá por meio da formação de bairros operários, onde os trabalhadores habitavam ao lado das instalações fabris. Nesses locais, em grande parte em habitações providas pelos próprios patrões, a vida se regulava pelo início e o fim do trabalho – os apitos das fábricas –,além de assinalar os intervalos – quando havia – para descanso.

Nesse caso, a contagem do tempo transformava-se em mais um instrumento para controle da vida coletiva, marcando e conformando a vida do operariado. O maravilhoso filme de Charles Chaplin, Tempos modernos, nos mostra uma visão caricatural desse processo em que o tempo da indústria conforma a vida cidadã.

Talvez seja o caso de pensarmos aonde essa velocidade toda nos levará. Nos países que eles dispõem de mais recursos econômicos, o tempo tem andado na contramão de volta a um ritmo mais humano. No entanto, por hora, ainda estamos subordinados ao “tempo é dinheiro”, e não podemos nos arriscar a parar, até porque os relógios presentes em cada pedaço de rua e os que nos vigiam do alto dos prédios prenunciam que não temos saída. Temos de correr.

Pintura em óleo sobre tela de Julius Köckert (1827-1918), datada de 1864, encontra-se na Maximilianeum Foundation, em Munique, Alemanha, e retrata encontro entre Harun, califa de Bagdá, e Carlos Magno

REFERÊNCIAS
PIRENNE, Henry.História econômica e social da Idade Média. Ed. Mestre Jou. São Paulo. 1971.
FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: Nascimento do Ocidente. Editora Brasiliense. São Paulo. 1986.
LE GOFF. Jacques. Mercadores e banqueiros da Idade Média. Ed. Martins Fontes. São Paulo. 1991.
– Jacques. O apogeu da cidade medieval. Ed. Martins Fontes. São Paulo. 1992.
– Jacques. Por amor às cidades. Editora Unesp. São Paulo. 1997.
ARGAN. Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. Ed Martins Fontes. São Paulo. 1998.
ANDERSON, Perry. Passagens da antiguidade ao feudalismo. Ed. Brasiliense. São Paulo. 1992.
DONATO, Maurício. História do calendário. Edições Melhoramentos. São Paulo. 1976.



HELENA LADEIRA WERNECK é arquiteta e urbanista pela Unisantos, mestre em Planejamento Metropolitano pela Universidade de Roma. Coordenadora do Curso de Arquitetura e urbanismo das Universidades de Guarulhos e do grande ABC. Professora de Sociologia Urbana e de História e Teoria da Arquitetura. Humanos, categoria Literatura.

Revista Leituras na Historia

História do Capitalismo

RELAÇÕES EXTERIORES
A história do capitalismo mostra que o sistema econômico enfrenta abalos financeiros desde o século XVII e que as crises estão ligadas ao eterno processo de empréstimos, investimentos e inadimplências

POR MARCOS LOBATO MARTINS
Multidão de investidores reunidos do lado de fora do Banco dos Estados Unidos, após anunciar falência, em 1931
Em setembro de 2008, o estouro da "bolha imobiliária" americana deu início a uma crise financeira de enormes proporções. Há quem chame essa crise de "o primeiro crash da globalização". Outros a vêem como o início do fim do "império norte-americano" e a certidão de óbito do neoliberalismo. Para os historiadores econômicos, a assombrosa perda de riqueza que está ocorrendo agora, graças ao derretimento do sofisticado mercado financeiro construído nos países centrais, evidencia algo mais prosaico, embora terrível: o capitalismo é inseparável de crises financeiras agudas. A história do capitalismo pode ser contada, portanto, por meio dos dramáticos enredos das numerosas crises financeiras que ele engendra. É o que se propõe neste artigo, com a devida brevidade.

LUCRO, COMPETITIVIDADE E INSTABILIDADE

Considerado o criador da moderna economia, o escocês Adam Smith (1723-1790), no livro A Riqueza das Nações, apreendeu o princípio motor do capitalismo: "Não é da benevolência do padeiro, do açougueiro ou do cervejeiro que eu espero que saia o meu jantar, mas sim do empenho deles em promover seu próprio auto-interesse". É a vontade de obter dinheiro e lucro que anima os agentes econômicos, que faz os mercados funcionarem e, segundo Smith, promoverem, de lambuja, o bem-estar dos indivíduos e da coletividade. O mercado capitalista, sob o regime do laissez-faire (deixai estar), produziria a marcha inelutável para o progresso. Ao Estado, caberia apenas garantir a ordem e a segurança contra os inimigos externos.
O alemão Karl Marx, fundador da teoria marxista, que influenciou as grandes revoluções do século XX
As crises econômicas e as revoluções sociais do século XIX colocaram em xeque a visão idealizada do liberalismo de Adam Smith. Karl Marx (1818- 1883), o mais eminente crítico do capitalismo, construiu uma poderosa e influente interpretação da economia capitalista, na qual ganharam relevo as falhas - e, portanto, as crises - inerentes à dinâmica das forças de mercado. O ponto de partida do marxismo é o mesmo: o mercado é o princípio organizador da sociedade capitalista, de maneira que essa sociedade está presa a forças subterrâneas que têm vida própria. No interior do mercado, movem-se indivíduos impulsionados pelo desejo de ganhar dinheiro, de acumular capital.

O mecanismo da competição econômica, segundo Marx, gerava simultaneamente tanto a riqueza quanto a pobreza, bem como a tendência à concentração dos capitais. Mas a trajetória da economia capitalista não é suave, tampouco apenas ascendente. Marx dedicou bastante atenção aos solavancos da roda da fortuna capitalista. Assinalou a tendência recorrente da economia de perder impulso e até mesmo de ir para trás, vivendo em "ciclos", passando de períodos de expansão para períodos de contração.

A explicação para os ciclos pode ser encontrada nos excessos e desajustes de oferta e demanda, nas retrações de crédito, nas variações de otimismo e pessimismo entre os agentes econômicos, no aparecimento de rupturas tecnológicas ou institucionais e alterações nas relações de força entre trabalho e capital (embates entre sindicatos, empresas, governos e opinião pública).Enfim, a interpretação de Marx põe em relevo três características do capitalismo histórico: a) aguda instabilidade; b) baixa previsibilidade; e c) difícil governabilidade.

Para se ter uma idéia da montanha-russa que é a economia capitalista, basta lembrar que, desde 1790, há registros confi- áveis de pelos menos 46 ciclos econômicos irregulares. Entre 1854 e 1919, a duração média de uma recessão era de 22 meses; nos Estados Unidos, a economia se retraía em média a cada 49 meses. Mesmo nos tempos atuais, as crises econômicas continuam freqüentes. Segundo o FMI (Fundo Monetário Internacional), desde 1970 ocorreram 124 crises financeiras pelo mundo afora.

"Irei até o Paraíso (...) onde se vendeu a primeira ação do mundo. EVA COMPROU-A À SERPENTE, COM ÁGIO, VENDEU-A A ADÃO, também com ágio, até que ambos faliram. Machado de Assis, crônica de 23/10/1892"
Mais de mil homens desempregados marcham em direção à Tesouraria de Perth, na Autrália ocidental, para ver o Premier Sir James Mitchell, em 1931
Tendo em vista essas características do capitalismo, o economista Hyman Minsky (1919-1996), um dos pioneiros no estudo de crises financeiras, observou ironicamente, em 1982, que o mais significativo evento econômico desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) "é algo que não aconteceu: não houve uma depressão profunda e duradoura" na economia internacional.

CRESCIMENTO, CRÉDITO E MERCADO FINANCEIRO

O capitalismo depende da propensão para o consumo, fato que Henry Ford (1863-1947) expressou muito bem quando afirmou: "Quem faz o emprego do trabalhador é o consumidor, que é o próprio trabalhador". Para manter a pleno gás o reator da demanda, as empresas começaram a criar, elas próprias, as necessidades de novos bens e serviços, incrementando a pesquisa, o projeto e o marketing. Seduzidos, os consumidores precisam de crédito para comprar os bens e serviços que anseiam. As empresas também precisam de crédito para expansão de seus negócios, capital de giro, financiamento de inovações e da comercialização e de quem lhes ajudasse a lançar títulos nos mercados de capitais. Por isso.mesmo, os bancos são peças vitais da engrenagem capitalista contemporânea. Sem eles, a economia pára de funcionar.Os bancos operam, por natureza, alavancados.

No sistema bancário, o crédito de um é o débito do outro. Essa cadeia liga os bancos entre si e aos clientes

Eles criam dinheiro, na medida em que possuem capacidade de gerar meios de pagamento. Os depósitos à vista que os bancos captam de indivíduos e empresas são multiplicados por meio de empréstimos para terceiros, inclusive outros bancos. Assim, o sistema bancário cria crédito e possibilita negócios que não seriam viáveis sem ele. O decisivo, porém, é o fato de que, no sistema bancário, o crédito de um é o débito do outro. Uma cadeia intricada de créditos e débitos liga invisivelmente os bancos entre si e com seus clientes. De modo que a falência de um banco pode ser vista como a derrocada do sistema bancário, causando prejuízos generalizados.
O empresário Henry Ford, o inventor Thomas Edison, e o empreendedor Harvey Firestone, em 1929 - eles colaboraram para a formação das grandes indústrias
A posição estratégica dos bancos na economia é algo relativamente recente. Nos primórdios do capitalismo, o período mercantilista dos séculos XV a XVIII, a atividade principal dos bancos concentrou-se no financiamento da dívida pública dos Estados europeus (garantida por impostos) e do comércio a longa distância (monopolizado por companhias privilegiadas). Na Inglaterra da Revolução Industrial (1760-1830), os bancos mantiveram sua atuação tradicional, participando marginalmente do financiamento dos novos empreendimentos fabris.

As atividades industriais lançaram mão de economias familiares e do reinvestimento de lucros gerados pelas próprias indústrias, algo possível naqueles tempos pioneiros, uma vez que os capitais exigidos pelas fábricas eram relativamente modestos. Na segunda metade do século XIX, o papel dos bancos, principalmente nos Estados Unidos e na Alemanha, sofreu transformações de monta. Enquanto os bancos ingleses aumentaram suas operações de desconto mercantil e reforçaram sua função de sistema de crédito internacional, as instituições financeiras americanas e alemãs assumiram a função de antecipação de capitaldinheiro para as empresas, colocando o crédito a serviço da formação de corporações econômicas gigantescas.
A "bolha das tulipas", que arruinou a economia holandesa no século XVII pode ser comparada à crise da Nasdaq, em 2000; abaixo, panfleto holandês da "tulipomania", datado de 1637
Na Holanda, no século XVII, as tulipas viraram uma febre: elas eram trocadas por terras, animais e casas
O capital a juros dos bancos, sob forma "livre" e líquida, possibilitou a fusão dos interesses entre os bancos e a indústria, concretizada na forma das "sociedades anônimas" no final do século XIX. A propósito, escreveu o economista inglês John Hobson (1858-1940), autor do livro Th e Evolution of Modern Capitalism: "Quando nos damos conta do duplo papel desempenhado pelos bancos no financiamento das grandes companhias, primeiramente como promotores e subscritores (e freqüentemente como possuidores de grandes lotes de ações não absorvidas pelo mercado) e, em segundo lugar, como comerciantes de dinheiro - descontando títulos e adiantando dinheiro - torna-se evidente que o negócio do banqueiro moderno é a gestão financeira geral e que a dominação financeira da indústria capitalista é exercida fundamentalmente pelos bancos".

Esse processo deu origem a uma "classe fi- nanceira", que torna a gestão empresarial intrinsecamente especulativa, repleta de práticas destinadas a ampliar "ficticiamente" o valor do capital existente. Essas práticas só podem ter livre curso com o alargamento do crédito, exigindo a constituição de enorme e complexo aparato financeiro. O "financista" utiliza sua função de direção dos fluxos de capital, que é legítima e profícua, para desenvolver abusivamente métodos de ganho privado, manipulando, como feiticeiro, pilhas de papéis e estimativas de retornos e riscos para atrair a confiança de poupadores que lhes destinam suas economias.

PRIMÓRDIO DAS CRISES: A BOLHA DAS TULIPAS

Desde o surgimento dos bancos na Idade Média, a história das finanças é repleta da imagem de investidores arruinados com os resultados da própria cupidez. O capitalismo, por assim dizer, banalizou essa imagem. Entre os séculos XV e XVIII, encontram-se antepassados dos grandes crashes dos séculos XX e XXI.

Um desses antepassados é a curiosa "bolha das tulipas", que produziu estragos na Holanda do século XVII. A "bolha das tulipas" é vista por muitos como a primeira bolha de mercado, e comparada à crise da Nasdaq, a bolsa das empresas pontocom nos Estados Unidos.

As tulipas chegaram à Europa, provavelmente vindas da Turquia, em meados dos anos 1500. Na Holanda, os portos encheram-se de flores, especiarias e plantas exóticas, destacando- se as tulipas, cujo cultivo teve início ali em 1593. No alvorecer do século XVII, a flor já era muito usada por jardineiros e apreciada por colecionadores, em decorrência de sua beleza. Rapidamente, a popularidade da tulipa cresceu. Mudas especiais receberam nomes extravagantes ou de almirantes da marinha holandesa. As mais desejadas tinham cores vívidas, linhas e pétalas flamejantes. A tulipa tornou-se artigo de luxo e símbolo de status, estabelecendo-se a competição entre indivíduos das classes altas, mercadores e artesãos, pela posse das variedades mais raras. Os preços começaram a disparar. Em 1623, um simples bulbo da variedade Semper Augustus custava 1.000 florins. As tulipas eram trocadas por terras, animais e casas. Um bom negociante de tulipas conseguia ganhar 6.000 florins por mês, quando a renda média anual, à época, era de 150 florins.

O movimento ascendente dos preços das tulipas não cessou até 1636. As tulipas eram negociadas nas bolsas de valores das ricas cidades holandesas. Muitas pessoas venderam ou negociaram suas posses no intuito de especular no mercado de tulipas.
Quadro do inglês Edward Matthew Ward (1816-1879), representando o colapso da South Sea Company; abaixo, ilustração ironizando a queda das ações da companhia

Negociantes passaram a vender bulbos de tulipas que tinham acabado de plantar ou que tencionavam plantar - os chamados contratos futuros de tulipas -, em transações conhecidas como weindhandel ("negócio de vento"). Na base das expectativas exageradas a respeito da evolução dos preços das tulipas, estava o Banco de Amsterdã, com sua capacidade de estender o crédito e suportar o avanço da especulação.

Porém, no início de 1637, a "bolha das tulipas" estourou. Surgiu a suspeita de que a procura por tulipas não duraria. O movimento de subida dos preços dos bulbos terminou, induzindo os comerciantes a vendê-los. Os preços, então, subitamente caíram 90%. Alastrou-se o pânico no mercado. Muitos compradores deixaram de honrar os contratos de compra de tulipas. Outros se acharam na posse de bulbos cujo preço era, agora, muito inferior ao que haviam pagado. Os severos juízes holandeses consideraram as dívidas sem valor legal, porque resultantes de negócios especulativos, o que deixou os vendedores de tulipas sem o poder de executar o pagamento dos contratos. Por conseguinte, milhares de holandeses, incluindo membros da alta sociedade, tiveram prejuízos enormes.

O COLAPSO DOS MARES DO SUL

No início do século XVIII, a poderosa Inglaterra ficou às voltas com a "bolha dos Mares do Sul", episódio de especulação desenfreada envolvendo as ações da South Sea Company. Endividado por gastos de guerra, em 1711, o governo inglês obteve dessa companhia um empréstimo de 11 milhões de libras, a ser fi- nanciado a juros de 6%. A companhia recebeu, ainda, garantia do monopólio das trocas nos Mares do Sul. A empresa aceitou o negócio, de olho nas oportunidades de ganho com o comércio de escravos e as trocas nos portos das colônias espanholas.

Para financiar as operações, a South Sea Company começou a emitir ações. Os investidores foram atraídos pelos lucros potenciais associados ao monopólio em poder da companhia. Várias emissões de ações foram realizadas com sucesso, enquanto os diretores cuidavam de alimentar a imagem de prosperidade da empresa, abrindo diversos escritórios e espalhando boatos de que a Espanha garantira o uso total dos portos coloniais pelos navios da companhia. Virou mania possuir ações da South Sea Company, o que estimulou banoutras empresas a entrarem no mercado de ações. Os investidores responderam com avidez. Fortunas formaram-se do dia para a noite. A euforia cresceu - até mesmo Sir Isaac Newton (1643-1726) adquiriu ações da South Sea Company - e alcançou a Europa continental, onde muitos investidores compraram ações negociadas em Londres.

Mas, em 1718, o início da beligerância entre Inglaterra e Espanha inviabilizou os planos da South Sea Company. Os seus diretores, então, inescrupulosamente emitiram mais ações. Em seguida, venderam seus papéis, obtendo lucros elevados. Quando os investidores se aperceberam da realidade da companhia, as ações despencaram. Os diretores da South Sea Company fugiram para outros países. Isaac Newton perdeu 20 mil libras. Milhares de pessoas perderam muito dinheiro. O governo inglês reagiu proibindo a emissão de ações, medida que foi relaxada somente um século depois, em 1825. A economia da velha Albion, portanto, ressentiu- se com o episódio.

Há quem veja analogias entre a "bolha dos Mares do Sul" e a crise da falência da Enron, gigante americana da energia, ocorrida nos anos 1990. Corrupção, gestão fraudulenta, ganância de executivos, expectativas irreais, fiscalização leniente. Ingredientes que fomentam crises.
A FALÊNCIA DO INGLÊS OVEREND & GURNEY

A quebra do banco inglês Overend & Gurney ilustra o tipo de crise bancária decorrente de dificuldades de liquidez (dinheiro) que contagiam instituições financeiras menores. Antigo e respeitado banco da City, o Overend & Gurney era, conforme o jornal Th e Times of London, o maior instrumento de crédito do Reino, recebedor dos fundos excedentes dos pequenos bancos espalhados pela Inglaterra. Quando, em 1856, morreu Samuel Gurney (1786-1856), o fundador do banco, uma nova geração de sócios assumiu o comando da instituição e abandonou dois séculos de austera administração quaker.

Eles começaram a emprestar os fundos de curto prazo depositados no Overend & Gurney para financiar empreendimentos de retorno a longo prazo: navios, portos e, principalmente, estradas de ferro. Quando os resultados esperados não ocorreram (no caso das ferrovias, após a febre de construção em meados do século, a concorrência excessiva entre as empresas causou extraordinária queda dos lucros), boatos espalharam-se e os depositantes do banco Overend & Gurney começaram a exigir seu dinheiro de volta. Nas palavras de Walter Bagehot (1826-1877), à época editor do Th e Economist, os sócios geriram os negócios do banco "de maneira tão inescrupulosa e tola a ponto de qualquer criança que tivesse aplicado dinheiro na City teria se saído melhor". Em maio de 1866, a corrida bancária teve início.
A morte de Samuel Gurney (1786-1856), à esqueda, fundador do Overend & Gurney, desencadeou a crise que atingiu o banco inglês
Os controladores do Overend & Gurney acreditaram que viria socorro do Banco da Inglaterra. Este, por sua vez, decidiu deixar a casa falir, julgando que o pânico seria curto. A multidão furiosa rumou para Lombard Street, rua de Londres onde ficavam as sedes de muitos bancos. A polícia interveio. Muita gente teve perdas pesadas. Uns poucos depositantes do Overend & Gurney recuperaram seu dinheiro, após longos litígios judiciais. Os sócios desse banco perderam seus bens, obras de arte e dinheiro, foram processados criminalmente, mas terminaram absolvidos.

Em 1873 surgiu o livro de Walter Bagehot (1826-1877), Lombard Street, propondo que deveria existir um "emprestador de última instância" capaz de injetar liquidez temporária nas instituições que enfrentassem problemas de acesso a dinheiro, mas não eram insolventes. Para o jornalista e economista inglês, o "emprestador de última instância" deveria, diante da crise bancária, anunciar sua prontidão de emprestar sem limites para estabilizar o mercado e deter, no estado inicial, o "contágio" do sistema financeiro. Bagehot escreveu, ainda, que uma crise financeira possui três fases: o alarme, quando o público percebe que uma ou outra instituição está fragilizada e pode quebrar; o pânico, quando se desconfia que todo, ou quase todo, o sistema fi- nanceiro pode estar abalado; a loucura, quando cada um se convence de que não há mais salvação e é o "salve-se quem puder".
Obra do pintor holandês Marinus van Reymerswaele (1490- 1546), O banqueiro e sua mulher, retrata o surgimento dos bancos durante a Idade Média

A crise do Barings Brothers é comparável à "crise da dívida externa" dos países emergentes, nos anos 1980
A revista norte-americana Puck Magazine, mostra o Tio Sam ao lado de Pierpont Morgan, fundador do banco Morgan, mostrando a disparidade entre a importância de cada um
APLICANDO A PROPOSTA

A proposta de Bagehot foi empregada pela primeira vez na crise do Barings Brothers, em 1890-1891, situação que guarda semelhanças com a chamada "crise da dívida externa" dos países emergentes na década de 1980, que perturbou os mercados financeiros americano e europeu.

Na década de 1880, havia grande massa de recursos financeiros no mercado inglês, à procura de oportunidades de investimentos de alta lucratividade. Esses capitais fluíram principalmente para os Estados Unidos, Argentina, Austrália e Rússia. Na Argentina, esse dinheiro aportou em obras de infra-estrutura, ferrovias e sob a forma de empréstimos públicos. A entrada maciça de libras no país provocou o aumento das importações, forte expansão do crédito bancário interno, emissão excessiva de moeda, gasto público elevado e especulação de todo tipo, tudo lastreado no endividamento externo.

Por conseguinte, a balança de pagamentos argentina ficou bastante deficitária, mas a entrada de investimentos externos possibilitava o fechamento das contas. Porém, na década de 1890, a recessão na Europa provocou a diminuição da inversão externa na Argentina e a queda dos preços das exportações do país (lã, carnes e cereais). Por conseguinte, os argentinos começaram a ter dificuldades cada vez maiores para cumprir os compromissos externos. A desconfiança dos investidores europeus na capacidade de pagamento da Argentina levou o país à moratória, no ano de 1891.

Havia anos que a casa Barings canalizava para a Argentina vastas somas e garantia os rendimentos dos aplicadores. Quando a crise surgiu, em 1890, bancos argentinos faliram e as cotações das ações de empresas platinas e dos títulos da dívida pública desabaram. O Barings Brothers teve prejuízos enormes, fechando as portas provisoriamente. Dessa vez, porém, o governo britânico socorreu a instituição.

Em novembro de 1890, negociações secretas entre o Banco da Inglaterra e financistas de Londres, liderados pelo banco Rothschild, levaram à criação de um fundo de resgate de 18 milhões de libras esterlinas, antes que a extensão do prejuízo do Barings fosse conhecida publicamente. Esta intervenção, que contou com participação do Banco da França, do Banco da Rússia e do americano Morgan, evitou uma crise financeira de grandes proporções.
Multidão em frente ao American Union Bank, em Nova York, durante a Grande Depressão - o banco começou a funcionar em 1917 e fechou as portas em 1931
Imagem de 1907; aglomeração de pessoas em Wall Street, durante o "pânico dos banqueiros"
TENSÃO EM NOVA YORK NA BELLE ÉPOQUE

A quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1907, representou forte choque em um ambiente de grande liberdade de fluxo de capitais e bens, característico da "globalização", sob hegemonia britânica na belle époque. Desde a segunda metade da década de 1890, a economia norteamericana entrara numa fase de crescimento expressivo, com saldos positivos na balança de pagamentos e aumento da poupança interna, o que tornava o país muito atrativo para investimentos estrangeiros. O mercado de ações americano estava inflado e os bancos tinham emprestado dinheiro demais para corretores que não tinham condições de honrar suas obrigações. Mas tudo ia bem enquanto o crescimento prosseguia e o crédito era farto. Porém, o Banco da Inglaterra, visando reverter saídas de ouro rumo aos Estados Unidos, elevou a taxa de redesconto de 3,5% para 6%, em 1906. Essa medida enxugou a liquidez (quantidade disponível de dinheiro/crédito) nos Estados Unidos, provocando o crash de Wall Street no princípio de 1907 e o declínio da atividade econômica. Em outubro, teve início uma corrida contra os bancos, que foram forçados a suspender os pagamentos em dinheiro. Muitas instituições financeiras faliram. O país entrou em uma severa recessão. Pierpont Morgan (1837- 1913), fundador do banco Morgan, foi chamado para assumir o leme e restaurar a ordem financeira, liderando comissão de banqueiros.

Para boa parte desses diplomatas latino-americanos, o regime nazista simbolizava o autoritarismo bem-sucedido

O RESULTADO DO NEW DEAL
O acordo foi adotado pelo governo dos Estados Unidos logo após a posse de Franklin Roosevelt, em 1937. Com o plano, o Estado norte-americano interveio diretamente na economia e controlou a situação financeira do país
Na política monetária, o New Deal abandonou o padrãoouro e realizou emissão de dólares, desvalorizados em 41%. Com isso, a economia americana recuperou sua competitividade internacional e os preços internos subiram, fatores de estímulo para as empresas. Para reativar as atividades agrícolas, o governo lançou o Agricultural Adjustment Act - pagando indenizações aos fazendeiros, reduziu-se a quantidade de terras cultivadas e o tamanho dos rebanhos. Analogamente, o Nacional Industrial Recovery Act procurou evitar a superprodução e os excessos da concorrência: foram fixados preços mínimos e quotas de produção. Os salários dos trabalhadores fabris foram elevados e as suas jornadas diminuídas.

Sem dúvida, a face mais visível do New Deal foi a política de grandes obras públicas. Entre 1933 e 1942, o governo investiu US$ 13 bilhões na construção de infra-estrutura. A recuperação da economia americana, impulsionada pelo New Deal, ocorreu com certa lentidão. Nas vésperas da Segunda Guerra, o país recuperara os índices de atividade do ano de 1929.


Vale ressaltar um aspecto importante. A comissão chefiada por Morgan impôs ao presidente Th eodore Roosevelt (1858-1919) medidas que contrariaram sua bandeira política de caça aos trustes. Ele teve de concordar com a compra da Tennessee Coal and Iron Co. (uma empresa siderúrgica) pela poderosa U. S. Steel. A razão era simples: a corretora a que pertencia a TC&I estava insolvente, mas precisava ser salva. O pragmatismo suplantou os discursos inflamados e até certo ponto eleitoreiros do ocupante da Casa Branca.
Clientes sinalizam para os escritórios da Associação de Mercados de Nova York, em 1916
Os efeitos negativos logo alcançaram Inglaterra, França, Itália e América Latina também. A crise de 1907 foi fator importante para avançar o consenso político nos Estados Unidos sobre a necessidade de criação de um banco central. Em 1913, surgiu o sistema do Federal Reserve. Há certos paralelismos da crise de 1907 com a crise atual que devem ser ressaltados: a ampla liberdade de movimentação de capitais, a falta de boas regras financeiras, a farra de crédito que conduziu a ativos inflados e especulação desenfreada.

O GRANDE CRASH DE 1929

A quebra da Bolsa de Nova York, em outubro de 1929, é considerada a maior crise econômica de todos os tempos. No fim da década de 1920, os Estados Unidos eram os maiores fornecedores mundiais de crédito, os maiores exportadores e importadores. A roda da economia girava em torno dos humores do mercado americano. Mas o crescimento dos Estados Unidos apresentava sérias fragilidades.

A onda de inovação tecnológica provocara grande aumento da produtividade, cujos efeitos colaterais foram o aumento da taxa de desemprego e a queda do valor real dos salários. No campo, a superprodução agrícola provocou a baixa dos preços dos produtos, fazendo declinar a renda dos fazendeiros. Assim, no fim dos anos 1920, mais de 60% das famílias norte-americanas tinham renda anual menor que US$ 2 mil. O que quer dizer que o tamanho do mercado consumidor era limitado, justamente quando as fábricas de bens de consumo duráveis e semiduráveis produziam a todo vapor. Porém, desde 1926, havia euforia, consumismo e especulação no mercado acionário.

No ano de 1929, surgiram sinais de que a expansão terminara. A acumulação de estoques nas fábricas e os cortes de encomendas feitas pelas grandes empresas comerciais geraram os primeiros balanços ruins. O pânico caiu sobre a Bolsa de Nova York. As ações despencaram. As corridas bancárias tiveram vez. As bancarrotas começaram. Enquanto isso, apegado à ortodoxia liberal, o presidente Herbert Hoover (1874-1964) limitou- se a assistir a quebradeira, a redução drástica do comércio internacional e o derretimento dos preços dos ativos. A repatriação de capitais norteamericanos aplicados na Europa, para fazer face às necessidades de dinheiro que cresciam nos Estados Unidos, provocou a desvalorização das moedas européias. Um a um, os países abandonaram o padrão-ouro, iniciaram desvalorizações competitivas e adotaram medidas protecionistas, o que teve o efeito de "travar" o comércio internacional. A inércia de Hoover transformou o crash da Bolsa de Nova York na Grande Depressão.

Entre 1929 e 1933, nos Estados Unidos, 110 mil empresas faliram e 8.812 bancos desapareceram. O desemprego atingiu 25% em 1933. A produção industrial reduziu-se à metade e o PIB caiu 46%. Os salários tiveram queda de 60%. Os preços agrícolas reduziram-se 55% e os dos bens de produção 26%.

As palavras de Winston Churchill (1874-1965) ilustram o quadro da maior déblâcle do capitalismo: "Toda a riqueza tão velozmente acumulada nas carteiras de títulos dos anos anteriores desfez-se em fumaça. A prosperidade de milhões de lares norteamericanos havia crescido sobre uma estrutura gigantesca de crédito inflado, que subitamente se revelou um fantasma. Afora a especulação com ações em âmbito nacional, que até os mais famosos bancos haviam incentivado por meio de empréstimos fáceis, um vasto sistema de crediários na compra de casas, móveis, automóveis e inúmeros tipos de utensílios e artigos domésticos de luxo havia crescido. Ruíram juntos.As poderosas linhas de produção foram lançadas na tormenta e na paralisia. (...) Agora, as dores atrozes dos salários em declínio e do crescente desemprego afligiam a comunidade inteira" (Memórias da 2a Guerra Mundial).
Movimentação na Bolsa de Valores de Nova York, logo após o crash de 1929
Pessoas protestam nas ruas de Nova York durante a crise de 1929
Com a eleição de Franklin Delano Roosevelt (1882-1945), em 1933, os Estados Unidos organizaram sua reação à Grande Depressão. Foi posto em prática o plano conhecido como New Deal. No campo financeiro, o governo passou a exigir das instituições maior rigor na concessão de créditos, para os quais foram aumentadas as reservas mínimas que os bancos deveriam manter no Fed. O Glass-Steagall Act proibiu o envolvimento direto dos bancos comerciais em operações nos mercados de capitais e nos mercados imobiliários. Por meio da criação do FDIC (Federal Deposit Insurance Corporation), o governo garantiu depósitos de até US$ 2.500. Também foi criada a SEC (Securities and Exchange Commission), entidade federal encarregada de supervisionar e fiscalizar as operações de bolsa.

As crises originam-se nos países avançados e espalhamse, em seguida, para as regiões periféricas do globo

No decurso da administração Roosevelt, os Estados Unidos passaram a contar com os seguintes meios de intervenção e controle para remediar fragilidades bancárias: a) o emprestador de última instância (o banco central); b) exigências de solvência que os bancos comerciais têm que obedecer; c) sistema de supervisão para monitorar as atividades de bolsa e bancárias; e d) esquemas de seguro de depósitos bancários. O Acordo de Bretton Woods (1944) produziu o efeito de generalizar gradualmente esses elementos pelas economias capitalistas. Há quem sustente que a escassez de crises financeiras nas três décadas que se seguiram ao acordo deve ser atribuída, em boa medida, à "repressão financeira" resultante do acordo.

Retrospectivamente, o crash de 1929 guarda algumas semelhanças com a crise que se vive hoje. Ambas estão associadas a explosões de bolhas de crédito que produzem contração violenta de patrimônios, receitas, atividades e empregos. Tanto em 1929 quanto em 2008, assiste-se a uma deflação pela dívida. Porém, há duas diferenças importantes. A primeira diz respeito à ação das autoridades. Em 1929, como assinalou o economista Milton Friedman (1912-2006), luminar do chamado neoliberalismo, houve falha das autoridades monetárias e do governo.

Hoje, as autoridades mundiais compreenderam a escala da ameaça e estão agindo com maior presteza e medidas drásticas. A segunda diferença é que, em 1930, os Estados Unidos estavam sozinhos - todas as reservas do mundo estavam com eles, e o país era o motor solitário do crescimento internacional. Mas agora os americanos têm a China e outros países emergentes como parceiros.

AS CORRIDAS BANCÁRIAS NO SÉCULO XIX
O século XIX foi marcado por grande número de crises financeiras, que tiveram como protagonistas bancos e corretoras de valores. Desde 1825 até a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), ocorreram tensões no mundo inteiro, em todas as décadas. O quadro abaixo, que recolhe apenas casos mais famosos, evidencia esse fato:

Crises financeiras na Europa e nos Estados Unidos (1772 a 1907)

Evento Páis de Origem Ano
Quebra do Ayr Bank Escócia Junho 1772
Quebra do Pole, Thornton & Co. Inglaterra Dezembro 1825
Quebra da Bolsa de Valores Inglaterra Dezembro 1836
Bolha das Ferrovias Inglaterra 1847
Bolha das Ferrovias Estados Unidos Agosto 1857
Quebra do Overend & Gurney Inglaterra Maio 1866
Quebra do Crédit Mobilier França 1867-1871
Quebra da Bolsa de Valores Áustria/Alemanha 1873
Quebra do Jay Cooke & Co. Estados Unidos Setembro 1873
Quebra do Union Générale França 1882
Quebra do Barings Brothers Inglaterra Novembro 1890
Quebra da Bolsa de Valores Estados Unidos 1893
Quebra da Bolsa de Valores Estados Unidos 1907

AS LIÇÕES DAS CRISES FINANCEIRAS

Em uma perspectiva histórica, as crises bancárias e de bolsas de valores não são novidades. As "bolhas de crédito" são muitas e recorrentes. Os custos dessas crises, em termos de riquezas dilapidadas e sofrimentos humanos, são enormes. O mercado financeiro capitalista não aprende. As pessoas não aprendem. Os investidores muito menos. Sempre há quem fique alavancado em demasia, quem assuma riscos excessivos ou mal conhecidos ao lidar com inovações financeiras cada vez mais complexas.

Na base das crises financeiras modernas, há sempre o mesmo erro de avaliação dos agentes econômicos: as pessoas acreditam que, dessa vez, realmente o mundo mudou e a economia funciona sobre bases sólidas e definitivas. Alimentam expectativas de retorno desmedidas, lançam mão do crédito abundante para fazer negócios, produzindo uma espiral de ativos intangíveis. As crises têm início quando há rápida deterioração dos indicadores econômicos e surgem boatos ou notícias da dificuldade financeira de uma empresa ou de um banco para cumprir seus compromissos.

A evidência histórica também permite pensar que as crises financeiras são transmitidas pelos canais do comércio internacional, dos empréstimos entre países ricos e pobres, dos mercados de commodities e bolsas de valores e das arbitragens em mercados de títulos de curto prazo. Do século XVII a meados do século XX, as crises originaram- se, predominantemente, nos países avançados da Europa (com destaque para a Grã-Bretanha) e nos Estados Unidos, espalhando-se, em seguida, para as regiões periféricas do mundo.

Quanto ao problema de abreviar as crises fi- nanceiras, de modo a diminuir os impactos negativos que elas causam nos setores produtivos da economia, a história ensina que os Estados têm de agir rapidamente para salvar o sistema financeiro. Os Estados devem ser pragmáticos. Os governos precisam se lembrar de que eles criam mercados, e que mercados só podem existir com regulamento. Que não se alimente o falso debate governo versus mercado.

Outra lição é a de que existem limites para a expansão econômica baseada no crédito. O endividamento excessivo de famílias, empresas e países gera catástrofes enormes. Quando o emprego e a renda não acompanham a oferta de crédito, os negócios das famílias, empresas e instituições financeiras logo se chocam com a realidade da inadimplência. O trabalho e a produção devem ter prioridade sobre a compra e venda de papéis.
A fotografia tirada na Califórnia pela fotógrafa Dorothea Lange (1895-1965), em 1936, foi intitulada de "Mãe Migrante". A imagem virou ícone da Grande Depressão
REFERÊNCIAS

CHANCELLOR, Edward. Salve-se quem puder: uma história da especulação financeira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. FIORI, José Luís (org.). Estados e moedas no desenvolvimento das nações. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. FRIEDMAN, Milton; SCHWARTZ, Anna J. A monetary history of the United States, 1867-1960. Princeton: Princeton University Press, 1963. KINDLEBERGER, Charles P. Manias, panics, and crashes: a history of financial crises. 3. ed. New York: John Wiley and Sons, 1986. MAURO, Frédéric. História econômica mundial, 1790-1970. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. MORRIS, Charles R. Os magnatas: como Andrew Carnegie, John D. Rockefeller, Jay Gould e J. P. Morgan inventaram a supereconomia americana. 3. ed. Porto Alegre: L&PM, 2007.

MARCOS LOBATO MARTINS é Doutor em História Econômica pela USP. Professor dos Cursos de História e Direito das Faculdades Pedro Leopoldo, MG (FPL).

Revista Leituras da Historia

2 comentários:

  1. Bons textos para uma reflexão profunda sobre as dimensões do modo de produção e destruição capitalista. Parabéns! Saudações, Felipe Luiz Gomes e Silva - São Carlos- São Paulo.

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